No antigomobilismo presença de companheira, mulher, parceira em união estável, noiva, namorada, ficante de ocasião,independe o rótulo em ampla gradação, é peça fundamental de êxito para o hobby de seu amo e senhor – pelo menos assim como ele pensa quando o assunto é automóvel antigo.
Mas neste tema etéreo, de tantas variáveis, como estabelecer a linha divisória a separar valores tão distintos quanto o da mera aderente de ocasião e o provado pela verdadeira entusiasta? Mais importante, qual a medida para aferir a autenticidade do interesse?
Vida dura e desafiante a dos antigomobilistas.
Teorias e palpites os há em quantidade industrial, mas lembro a primeira e definitiva regra: ser hobby, coisa light, divertida. Porém, como dizia o festejado cineasta Paulo Emílio Salles Gomes, diversão é coisa séria. Assim, para evitar as dúvidas capazes de esboroar ou esfriar relações, tais manifestações devem ser bem individualizadas, personalizadas. Não se pode confundir fugazes momentos de aparente interesse, ou hipotética concessão, durante viagem a Orlando, Fl, EUA, para afastar-se do Mickey em meio dia para visitar algum museu de automóveis. Ou, em viagem a Paris na segunda semana de fevereiro, a sócia, a partícipe da sociedade doméstica, permitir a generosidade de abdicar do gastar sapato, novamente, na Avenue des Champs-Elisées, de visitar pela quinta vez as Galeries Lafayette, para concessiva e rápida passagem — a vol de l’oiseau, a propósito — pela monumental Rétromobile, o melhor e mais variado evento de antigos em Europa de língua latina. Ali, a fugacidade é inimiga das uniões, uma enzima para maus resultados.
Amor e medida
Vivência no negócio permitiu-me observar demonstrações de fé. Velho amigo, que se foi antes do combinado, incontido namorador, quando em dúvida se o interesse feminino era especificamente por ele ou por seu entorno de vida charmosa, presenteava a interessada com algum carro de desafiante restauração. Encarasse, era um bom princípio. Relegasse, mudava de categoria na relação. Casou-se com a persistente restauradora de sedã francês incendiado! Outro exemplo, mais recente, tive quando competia na Mille Miglia Storica, na Itália. Num trecho, retornando em Roma e de volta a Brescia, chuva depois da neve, frio e umidade desgraçados, parei num pico de serra, e pisando a neve com botas de sola fina, ansiava por um conhaque para aquecer internamente, já que para o exterior era causa perdida — o tal de conhaque devia ter concentração alcoólica capaz de funcionar carro flex e aqueceu coração e alma, preparando-me para generosa surpresa. À porta do bar, em frente do sedã Mercedes com o qual competia, um Ferrari barchetta do meio dos anos ’50. Barchettta, todos visualizam, é carro sem capota, simplório, rústico, do tempo em que Ferraris e Maseratis eram espartanos carros de competição, carroceria em alumínio sem o menor revestimento. Nada mais inadequado para aquele trecho, naquele momento. O proprietário, tendo superado a curva dos 70, tinha a feição do milionário sem preocupações de impor-se pelo visual. Calça jeans e um casaquinho que parecia ter combatido na 2a. Guerra Mundial. Sua dedicada acompanhante, com a metade da idade, mostrava seu interesse de maneira insólita. Pés no chão, dobrada sobre a porta, marcava-se inicialmente pelo bem fornido e delineado glúteo …, depois, pelo relógio, destes que não se dão ao desfrute em vitrinas, e o elegante, poderoso anel, com certeza de assinatura exclusiva de designer famoso, tipo Isabella Nasser. A generosidade do pacote meio cá, meio lá, no frio, com baldinho de plástico esvaziava o fundo da Barchetta de Maranello, retirando o líquido de neve derretida pela água da chuva captada na serra anterior, era uma referência colorida na gélida paisagem.
Me lembrei do ácido jornalista Nélson Rodrigues em famosa frase: dinheiro compra até amor verdadeiro …
Para o antigomobilista há outras provas de companheirismo fáceis de aplicar. Por exemplo, a simpatissíma Carmel, à beira da Route 1, na costa californiana, é paraíso terrestre durante 51 semanas do ano. Gente elegante, civilizada, rica, residindo em condomínios com amplos campos de golfe com 36 buracos. Bons restaurantes, o tempo se move com qualidade, charme e vagar. Lugar para ser apreciado.
Entretanto, a semana de exceção é para profissionais do interesse, do preparo físico, da pouca exigência alimentar, do desprezo do considerar custo x benefício sobre os serviços recebidos. Superlotada, captando gente do mundo inteiro, hotéis e inns com preço triplicado é, como se referem, The Week. Tão individualizada porque se trata do maior evento de cada ano, e a estrutura implode. No âmbito do colecionismo, até pouco tempo, programa de quinta a domingo, agora toma a semana inteira. E mescla exposição de marcas variadas, leilões para carros de morfologia e preços diferenciados, passeios, mostras, corridas. Uma semana dormindo pouco, pagando caro, ficando pelo menos 12 horas em pé, usualmente andando em campos de golfe e pisos irregulares.
