Coisa de 60 anos atrás, em uma noite fria e chuvosa na cidade de Santos (SP), houve uma emergência médica na família em que o atendimento imediato não foi possível, nem tanto pela falta de disponibilidade de um veículo, mas pela falta de conhecimento em operá-lo. Isso aconteceu com meu avô, quando ele já era moço, casado e com filhos. Diz a lenda que este acontecimento lhe causou um pequeno trauma, prometendo a si mesmo nunca deixar que isso ocorresse novamente com ele ou com qualquer indivíduo que ele amasse.Por conta disso, eu acabei aprendendo a dirigir muito cedo. Com onze ou doze anos eu já dirigia no seu colo, com treze já conseguia dirigir utilizando os pedais e com dezesseis já dirigia como gente grande, quase sempre dentro de propriedade privada, nas vias de acesso do sítio próximo ao litoral paulista. Concomitante, meus primos e irmãos também tiveram o mesmo privilégio e quando estávamos juntos, revezávamos o volante até quase acabar o combustível do tanque. Lembro que quando estava com dezoito anos, prestes a tirar a carteira de habilitação, fui recomendado pela auto-escola a esquecer quase tudo que havia aprendido para conseguir passar no exame. Acreditem se quiserem.
Além de automóvel, também aprendi a dirigir tratores, manobrar carretas agrícolas, andar de moto, montar a cavalo e navegar dentro de uma geladeira.Meu avô não se apegava ao automóvel, mas sim à sua função. Apreciava tanto um carro como um eletrodoméstico. Todos eram imaculadamente malconservados, encardidos e arranhados, andavam com remendos de arames nos pára-choques, peças faltantes e pneus de diferentes marcas. A manutenção preventiva só era realizada por milagre e a corretiva, por providência divina. O carro era comprado zero-quilômetro e vendido praticamente como sucata após centenas de milhares de quilômetros rodados. Ao que tudo indica, sempre foi assim e ele se tornou maior piloto de testes inexplorado dos testes de resistência dos produtos Volkswagen.
Ele era um “gentleman driver” e viajava semanalmente para cumprir sua agenda de consultorias agronômicas no interior paulista. Nestas andanças, geralmente nas férias escolares do meio do ano, ele convidava um ou dois netos para acompanhá-lo em sua jornada nas fazendas que duravam mais ou menos uma semana. Era fantástico. Andávamos por todo o estado conhecendo inúmeras cidades e apreciando algumas festas locais e nos hospedando todo dia em uma residência diferente. Nestas ocasiões tive lições de vida e volante que guardo com muito carinho e me servem hoje na vida adulta.
Certa vez, pedi a ele para deixar a dirigir um pouco em uma rodovia sem movimento que ligava nada a lugar nenhum. A primeira dificuldade foi ter coragem para pedir, a segunda foi manter o carro entre em linha reta. Que sensação! Uma mistura de medo com realização, inesquecível. Ato inconseqüente? Não. Ele tinha a convicção do meu potencial e depositava uma enorme confiança na minha pessoa, contribuído positivamente na fase de transição entre a infância e adolescência, período geralmente permeado pela insegurança. Isso me ajudou a amadurecer mais cedo e entender a amplitude de ser responsável pelos próprios atos. Foi um gesto de carinho feito com atitudes, já que palavras de incentivo não eram de sua personalidade. Esta essência de ensinar é um legado que eu vou levarei comigo, independente do reconhecimento.
Entre chegadas e partidas da vida, aos 86 anos ele viajou mais uma vez, mas para um destino que ainda desconhecemos. Prefiro acreditar que ele está bem, perambulando de vez em quando em um grande seringal ou realizando uma caminhada longa com sua bota sete léguas, pisando em bosta de búfalo com uma capa de chuva amarela. Ele tinha o costume de acordar cedo e da siesta diária, apreciava um cafezinho preto no meio da tarde e um chocolate “Diamante Negro” em ocasiões especiais. Regia com o dedo indicador músicas clássicas enquanto dirigia e se identificava com trecho da canção de Geraldo Vandré: “Quem sabe faz a hora, não espera acontecer”. Por amor a profissão, foi muito reconhecido e condecorado, porém sua maior conquista foi ser um avô excepcional.
Ao meu instrutor muito especial chamado Jayme Vazquez Cortez,
Com carinho,
Rafael Aun
Foto: arquivo pessoal do autor
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