Em 1º de dezembro de 1999 a revista inglesa Autocar publicou uma matéria daquele que viria a ser o último projeto da Bristol, o fabricante especialista que nascera como construtor de aviões em 1910 e depois viria a formar uma fábrica de carros em 1945.
A descrição breve do Fighter previa um grã-turismo de baixa produção, como todo Bristol, que pudesse andar quatro horas a 100 mph (160 km/h) sem reabastecer, e que a 320 km/h ainda seria macio e prazeroso, sem dramas para controlá-lo. Nesse final de 1999 já aceitavam pedidos para o novo supercarro de dois lugares, que seria feito em 20 unidades por ano. Mantendo a tão importante tradição da marca, deveria ser um carro de alta qualidade, ignorando modas evaporativas, aquelas novidades incluídas em carros mundanos e que se alteram toda hora.
O acabamento interno é muito bem feito, e as formas empregadas nos componentes denotam conforto e beleza, sem pontos desagradáveis. É funcional e sem detalhes exagerados.
Em 2001 foi apresentado um protótipo, em 2003 ficou pronto o primeiro carro, que foi entregue a cliente em 2004, prosseguindo com lenta e cuidadosa fabricação até 2011, quando em 3 de março foi fechada a empresa que tinha vinte e sete funcionários e apenas uma loja onde o carro podia ser comprado, no bairro de Kensington, em Londres. Nenhum concessionário ou agente de vendas existia, em nenhum lugar do mundo, e todas as manutenções nos carros dos clientes eram feitas na fábrica, caso esses assim o desejassem.
Mais sobre a história da marca pode ser encontrada aqui, nesse texto publicado pelo Marco Antonio Oliveira após o fechamento da fábrica.
Nos conceitos de engenharia da Bristol estavam arraigados vários princípios, um deles é o de não haver efeitos parasitas no sistema de direção, nem do próprio sistema, nem provindo das suspensões ou dos freios. Um dos detalhes importantes é a escolha dos amortecedores. Todos os componentes eram testados individualmente antes de serem montados, e os pares de mesma carga eram montados em cada eixo, para evitar pequenos desbalanceamentos que prejudicassem o que os ocupantes sentiriam no carro.
Os duplos triângulos na frente e atrás, feitos em aço com amortecedores internos, bem para dentro do carro, garantem suspensão silenciosa e macia, apesar de perfeitamente de acordo com os desempenhos de supercarro.
Em aerodinâmica, a empresa guiou-se para não serem geradas forças de sustentação que tornassem o carro instável, e evitar também força para baixo que pudesse comprometer a velocidade final. Assim o Fighter teve sua forma criada evitando arrasto desnecessário e turbulências. O coeficiente de arrasto (Cx) ficou por volta de 0,28, principalmente devido ao trabalho de Max Boxstrom, ex-Brabham Fórmula 1, que foi o responsável pelo desenho de carroceria, visando estabilidade, pouco ruído de vento e confiança a altas velocidades.
Há saídas de ar acima do cofre do motor junto ao pára-brisa, nas laterais à frente das portas, essas enormes para serem verdadeiramente eficientes, e nas bordas superiores da traseira, por baixo da tampa do porta-malas ( não dá para ver em fotos ) sugando pela baixa pressão o ar de dentro das caixas de roda traseiras, para diminuir o arrasto que causa efeito de frenagem, normal em qualquer alojamento de roda.
A entrada de ar da grade dianteira serve ao radiador e também à câmara plenum do sistema de alimentação — um volume para estabilização de volume de ar, de forma a não haver falta deste quando se acelera a fundo subitamente — o ar que fica “solto” dentro do compartimento do motor sai parcialmente na base do pára-brisa, ajudando a manter a camada-limite de ar colada por cima do teto. Uma outra parte, o maior volume, sai pelas grandes aberturas nos pára-lamas, à frente das portas. Isso diminui o arrasto total do carro, pois não há muito efeito de frenagem dentro do compartimento do motor.
O pára-brisa é bastante curvo, lembrando aeronaves de desenho refinado, que não são todas. Perceba por exemplo, os aviões comerciais com pára-brisas formados por peças planas em seqüência, colocadas umas ao lado de outras. Remete também aos Saab 99 e 900, que eram primorosos nisso. Essa configuração tipo de vidro com pouca inclinação, permite uma visibilidade sem distorções e baixo arrasto também. Uma solução sempre mais cuidadosa e elegante do que o tradicional da enorme maioria dos carros, que é a inclinação exagerada de pára-brisa com pouca curvatura. Os vidros eram também verificados na fábrica, sendo rejeitados os que tivessem qualquer mínimo defeito em zonas de visibilidade de segurança.
Esse pára-brisa, mais o vidro traseiro enorme e o pequeno vigia vertical na tampa traseira, junto com colunas dianteiras e traseiras estreitas, permitem uma visibilidade ótima, muito melhor que a de muitos carros comuns. Um ponto de segurança ativa importantíssimo e mais um dos pilares de projetos da Bristol ao longo de sua história. Quão diferente dos desenhos atuais !
Apesar de parecer e ser mesmo antiquado, o controle de qualidade das peças compradas de fornecedores era muito eficiente e custava muito dinheiro, e teve sua origem na indústria de aviões. Valia a pena. Basta ver hoje a quantidade de convocações das fábricas, numa época em que a garantia da qualidade das peças e conjuntos é apenas dos fornecedores que as fazem. A quantidade de problemas na seqüência de fabricação de componentes que é possível de acontecer é muito grande, e se ninguém confere o que vai ser montado nos carros, esses possíveis problemas se somam, caso existam, indo parar nas mãos dos clientes, não sendo detectados facilmente nas dependências do fabricante do carro.
