Meu primeiro carro foi um Chevette. Dizem que temos alguma ligação eterna com nosso primeiro carro, já que foi ele que lhe permitiu liberdade real pela primeira vez. Se hoje ter e usar um carro ainda é algo incrível, imagine há três décadas, quando as pequenas ditaduras que hoje massacram o automóvel e seu uso eram virtualmente inexistentes.
Meu modelo L era ano 1978, e eu só sabia que era um “luxo” por causa do documento, já que de luxo ele só tinha duas coisas, carpete no assoalho e calotas nas rodas. Sim, calotas de metal, muito bacanas hoje, mas que eram um horror em meio a jovens saindo da adolescência, sem a informação fácil da inexistente internet, e sem saber que calotas são algo extremamente cool nos muscle cars mais desejados . Lá nos EUA, são conhecidas como dog dish (pratinho de cachorro).
Nesse tempo, conseguir ver alguma revista com muscle cars era um evento importante e memorável. Era coisa só possível em algumas livrarias e bancas com material importado, coisa quase só para ricos naquela época. Meu pai me comprou a primeira revista importada, Motor Trend, apenas em 1982, imaginem.
Meu carro foi comprado bem castigado, opaco de pintura, numa cor terrível, o vermelho vinho, com motor batendo forte, pneus horríveis e pago em prestações de carnê das lojas Jumbo-Eletro. Foi direto para a retífica de motores no mesmo dia em que o feliz vendedor se livrou dele e do carnê.
Voltou alguns dias depois, já com um motor sem barulhos estranhos, mas amarrado como um tigre de circo, para que eu começasse meu trabalho habitual de “Juvenalização”, um processo onde as prioridades de consertos e desencardimento vão se definindo na minha cabeça, de acordo com o que mais me incomodava, e que ainda ocorre hoje, com qualquer carro que eu compre. Se a coisa olha torto para mim, é a primeira a ser atacada, como por exemplo, a sujeira dentro do cofre do motor.
De cara, os pneus, todos ruins, inclusive estepe. Como a verba era paterna, e ela não abundava, dois novos na dianteira, de uma marca que não me recordo, só para eu poder frear com menos riscos e, se batesse, que fosse mais devagar. Sei que eram bem borrachudos, e tinham um desenho de lateral e banda que faziam eles ficarem bem bacanas, com bastante borracha e altura correta da dianteira, também algo que as atuais modas eliminaram, com a mania de pneus rolo-de-fita-isolante-acabando.
Na traseira, ficaram duas coisas de borracha, bem lisas e feias, mais cinzas do que pretas, ressecadas a ponto de ter trincas, mas que me permitiram aprender um pouco uma coisa chamada contra-esterço com minhas mãos.
Claro que Juha Kankunnen passava longe de minha habilidade, na verdade ele me passaria por fora em qualquer curva, mesmo com um carro igual, mas eu encarnava seu espírito em qualquer dobrada de esquina que via pela frente, embalado pelo motor de 1,4 litro e 69 cv, que deve ser o mais rouco de toda a história mundial do automóvel, apesar de possuir projeto com o tão desejado crossflow, fluxo cruzado, com entrada de mistura de um lado do cabeçote e saída do outro.
Dessa forma, os pneus traseiros foram rapidamente desprovidos do pouco de borracha que lhes restava, e mais parecendo mortos-vivos, fizeram sua última viagem até uma loja de pneus, acompanhados de um cheque no meu bolso, assinado pelo meu sempre auxiliador pai. Provavelmente metade do que sobrava de borracha do traseiro direito havia ficado numa esquina do bairro paulistano do Ipiranga, em que uma curva à esquerda começava em descida e terminava em subida, num asfalto perfeito, e pertinho de casa. Apelidei a curva de “Espírito de Kankkunen”, e está lá ainda, embora remendada, como quase toda a cidade mal tratada por políticos e povo ignorantes. Quem quiser e puder verificar, Rua do Manifesto com Rua Cisplatina.
Também de meu pai, e num ato de ótima escolha, um volante de três raios super-básico e com um botão de buzina decorado com uma bandeira quadriculada, comprado após ser ele dominado pelo cansaço do botão de buzina original enorme e em formato de tijolo caindo em seu colo várias vezes durante um dia de trabalho.
O carro mudou muito, como considero que mude sempre, quando se remove um volante ridículo e se substitui por um de belo desenho e pega, em qualquer carro. Hoje, e sem poder confirmar pois não tenho fotos desse carro, tenho quase certeza que se tratava do volante do Chevette GP.
Quando o carro chegou em casa, no porta-malas havia um sem fim de entulhos largados por aquele tipo de pessoa que faz do carro uma extensão de sua casa. Havia jornais, pedaços de pano, caixas de papelão vazias, fotos bem comportadas de uma mulher que não era a esposa do vendedor, e um paquímetro de aço inoxidável que usei muito durante anos, até que foi devidamente tungado por algum fariseu.
Não, o ex-dono não quis de volta, ele disse que nem se lembrava dele e que não fazia falta. As fotos, dentro de um envelope, meu pai fez questão de devolver, para evitar qualquer problema futuro.
A pintura foi um caso à parte. Na época em que a cera Grand Prix ainda era novidade, era absolutamente normal para uma pessoa de 17 anos lavar e encerar seu carro, já que eram bem poucos os que tinham uma pintura de qualidade que permanecesse bonita por mais de um mês numa cidade poluída como São Paulo.
Foi-se uma manhã inteira de sábado com a lavagem, polimento e enceramento, a ponto de um carro eminentemente feio, ser alvo ao final do trabalho, de duas pessoas que passaram dirigindo em frente à minha casa e voltaram para perguntar se o carro estava a venda. Orgulho pouco é bobagem.
