Meu sonho de consumo, desde criança, eram os carros esportivos nacionais fora de série.
Como todo adolescente da minha geração, cresci fascinado pelos Pumas, Biancos, Adamos, Miuras, Farus e outros modelos que, na época, estavam bem longe do meu poder aquisitivo de estudante de engenharia e trabalhador assalariado.
No final da década de 1980, quando estes modelos entraram em baixa devido à abertura de mercado e a falência de quase todas as fabricantes de veículos fora de série, comecei a vislumbrar a possibilidade de finalmente realizar meu sonho de criança.
Tive quase todos os modelos imagináveis, os quais comprava em estado lastimável por preço irrisório e restaurava com todos os detalhes de fábrica. Andava neles por três ou quatro meses e vendia por um preço absurdo. Eram os famosos “carros de golpe”, como os negociantes de automóveis costumavam chamar os esportivos nacionais, pois a gente comprava, restaurava e ganhava o triplo do dinheiro investido na hora da venda, sempre para outro sujeito doido que tinha o mesmo sonho de poder guiar um carro que ele queria ter desde criança.
Passei alguns anos fazendo este tipo de coisa, e digo, ganhei muito dinheiro, até que estes mesmos carros passaram a ser olhados como colecionáveis e não mais como “carros de golpe”.
Bem, na verdade a história que quero contar não é esta, serve apenas como ilustração para o que relato a seguir.
Lá pelos idos de 1990 ou 1992 tive minha primeira experiência com carro antigo.
Na época eu tinha um Chevette, e fui convidado por uma garota da faculdade (Karen, aliás um avião…) para um baile dos anos 1960 no Clube Sírio Libanês em São Paulo.
O evento merecia uma preparação especial de minha parte, e eu não queria fazer feio, e para isto pensei em todos os detalhes.
Primeiro a indumentária, compatível com a época é claro, calça jeans calhambeque (não me perguntem onde eu consegui…), camisa de gola alta branca, botinha (sem meia), anel de brucutu de Fusca, corrente e pulseira à Roberto Carlos, blusão de couro e muita, mas muita, brilhantina no cabelo.
Faltava alguma coisa para completar. Um carro antigo!
Fui até à Jardineira Veículos na Av. dos Bandeirantes na tentativa de alugar um, mas descobri que precisaria vender meu Chevette para poder alugar o modelo mais barato, sem contar que não poderia dirigi-lo, um motorista acompanharia o carro.
Desisti, é claro, não só por razões financeiras, mas também porque eu queria chegar guiando o carro na festa.
O final de semana se aproximava e nada de conseguir o tal carro. Eu já estava pensando na possibilidade de ter que me misturar ao restante dos reles mortais e ir com o meu Chevette, quando, em uma conversa de bar um colega me disse que um tio dele tinha um Chevrolet 1951.
Imediatamente eu apelei para nossa amizade antiga, e implorei que ele falasse com o tio dele para me emprestar o carro.
Ele prometeu tentar persuadir o tio, mas não me garantia nada. Na sexta-feira à noite ele me ligou, dizendo que tinha falado com o tio, e que eu fosse até a casa dele para, então, irmos juntos ver o carro.
Meu coração se encheu de esperança. Fui, e venci. O tio já tinha seus 70 anos, e eu procurei ser o mais simpático e educado possível com ele.
Depois de muita conversa consegui que o ancião me emprestasse o veículo por uma noite, deixando de garantia meu Chevette e mais um monte de recomendações.
No sábado à tarde fui buscar o carro. O tio, solícito, me mostrou todos os detalhes, como dar a partida, engatar as marchas, usar os freios com parcimônia, tentando quando possível usar ao máximo o freio-motor, enfim, uma aula de pilotagem expressa voltada para veículos antigos.
O carro era muito bom, e guardando as devidas proporções chegava a ser melhor que o meu Chevette.
Preto, imponente, pneus de banda branca, estofamento impecável, e pasmem, até o rádio funcionava.
No sábado à noite me preparei para o evento, que prometia ser a noite mais feliz da minha vida, afinal eu tinha tudo o que eu esperava, o carro, a garota, a festa, e para completar um visual de deixar qualquer Erasmo Carlos no chinelo.
Depois de devidamente banhado, paramentado e cheio de colônia Patchouli e Gumex, me olhei no espelho e me senti o máximo. Meu tio, que estava de passagem por minha casa me emprestou uns óculos escuros que completavam meu visual de roqueiro.
Peguei o Chevrolet e fui buscar a garota. Cheguei à casa dela por volta das 22 horas e fui recebido pela mãe, pai e irmão menor. Me fizeram entrar, sentar no sofá, me deram refresco, e o irmão menor ficava me olhando de rabo de olho e rindo escondido.
Me fizerem um monte de perguntas, praticamente um inquérito, onde eu morava, o que eu fazia, de onde eu conhecia a filha deles, se bebia, se fumava, se era católico, qual sabonete eu usava, enfim, contei-lhes minha vida desde o útero materno.
Depois de quase uma hora, eis que surge do alto de uma escada que dava no piso superior do sobrado a minha deusa, linda, com um vestido rodado de tons florais, sapatos de dança com meia soquete, um penteado estilo Celly Campello e óculos gatinho.
Quase desmaiei, era muita areia para o meu caminhãozinho, aliás para o meu Chevrolet.
Após várias ressalvas feitas pelo pai, inclusive ameaça velada de homicídio se eu fizesse algo de errado, fomos liberados para ir ao baile.
O caminho foi maravilhoso, com ela ao meu lado no Chevrolet mexendo em todos os botões do painel e trocando as estações do rádio sem parar.