É programa viril, instigante a machões fervilhantes em testosterona, interessados em pára-lamas, frisos, motores, brilhos, barulhos de motor.
Entendeu como é a exigência do negócio? A mim parece boa prova de interesse de acompanhante pelo hobby do líder. Suportando, incluindo as corridas em inúmeras baterias, para milhar de veículos no circuito de Laguna Seca, em Monterey, o banho do a nós desconhecido sol do deserto. Também, dizer presente aos leilões noturnos, suportar as observações de seu amo e senhor sobre a falta de noção nos lances. Se a tudo aderir e resistir, estará bem classificada.
Tem mais
Há, ainda, prova de nível superior no processo de adesão à insigne vontade do majestático líder: acompanhá-lo em excursão antigocomprista à grande feira estadunidense de Hershey, Pa, durante a temporada de chuvas. E patinar, escorregar, atolar na lama, sem cair e, muito menos, deixar cair as sacolas cheias das alegadas preciosidades adquiridas durante as 10 milhas — 16 km — de corredores abertos em antigos pastos, sediando incalculável número de barracas e improjetável quantidade de itens dentro da gradação variando entre fundamentais, importantes, badulaques, inutilidades, coisas para utilização futura, em data desconhecida, em veículo incerto, não sabido e, no mais das vezes, ainda a ser comprado. Dispenso, naturalmente, citar, tais produtos, os bens, as peças, a tralha adquirida, às vezes ainda mantém a poeira original de décadas de prateleira, atendendo ao rótulo de NOS — new old stock, coisas antigas agora encontradas —, carimbo responsável pela atualização injustificada de seu preço. Ou portando graxentas marcas de uso anterior.
Um ou outro, tal tralha deve merecer ajuda da atenta e prestativa companhia para ajudar e distribuí-la em suas malas, disputando espaço com as bolsas de Reese Krakov, emigrante russo atualmente em alta nos EUA, e cosméticos, e maquiagem MAC, Lâncome, Victoria Secret, shampoos Aussie … adquiridos com continência, para não tomar espaço às compras do cônjuge varão, na fugaz passagem por Nova York, ponto de chegada. Oportunas compras serão utilizadas como calços e amortecedores à férrea tralha antigomobilista…
Outra prova
O Correio Braziliense, conhecido matutino da Capital Federal produziu interessante matéria, desafiando chefs — denominação atual para cozinheiro —, a produzir receitas sobre a coleção de menus reunida pelo Imperador Dom Pedro II, doada à Biblioteca Nacional. Estão no livro Os Banquetes do Imperador, de Francisco Lelis e André Boccato — Editora Senac SP e Editora Boccato, 448 págs, R$ 199,90.
Menus e livro não portam as receitas, apenas a denominação dos pratos. Mas o jornal acicatou a vaidade e a dedicação dos chefs para materializá-las ante o nome, o cenário, a época e a disponibilidade de ingredientes. Na publicação está um desafio a ser submetido, provocar, instigar senhoras, noivas, namoradas, ficantes, eventualmente uma p.a., interessadas em investir na companhia de proprietários dos automóveis Simca: fazer o Peixe a Chambord.
Nome tenta atrair ao prato a imagem do imponente castelo, considerado pelos especialistas — não em automóveis, mas nas artes de arquitetura, história e decoração —, como o melhor exemplo da cruza das arquiteturas renascentistas francesa com italiana. Sua pontual escada em duplo hélice, um dos imponentes atrativos entre planta básica de construção para defesa, como os fortes, sem entretanto possuir outros elementos para tal função é, pelos especialistas, atribuída ao eruptivo gênio de Leonardo Da Vinci.
Castelo de caça, com 440 quartos, fica em meio a 50 km² de mata — um hipotético retângulo de 5 x 10 km, incluindo reserva e criatório de gamos, veados e afins. No Vale do rio Loire, uns 250 km de Paris, e vale a pena interromper o roteiro Lafayette/Chamselisées para visita ao Patrimônio Cultural da Humanidade. Construído enquanto o Brasil nascia, é programa para dia inteiro.
No Brasil o nome Chambord pontuou o modelo do Simca Vedette escolhido para representar a marca em sua aventura tropical — de 1959 a 1967 — quase 60 mil unidades em variadas versões: o Chambord e desdobramentos Présidence, Rallye, Jangada, Alvorada, Tufão, Profissional e Emi-Sul. Encerrou com Esplanada, calcado sobre a estrutura do Chambord, mas tinha outra cara, versões adicionais Regente e GTX, mas é história paralela.
