Pesquisando para as seis outras listas neste tema, me impressionei com a quantidade de coisas que acabaram por ficar de fora. Mesmo admirando as criações independentes nacionais ao longo dos anos, pesquisar um assunto para escrever nunca me trouxe tantas surpresas e lembranças agradáveis. A criatividade de nossos conterrâneos quando se fala de carros é incrível. Ou pelo menos costumava ser.
E esta lista é sobre criatividade. Alguns carros desta lista podiam ser colocados em duas ou três listas simultaneamente, e outros, em nenhuma. São réplicas que não pretendem ser réplicas, são conceitos originais inclassificáveis, são jipes, picapes, furgões que fogem da normalidade com todas as forças. Foi a lista mais difícil de fazer, e pela quantidade de coisas que ficaram de fora talvez devesse ser uma lista de 20 melhores.
O fato é que, quando penso que esgotei esta série, outra lista aparece sozinha. Um tema vasto e infindável, que talvez mereça um livro inteiro para ser contado de forma completa. Quem diria…
Mas, de forma resumida, em ordem cronológica, os 10 mais inclassificáveis brasileiros são:
Concorde (1976)
João Storani era empresário de Jundiaí, no interior de SP, nos anos 1970, e colecionador aficionado pelos grandes conversíveis americanos dos anos 30. Packards, Cadillacs, Duesenbergs, todos os grandes da época fascinavam Storani. Tanto que lhe veio a idéia de criar um carro deste tipo com mecânica moderna, para que pudesse usar sua paixão no dia-a-dia.
Nascia o Concorde, um carro que não é uma réplica por não copiar nenhum carro específico, mas que podia muito bem ter sido construído em 1931 por uma fábrica americana de carros de luxo, se não tivesse sido construído na Jundiaí de 1973 partindo da mecânica do Ford Galaxie. O carro seria único, apenas para uso de seu dono, se não fosse o famoso colecionador Roberto Lee, que convenceu Storani a produzi-lo em série.
O Concorde era caríssimo, mas valia cada centavo: um carro de luxo dos anos 30 com a excelente mecânica do Galaxie/Landau e chassi próprio. Como era mais leve que o Ford, era também rápido: apesar de nunca ter sido testado, diz a lenda que chegava a 100 km/h partindo da imobilidade em menos de 10 segundos, excelente para seu tempo.
Apenas 15 carros foram fabricados, e três deles ainda permanecem com a família de Storani, falecido em 1996.
Renha Formigão (1977)
Paulo Renha é figura recorrente nesta lista, aparecendo antes com o bugue Terral e a réplica Dimo GT. Mas depois de seu famoso triciclo com motor VW traseiro, sua mais famosa criação é esta picape, o Formigão. O nome vinha da tentativa de fazer um carro que pudesse levar mais peso que seu próprio; no final podia carregar quase 700 kg, e pesava pouco menos de 800, excelente de qualquer forma que se veja.
O Formigão era também razoavelmente veloz por seu baixo peso, e uma picape extremamente original, com sua cabine avançada e porta-malas dianteiro. Na caçamba, estranhamente, uma caixa aparecia em cima do motor traseiro, para abrigar a ventoinha; segundo Renha, a VW não vendia o motor “deitado” das Variant em separado. Se o cliente fornecesse o motor de Variant, a estranha caixa podia ser retirada, fazendo uma caçamba plana.
Quando fechou sua empresa, o Formigão foi vendido para a Coyote de SP, que rebatizou o carro de “Country”, e como Renha, vendeu a maioria deles em forma de kit.
Furgline (1982)
Furgões grandes baseados em picapes são carros extremamente úteis e versáteis, mas nunca foram produzidos aqui pela GM e a Ford, tradicionais fornecedoras deste tipo de veículo, principalmente por causa do alto investimento necessário para produzir uma carroceria de aço para eles (visto que os chassis já eram produzidos aqui para as F-100/C10 e sucessoras). Foi apenas na década de 1990 que pudemos começar a usufruir de vans grandes, com a abertura das importações, que nos trouxe tudo, de Mercedes-Benz Sprinter a Fiat Ducato.
Mas no início dos anos 80, Waldir Cavenague, empresário de Guarulhos, na grande São Paulo, faz uma viagem com a família para os EUA e lá aluga um Ford Econoline de nove lugares. Maravilhado com a versatilidade da van, e vendo a quantidade delas rodando pelo país, nasce uma idéia em sua cabeça. Como sua empresa, a Furglass, era especializada em carrocerias para veículos de carga em compósito de resina poliéster reforçada com fibra de vidro, seria relativamente fácil produzir um veículo assim, usando mecânica de picape Ford ou Chevrolet.