Hoje, quase todas as pessoas masculinas de 17 anos gastam seu tempo com as “redes sociais”, naqueles aparelhinhos portáteis que as fazem tropeçar quando andam, e nem devem saber abrir uma lata de cera. Tristeza.
Além dessa melhorias básicas, os bancos receberam capas novas, de desenho não original, mas plenamente aceitáveis, de fabricação de uma pequena empresa do Norival, amigo de meu pai que as fabricava. Foi um upgrade incrível, o carro parecia ter o interior todo novo, com bancos e volante muito bacanas.
Com ele comecei a aprender a dirigir de verdade, o que sem dúvida trouxe um gosto profundo pela atividade, que tenho até hoje.
Guardadas as devidas proporções e adaptado à cultura sul-americana de miséria, ter um Chevette velhinho na juventude era similar a ter um hot rod nos Estados Unidos pós-guerra, ou um esportivo britânico ou italiano barato e usado na Europa mais ou menos na mesma época, de 1946 a 1960.
Claro que não estamos falando de um carro esportivo aqui, mas o conceito básico de arquitetura de motor dianteiro longitudinal, câmbio debaixo da alavanca de mudanças e tração traseira é o mesmo. Se a construção não era artesanal como dos americanos, tinha um pouco de tecnologia das grandes fábricas de produção em massa, e se também faltava a carroceria aberta de um roadster, o conforto de um teto e vidros compensava no frio e evitava sol na cabeça, coisa que sempre me incomodou.
E meu vinhozinho se foi em um sábado, vendido a um conhecido de meu pai, que ficou muito feliz e usou o carro muitos anos, e eu fui trocando de marca e de carros, até que voltei a um Chevette apenas em 1995, um carro comprado de colega de trabalho, absolutamente novo, uns 7.000 km rodados apenas. Era um modelo L 1,6 litro a álcool, mas, exceto pelo motor, com toda a economia do modelo Junior, a tentativa da General Motors em competir no mercado popular, os carros de 1 litro.
O resultado foi um desastre, o pior de todos os 1 litro do mercado, absolutamente fraco e inviável. Desistiram rápido, e voltaram ao motor 1,6 de antes, mas sem acrescentar nada ao empobrecido carro. Não havia nenhum porta-objetos além do porta-luvas. O pára-sol só descia e subia, não pivotando para encobrir o sol entrando pelo vidro da porta. Os vidros eram transparentes, nem mesmo o pára-brisa era verde. Pneus mais baratos do mercado pré-China, Firestone S-211, que me recordavam o 78 com pneus carecas em toda mínima garoa. Na verdade era pior que os pneus carecas do 78. Buzina de um tom, quase inaudível. Volante de aro fininho e raios em “V” invertido, o mais inconveniente tipo de volante já criado para o interior de um carro. Feio e sem apoio para os dedos polegares em raios na posição certa, o “quinze para as três” pelos ponteiros do relógio.
O console que faltava foi encontrado em loja de acessórios e imediatamente instalado. A sombreira foi jogada no lixo e substituída por uma outra, de Corsa, que precisou de dois furos extras na travessa frontal do teto para ser fixada. Eu mesmo furei, de dentro para fora, e sem atingir o painel externo do teto. Se alguém fosse fazer coisa errada, que fosse eu mesmo, já que nas duas ou três lojas de acessórios em que perguntei, ninguém teve coragem. Deu certo.
O pára-brisa foi trocado por um verde com faixa degradê, barato demais, e bem instalado, sem massa em excesso e sem nenhuma entrada de água. Os pneus deram lugar aos recém lançados Goodyear Aquatred, um dos melhores que já usei, mas que inexplicavelmente desapareceram do mercado. Quando um pneu qualquer daquela medida custava 80 ou 90 dinheiros, o Aquatred em lançamento era 60. Um achado !
A buzina foi trocada por uma dupla, grave e agudo, e a segurança de um bom avisador acústico melhorou muito o uso do carro no trânsito caótico de São Paulo. O volante foi ao lixo também, e entrou um de Vectra / Kadett, de três raios e macio.
Para melhorar um pouco mais, um rádio Blaupunkt com toca-fitas e quatro alto-falantes, dois deles nas portas, em posição ruim, já que a porta do Chevette nunca teve lugar certo para eles. Ficaram bem para trás, mas dava para ouvir as minhas fitas cassete do Rush, e um pouco de noticiário de vez em quando, para não ser um jovem alienado.
Talvez a maior honra desse pratinha tenha sido no dia de meu casamento. Como a cerimônia e festa foram em um sítio, a noiva e o noivo se arrumaram e desarrumaram lá mesmo, e depois de tudo consumado, fomos embora no pequeno Chevrolet, sem nada de vestidos de caudas gigantes, ternos de pinguim nem de carros pretos. Um conforto.
Esse carro ficou alguns anos comigo, perfeito sempre, e foi vendido em situação engraçada. Um colega de trabalho que se sentava ao meu lado, prestando atenção nos papos sobre carros e nas minha opiniões, comprou o carro imediatamente, sem ver de perto. Mal abri a boca dizendo que ia vender, ele disse: “ Eu compro !”. Já me vira de passagem na rua em frente ao trabalho algumas vezes, e o carro, novinho, chamava a atenção dele todas as vezes.
Não precisei baixar preço nem procurar comprador. Transferência bancária no posto dentro da empresa, fomos ao cartório na hora do almoço e pronto. Vendido e entregue em um dia. Coisas que só os amigos e os pais são capazes de fazer por nós.
Assim, sou órfão de Chevettes desde esse dia, sem nunca ter deixado de admirá-los.
JJ