O Simca Chambord provoca lembranças às referências visuais, como pintura externa em duas cores, e pára-lamas traseiros ditos rabos de peixe, tão marcantes da década de 1950. Um estadunidense em escala 7/8, projeto provava a origem: andar confortável, direção, suspensão e freios da melhor qualidade, e detalhes de conforto interno, pacote não alcançado pelos concorrentes da época da nascente indústria nacional do automóvel. Havia, ao nível, o FNM 2000, o JK, mas a proposta era outra.
Desafio à Chambord
Chef Diego Koppe, a pedido do jornal interpretou o nome do prato, anunciado como peça de resistência no banquete oferecido pelo Imperador Pedro II ao escritor Machado de Assis, comemorando aniversário da publicação As Chrisálidas. Teria ocorrido na noite de 6 de outubro de 1886, no Palácio Imperial, em São Cristóvão, então bairro nobre, e hoje o primeiro da Zona Norte carioca, melhor referenciado pelos vizinhos mais recentes, o Estádio do Maracanã e a Estação/Morro de Mangueira.
Pedro II, culto, viajado às suas próprias expensas, não era de festas e banquetes com o dinheiro público, e A Gazeta de Notícias, Rio, 7 de outubro de 1886, cita a festa, jantar oferecido a Machado por amigos e admiradores — o Imperador não foi. Nos salões do Hotel Globo, o menu incluía um certo Badejo a la Chambord.
Maneira de fazer desconhecida, a interpretação do Chef Diego sugere um peixe nacional, de tilápia a pirarucu, um não europeu.
Criatividade do Chef está no molho, melhor dizendo, na base, formada por gelatina de Agár-Agár, e vinho tinto seco francês. Para o peixe, grelhado, tempero com salsinha, manjericão e hortelã picados. Acompanham aspargos passados na manteiga.
Outra variável, com salmão, também é válida como demonstração de zelo e homenagem:
Salmão à Chambord
Ingredientes
700 gramas de files de salmão sem espinhas
04 colheres de sopa de manteiga
½ copo de cebolas pérola (as de fazer conserva), descascadas, finamente picadas
03 colheres de sopa de cenouras descascadas e raladas
½ colher de sopa de alho, descascado e finamente fatiado
02 raminhos de tomilho
½ folha de louro
01 colher de sopa de araruta ou amido de milho
½ copo de vinho tinto
01 copo de licor de Chambord
01 colher de Calvados ou Grappa
sal, se necessário
pimenta do reino ralada na hora
Preparo
Remova a pele do salmão, separe. Corte o peixe sem pele em quatro filés iguais. Reserve.
Coloque uma colher de sopa de manteiga, a cebola pérola, cenoura e alho. Doure. Adicione o tomilho, a folha de louro, e a pele anteriormente separada do salmão. Cozinhe, mexendo, por uns três minutos, pulverize a araruta/amido. Mexa para misturar e adicione metade do vinho e do Chambord.
Ferva em fogo baixo por 15 minutos;
Cubra uma tigela com peneira e aí despeje o conteúdo, pressionando com espátula ou o verso de colher grande as partes sólidas para extrair a maior quantidade possível de líquido. Deve apurar uns ¾ de copo. Dispense os sólidos restantes na peneira.
Aqueça uma colher de sopa de manteiga em frigideira não aderente, comprida o bastante para acomodar os filés de salmão numa camada. Pulverize com sal e pimenta.
Cozinhe por dois ou três minutos — o tempo dependerá da espessura dos filés —, e vire-os, mantendo o cozimento.
Pulverize com a Grappa ou o Calvados e verta restante do vinho e do Chambord sobre o salmão. Vire os filés, e transfira para um prato ou pirex aquecido. Despeje as duas colheres restantes da manteiga no molho sobre o salmão.
No caso atual, de pouco relevo diferenças entre as receitas atual, e a original há 128 anos. Qualquer servirá como ato de homenagem, reverência, declaração de amor e paixão ao líder doméstico, cabeça do casal, incontestável varão. Claro, o oposto também é válido, do tipo desprezou, não fez, dançou…
Independentemente da receita, sobremesa de livre escolha, café gourmet, como o desafiante espiritossantense Jacu, evento tão especial há de ser coroado com a coerência de típico licor de Chambord, à base de frutinha que parece cruza de amora negra com framboesa, vicejando na grande e preservada área lindeira ao Castelo. Vá com calma, pois a dosagem alcoólica é de 16,5% — bobeou, dormiu.
Válido o investimento, custo compensando o benefício, há o que se pode chamar de ultima ratio regum, o último argumento do Rei, o canhão. No caso, a Rainha e edição especialíssima, pelo joalheiro Donald Edge, com estilizada coroa mais de 1.000 diamantes, esmeraldas, pérolas e muito ouro. Excêntrico atrevimento tem preço: US$ 2M. Diz o Guinness, é a bebida mais cara do mundo!
RN