Estruturas leves eram especialidade da Bristol, desde os anos 1920 com os aviões, e depois com os carros. No Fighter, a maior parte da estrutura é feita em aço, mas sendo um projeto moderno, utilizou-se a parte plana do assoalho feito em honeycomb (colméia de abelha) de alumínio. Os painéis de carroceria externos são em chapa de alumínio, sempre curvadas e dobradas manualmente usando ferramentas seculares. O toque mais moderno é aplicação de compósito de fibra de carbono nas portas do tipo asa de gaivota e no capô do motor.
Na mecânica, a continuação do acordo com a Chrysler que vigorava desde 1961 com o lançamento do modelo 407, produzido com motor V-8 feito no Canadá. No Fighter eram usados nada menos que o V-10 e caixa de marchas do Viper, mas com modificações no gerenciamento eletrônico para mais refinamento e menos brutalidade na entrega de potência, eliminando o bote da víbora, já que os Bristol são outra filosofia de vida automobilística, e para combinar com o sistema de admissão de ar diferente daquele do Viper, além de comando de válvulas e cabeçotes modificados.
As tampas de válvulas gozavam do direito de usar um logotipo Bristol em vez de Viper. Esse enorme motor tem 7.996 cm³, e as alterações o faziam sair dos 456 cv originais e chegar a 532 cv a 5.600 rpm e 71 m·kgf de torque máximo a 4.200 rpm. O peso é de 238 kg, e instalado no carro roda até 11 km/l em boas condições de tráfego e com um pé direito controlado.
Versão ainda mais potente era disponível, sempre sob pedido do cliente, como de hábito nas personalizações da Bristol, e que chegava a 636 cv em dinamômetro ou 668 cv instalado no carro em altas velocidades, fazendo uso do sistema de admissão de ar de alto impacto aerodinâmico, o conhecido ram air effect, efeito de ar dinâmico.
O tanque de combustível está montado junto do centro de gravidade, logo atrás dos bancos, para que a massa dos 104 litros (75 kg) não alterem o comportamento do carro quando cheio ou vazio.
A massa total do Fighter chega a 1.600 kg em ordem de marcha, ante a estimativa de cinco anos antes de pesar 1.400 kg, com 48% na dianteira e 52% na traseira. Mesmo assim, 1.600 dividido por 668 resulta em 2,4 kg/cv, relação ótima, permitindo aceleração de zero a 96,5 km/h em 4 segundos e 340 km/h de máxima.
Números desse padrão mostram na prática que se podia engatar a sexta marcha já a 30 mph (48 km/h) e ir acelerando tranqüilamente até a velocidade máxima, sem nenhum tipo de falta de força. As marchas em grande número serviam apenas para quando se quer andar forte.
Em 2006 veio o modelo turbo, o T, com 1.025 cv e 140 m·kgf de torque a 4.500 rpm. Cx diminuído para 0,27, e 430 km/h de máxima possível segundo o fabricante, mas com limitação eletrônica a 362 km/h, e aceleração de 0 a 100 km/h em 3,5 segundos.
Em setembro de 2007 começou a ser entregue, e não mais de treze unidades foram feitas, para um total de quarenta e seis unidades desse modelo e mais o de motor atmosférico.
Um outro detalhe interessante nesse carro é relativo ao acionamento do câmbio manual de seis marchas. Partindo do sistema usado no Viper, os profissionais da empresa alteravam vários pontos para melhorar o esforço e precisão de movimentação da alavanca, com a qualidade de funcionamento sendo lendária e constante pela tradição Bristol, mesmo em carros com mais de cinqüenta anos de uso, prova de refinamento de projeto e capricho de montagem de uma fábrica notável. O sistema de trambulador do Viper foi totalmente refeito pela Bristol, para acionamento sem os problemas e dificuldades encontradas na víbora americana. Um trabalho impressionante de melhoria quando se leva em conta as opiniões de quem dirigiu os dois carros, como o fizeram várias publicações, tanto britânicas como americanas.
O nome de produção poderia vir a ser outro de avião, que não Fighter, caça da Primeira Guerra Mundial fabricado pela Bristol de nome nada criativo, pois fighter significa caça. Cotados foram Bollingbroke, Bisley, Bulldog e Bloodhound, mas ficou Fighter mesmo.
O preço de lista na fase de produção chegou a 235.000 libras esterlinas, o que sem dúvida não foi um dos problemas que levaram ao fim da marca, já que não existe cliente Bristol não conhecedor ou sem as verbas necessárias. Pena que esses eram poucos.
O mais incrível é que a marca foi renascida com nova administração, no mesmo ano em que fechou, 2011, através do grupo Frazer-Nash, outra marca muito antiga que não mais fabrica carros, mas trabalha há cerca de 20 anos com tecnologias para veículos elétricos e híbridos. O dono é um indiano, Kamal Siddiqi, que comanda uma organização suíço-britânica chamada KamKorp, que já foi dona da extinta marca de carros elétricos noruegueses, a Think, depois que a Ford a vendeu. Uma salada total.
Para surpreender a todos, inclusive a mim, que descobri o fato escrevendo esse texto, a Bristol desenvolve um novo modelo para apresentação em 2015, com tecnologia de propulsão híbrida, chamado até agora de Project Pinnacle.
Para desanuviar a mente dos entusiastas que gostam de carros tradicionais e com valorosa história de marca, e se confundiram completamente com todo esse “morre-ressuscita”, a Bristol continua com serviços de manutenção e consertos para os seus clássicos, ou seja, todos os carros produzidos por eles, desde os primeiros modelos até esse Fighter.
Mais uma vez, dedos cruzados para que sobrevivam a esses tempos tão complicados.
JJ