Tenho um grande amigo, o Didú Russo, amigo do peito há 50 anos, que é mestre em vinhos. Ai dele se não tiver um bom vinho, mas bom mesmo, perfeito, a tomar diariamente, nem que seja uma só taça. Vinhos duvidosos, que me descem alegres goela abaixo, travam na dele. Não lhe descem. Conforme ele vai descobrindo traços de má qualidade da bebida, coisas ruins lhe vêm à mente e a garganta lhe trava. Como ele não é alcoólatra, tudo bem; prefere não beber.
Felizmente, para o conhecedor de carros, entre os quais modestamente me incluo, não temos que tragar um carro de uma só vez. Não temos que apreciá-lo ou desapreciá-lo como um todo. Podemos ater nossa atenção às suas boas qualidades e apreciá-las, enquanto deixamos as más um pouco de lado, um pouco esquecidas, e podemos até perdoá-las, caso elas não sejam graves e caso as boas sejam bem boas. Se virmos que ele nasceu um bom projeto e que com poucas correções ficará ótimo, esse, no meu caso, será alvo de críticas mais enfáticas, obviamente construtivas, o que evidencia o meu desejo de colaborar na busca da perfeição. Falta pouco! Vamos lá!
Um carro perfeito não precisa ser um supercarro, não precisa ser superpotente, não precisa ser requintado etc. Basta que ele seja perfeito para o propósito. O Fusca é prova disso. Para o propósito, para a tecnologia da época, era perfeito. O Jeep também, perfeito, exato, mais polivalente impossível. O Lotus Seven, também perfeito. O Morgan 3 Wheeler, também, um precursor e inspirador do Seven.
É importante notar que nenhum dos citados teve o hoje indispensável ar-condicionado, e mesmo assim eram perfeitos.
Me permita o leitor que eu cite aqui uma listinha de mais alguns carros que considero perfeitos. Cada um com seu propósito, cada um em sua época.
Citroën 2 cv, 1948. Barato, econômico, manutenção baratíssima, excelente na lama e na neve. Macio de suspensão. A capota de lona abria de fio a pavio.
Ferrari 250 Testarossa Pontoon Fender, 1957, (apesar dessa frente ser linda e feita para melhorar a ventilação dos enormes freios dianteiros a tambor, ela provocava instabilidade na dianteira quando em alta velocidade, mas só em alta mesmo, acima de uns 250 km/h, por aí). Máquina linda e alucinadamente vigorosa. Meti 210 km/h em uma exata recriação e ela seguiu feito uma rocha. Foi com um desses original, mas com a frente ligeiramente modificada e com um pára-brisa mais alto, que Paul Frère e Olivier Gendebien venceram Le Mans em 1960.
Rolls-Royce Silver Ghost, 1906. Foi o melhor carro do mundo, na época. A mania era então achar que um carro para ser bom tinha que aceitar que lhe metêssemos a 3ª e última marcha e com ela fazer tudo, subir ladeira, rodar suave a 15 km/h etc. Mania. Cada época com sua mania. O Silver Ghost topava isso e muito mais, e em silêncio absoluto.
Bugatti tipo 35C, década de 1920, com compressor. Perfeição mecânica, perfeição estética, perfeição de comportamento. Visceral. Vencedor. O modelo mais vencedor de corridas de todos os tempos.
Porsche 356, 1960. O primeiro esportivo pau pra toda obra. Robusto. Apesar de ter um comportamento sui-generis, bastava entendê-lo para que tudo corresse às mil maravilhas. Era o esportivo certo para no meio da noite partir com a acompanhante para uma estação de esqui, pegar neve brava e ventania no caminho sabendo que iam chegar sem sustos. Na época, nenhum outro esportivo lhe garantiria isso.
Chevrolet Belair 1957. Lindo. Não exageradamente chamativo, como costumavam ser os carros americanos da época. Com bom, potente e confiável motor e bom comportamento dinâmico. Facinho de guiar. As mulheres o dirigiam sem esforço.
Jaguar E-Type conversível, 1961, 6 cilindros. Belo, leve, potente, confortável, comportamento irrepreensível na hora da lenha. Chique como ele só. Perfeito para um gentleman driver.
Ford Modelo A, 1927. O Modelo T foi um grande carro, talvez mais importante que o A, porém o T era tinhoso para dirigir. Já o modelo A é uma doçura, moleza de guiar. Quem já guiou um Jeep Willys, daqueles com câmbio universal de 3 marchas, monta num Modelo A e não há o que aprender para que tudo siga às maravilhas. Talvez o Jeep militar tenha sido feito com essas características justamente para que não houvesse estranhamento, já que não havia americano que não tivesse guiado um Modelo A. Mesma razão para o Humvee, o Hummer militar, ter sido automático, o soldado americano atual mal sabe guiar carro com câmbio manual.
Maserati 300S, 1956. Leve, pequeno, veloz, ágil, belíssimo, comportamento doce.
Lotus 72 F-1, 1972. Pelo que o Emerson Fittipaldi fala dele, pela sua cara de paixão, não há como não acreditar piamente que esse carro foi perfeito.
Citroën DS, 1956. Uma corajosa revolução no design e na mecânica. Confortabilíssimo.
Mercedes W196 F-1, 1954 e 1955. Imbatível na época. Simplesmente imbatível. Não fosse o terrível acidente de um Mercedes 300 SLR na 24 Horas de Le Mans, de 1955 – no qual morreram mais de 80 pessoas, e com isso a fabricante achar que seria melhor abandonar as pistas — a subseqüente história da Fórmula 1 seria outra.
Mercedes W154 Silver Arrow Grand Prix, década de 1930. Motor de 12 cilindros, 3 litros compressor, 650 cv. Também imbatível. No frigir dos ovos, os Auto Unions P-Wagen não foram páreo para ele. Os outros competidores, bom, os outros podem ser chamados de resto.
Honda S600, 1964. A 8.500 rpm gerava 57 cv. Pesava 715 kg. Diminuto. Emoção garantida. Deveriam recriá-lo com uns 50 cv a mais, mantendo o giro alto e cilindrada. Talvez com até um pouco mais de giro. Hoje está fácil.
Lancia Lambda, 1922. Primeiro carro a usar monobloco como estrutura. Leve, carroceria rígida, comportamento anos-luz adiante do que havia.
Lancia B20, 1953. Imagine em 1953 um cupê de quatro bons lugares com motor V-6, transeixo na traseira, suspensão de Dion. Motor projeto do Vittorio Jano. Não é à toa que o Fangio usava um em suas viagens européias. Só depois, quando passou a correr pela Mercedes e ganhou um 300 SL Roadster, é que deixou seu B20.
O caro leitor que, por favor, me ajude e elenque os que acha perfeitos. Na certa esqueci de alguns, na certa.
Ah! Mais um, a Chevrolet Veraneio do meu pai. Como era bom viajar naquela barca!
AK