Chegamos em grande estilo, a rua estava cheia, e ao chegar na entrada do clube buzinei para o segurança, que fez questão de abrir caminho e tirar um carro que estava parado na frente da portaria para que eu estacionasse.
Desci do carro com todos me olhando, estufei o peito, levantei a gola da jaqueta e tropecei na sarjeta, o que fez meus óculos escuros irem parar do outro lado da calçada.
Não perdi a pose, abri a porta do Chevrolet, dei a mão para a garota e entramos triunfantes no baile.
Estava lotado, a banda tocava “ Johnny be good” e fomos até o bar. Peguei uma cuba libre para mim e um ponche para ela. Ela me devolveu o ponche e bebeu minha cuba libre.
Alguns instantes depois gritou no meu ouvido que ia conversar com umas amigas e já voltava, e sumiu.
Fiquei ali com cara de paisagem, e descobri, tarde demais, que o único objetivo da garota era arranjar um idiota como eu, que enfrentasse o chato do pai dela e a levasse à festa.
Não desanimei, voltei meus instintos de caçador para outras presas e até que me dei bem.
Bebi toda a prateleira do bar, e lá pelas quatro da manhã, reaparece a garota, completamente bêbada, amparada por duas amigas tal e igualmente alcoolizadas me pedindo para levá-la de volta para casa.
Como já estava mesmo na hora de ir embora, e com medo de levar um tiro do pai dela, que já tinha até o endereço da minha casa, resolvi levá-la.
Àquela hora da madrugada a rua já estava bem deserta, com as últimas pessoas saindo do baile e poucos carros.
Abri a porta do Chevrolet e literalmente coloquei a garota no banco de trás como quem carrega um saco de batatas.
Ela deitou no banco e apagou. Dei a volta, abri a porta do motorista, sentei, coloquei a chave no contato e girei. Ouvi um “tec” e mais nada. Estranhei, tentei novamente por várias vezes até que me dei conta que a bateria tinha arriado.
A rua era plana, com uma ligeira inclinação em descida perto da esquina. Soltei o freio de mão e munido de todas as forças que ainda me restavam àquela hora da madrugada tentei, sem sucesso, tirar o carro do meio fio empurrando.
O dinossauro não se moveu nem um milímetro. Comecei a ficar nervoso, o suor escorria da minha testa e minhas mãos estavam molhadas. Em outra tentativa de mover o carro minha mão escorregou, eu me desequilibrei e cai. Quebrei os óculos emprestados do meu tio e rasguei o fundo das calças.
Já fulo da vida, fui até a frente do carro e me sentei na calçada a fim de respirar um pouco.
Fiquei olhando a frente do Chevrolet, a grade e os faróis lembravam uma cara gorda e o bico do capô um nariz adunco. Aquele desgraçado estava rindo da minha cara…
Perdi a paciência, levantei da calçada e enfurecido dei um chute de bico no pneu dianteiro, que me custou o zíper da bota e uma unha roxa no dedão.
A garota dormia como se nada estivesse acontecendo.
Já eram quase seis da manhã quando passou um caminhão com um monte de gente em cima da carroceria. Estavam de uniforme de futebol, e provavelmente iriam jogar em algum lugar.
Pulei na frente do caminhão e o motorista parou. O pessoal da carroceria começou a xingar o motorista chamando ele de carroceiro devido a freada brusca.
Pedi ajuda para empurrar o carro, e não sei se por pura farra ou se por dó daquela figura grotesca que aquelas horas parecia mais um punk do que um roqueiro, resolveram me ajudar.
Desceram da carroceria, deviam ser uns 15 candangos, e aos gritos de “Vai, vai!” finalmente conseguiram mover o Chevrolet moribundo do meio-fio.
Eu, ao volante, esperei que ele chegasse a uma certa velocidade, liguei a chave, engatei uma terceira e tirei o pé da embreagem. Uma nuvem de fumaça cobriu a rua, e o motor entrou em funcionamento.
Puxei o afogador para manter a aceleração e dei com a mão para agradecer o pessoal que ficou no meio da rua enfumaçada gritando e comemorando com se fosse gol do Brasil em Copa do Mundo.
Algumas esquinas depois a garota fez menção de levantar e sentar-se, mas acho que com o balanço do carro alguma coisa não deu certo e ela vomitou no banco.
Por sorte já estávamos perto da casa dela. Deixei-a sentada no portão de entrada do sobrado, toquei a campainha, entrei no Chevrolet e sumi. Graças a Deus nunca mais a vi, nem ela nem o pai dela.
Cheguei em casa, lavei o carro (sem desligá-lo com medo de ele não funcionar mais), e fui devolvê-lo ao tio do meu amigo.
Era domingo, e depois de entregar o Chevrolet, descobri que o tio do meu amigo tinha me ensinado tudo, menos a desligar a chave-geral que ficava dentro do cofre do motor e que servia para não deixar a bateria descarregar.
Mais tarde, sentado na privada do banheiro de casa, cheguei a conclusão de que aprendi várias coisas neste dia:
1- Nunca confiar nas mulheres nem nos carros antigos, por melhor que eles pareçam uma hora vão te deixar na mão.
2- Carros antigos são como mulheres e piscinas, bonitos, dão status, são prazerosos, mas você gasta muito dinheiro pelo tempo que passa dentro deles. E a regra número 1 continua valendo.
3- Por mais que você saiba sobre carros, tem sempre alguma coisa ainda para aprender
4- Antes de sentar no vaso sanitário e começar o serviço verifique se tem papel higiênico.
ooooo
Nota do editor: a foto é meramente ilustrativa; carro não é o da história (foto: chevy.oldcarmanualproject.com)