Quando conheci o Afrânio ele já tinha meia idade. Estava saudável, porém não tinha o mesmo fôlego da juventude e apresentava alguns fios de cabelos brancos, mais ou menos como eu estou agora. Nossa amizade começou por conta da insistência da minha esposa, logo após o nascimento de minha filha primogênita. Confesso, não tive com ele simpatia de imediato.
Eu o achava demasiadamente espaçoso, um cara meio quadrado e meio lerdo para me acompanhar no cotidiano. Tinha mania de permanecer sempre aberto às pessoas mesmo quando eu pedia para ser reservado. Às vezes ficava estressado, fervendo por pouca coisa ou reclamando de injeção. Parecia cacoete, mas até entendia como hábito normal de quem está envelhecendo.
Depois de levá-lo a clínica dos irmãos Cláudio e Antônio, sua saúde melhorou bastante e quase nunca ficava doente. Ele tinha até uma caderneta com as consultas de rotina. Quando tomou um bom banho e vestiu sapatos novinhos, pedi a ele que ele andasse sempre alinhado. Ficou bem-apresentado e agradável. Ele praticamente não bebia e tinha leve intolerância ao uso do álcool.
Na ocasião em que optei por trabalhar em outra cidade sem me mudar com a família, viajava na segunda-feira de madrugada e voltava na sexta-feira no meio da tarde. Adivinha quem me acompanhava nessas jornadas? Sim, o Afrânio. Aliás, foi em um desses itinerários, em uma estradinha bem sinuosa, que ele foi batizado. Para variar, eu o provocava nas curvas para ver se ele perdia a linha. Que nada! Ele olhava para tranqüilo para frente e nem se afetava.
Vez em quando, eu e minha família visitávamos parentes na cidade de São Paulo ou Campo Grande sempre em sua companhia. Eram viagens extremamente longas, com no mínimo 12 horas de trajeto sem parar. Eu acordava à meia-noite, pedia para ele carregar as malas e enquanto todos dormiam, percorríamos quatro estados, silenciosamente. Quando a rodovia permitia era a vez dele me provocar, pedindo para andar mais rápido.
Afrânio, apesar de pacato, não se intimidava com qualquer chamada para um duelo, mesmo quando encontrava os impulsos juvenis. Ele até sofria um pouco no início, mas no final tirava a diferença. Tanto quanto eu, odiava lombadas e valetas e sempre resmungava alguma coisa. Solícito, não tinha tempo ruim. Era só pedir que ele atendia imediatamente e só falhou em duas ocasiões, mas foi perdoado por que já tinha avisado antecipadamente e eu ignorei.
Fizemos muitas viagens juntos, conhecendo lugares e acompanhando diariamente a rotina de minha família. Porém, depois de quatro anos sua saúde já não era a mesma e eu não tinha condições de cuidá-lo como de costume. Com muito pesar, eu precisei encontrar um novo lar e um trabalho não muito pesado. Fui obrigado a deixá-lo aos cuidados de um rapaz em situação parecida quando me tornei um pai. Confesso que meu coração ficou muito apertado no momento da despedida.
Hoje quem o substituiu e acompanha nossas andanças é Maria Eugênia, vulgo “Geniosa”. Ela é uma perua recalcada, de pequena estatura, que bebe além da conta e vive quebrando o salto. Mas essa é uma história para outro dia.
Um grande abraço,
Rafael Aun
Foto: autor
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