O Furgline resultante não é uma réplica de um Ford Econoline, mas chega perto. Construído todo em compósito de fibra de vidro em folha dupla “recheada” com espuma PU (poliuretano), e baseado nas F-1000 Diesel, era vendido em concessionárias Ford, e foi grande sucesso durante muito tempo, sucesso este que acabou apenas com a abertura das importações nos anos 1990 e a chegada dos Mercedes Sprinter e similares. O Furgline se mostrou sólido, bem construído, e devido à sua carroceria de construção original, bem isolado térmica e acusticamente.
Um belo exemplo como a criatividade e inventividade tupiniquins ajudavam a cobrir nichos não explorados pelos grandes fabricantes estrangeiros.
Mirage (1983)
Apesar de claramente baseado no Mercedes-Benz SL R107 (1972-1989), o Mirage, carro carioca baseado no Opala, estava longe de ser uma réplica. Era uma categoria de carro chamada aqui de “paquerador”: um conversível exclusivo para passeios tranquilos à beira-mar.
NBM Jornada (1984)
O Jornada, produzido no Rio de Janeiro pela NBM, é outro carro difícil de classificar. O desenho é de um carro moderno da época, aparentava um sedã quadradinho e com faróis retangulares, mas era um conversível com teto rígido opcional. Como os bugues, tinha plataforma de VW 1600 arrefecido a ar, e era construído em plástico reforçado com fibra de vidro, e garantia bom desempenho com peso baixo: 780 kg.
Uma cruza de sedã pequeno dos anos 80 com bugue e carro esporte fora de série: mais um inclassificável.
PAG Dacon 928 (1984)
A fixação de Paulo Goulart, da Dacon, e seu designer favorito, o indefectível Anísio Campos, pelo Porsche 928, já mostrada na traseira e no nome do Dacon 828 (ver a parte número VI desta série) tomou força realmente neste carro.
Não se pode chamar de réplica a completa reestilização do Gol GT inspirada no 928 que criaram, talvez uma réplica vaga apenas. Mas sempre equipado com motores mais fortes que o Gol original, era vendido por uma fábula de dinheiro em 1984, e talvez, naquela época de isolamento total, talvez enganasse alguém…
Ragge California (1986)
Outro carro difícil de classificar: baseado em mecânica VW arrefecida a ar, com ares de hatch contemporâneo, mas “aventureiro”, era quase um precussor da mania atual de pendurar o estepe para o lado de fora do carro e cobrar uma fortuna a mais por isso.
Mas a característica mais legal deste carrinho era o teto traseiro removível, como a Chevrolet Blazer/Ford Bronco americanos, que fazia os passageiros do banco de trás poderem passear de pé. Bem divertido em ambientes praianos, se não muito seguro, nem legalmente permitido hoje em dia…
Engerauto Topazzio (1987)
Agora as coisas ficam realmente esquisitas aqui. Anísio Campos, sempre ele, sempre original, é o autor da obra, talvez a coisa mais maravilhosamente esquisita já criada sobre um automóvel em nosso país.
Parecendo uma criação do surrealista automobilístico suíço Franco Sbarro, o Topazzio, baseado na picape Pampa, era uma cruza lisérgica de uma picape, um sedã e um hatchback. Se colocarmos no pote a origem já maluca da Pampa (meio Renault, meio Ford, meio Autolatina, meio VW), o Topazzio era algo realmente estranho.
Basicamente, era uma picape de cabine dupla, mas que trocando-se a tampa do porta-malas, podia se tornar um sedã ou fastback. De falta de originalidade não sofria…
Envemo Camper 4×4 (1989)
A Envemo pegou a excelente base do Engesa 4 (ver parte III desta série), o painel de instrumentos do Opala, e uma carroceria própria em plástico reforçado com fibra de vidro fortemente baseada no Jeep Cherokee contemporâneo, para criar um SUV nacional de grande sucesso.
Um exemplo de como criar carros com poucos recursos pode dar certo, o Camper sobreviveu ao início das importações, só acabando em 1995, e até hoje é adorado pelos amantes do off-road, que tem com ele toda excelência fora de estrada do Engesa 4, mas com proteção dos elementos e ar-condicionado.
Grancar Futura (1990)
O grande Toni Bianco, outra figura recorrente nesta série, se juntou com Armando Jorge Neto, dono da concessionária Ford paulista Grancar, para criar esta minivan.
Baseada no Ford Del Rey, e inspirada fortemente na Renault Espace francesa, era um carro muito bom e competitivo na época, mesmo com os importados. A Grancar importou uma Espace para ser copiada, e ele foi realmente a base do projeto, mas o carro final é único, com soluções originais e diferentes. De novo, só o fato de ter a base Del Rey, e motor VW 2.0 de Santana, o tornam eminentemente brasileiro, um jeitinho ambulante.
O painel é derivado do Del Rey e a carroceria, como a do Renault, é de plástico reforçado com fibra de vidro. Mas a concorrência com a inundação de importados nos anos 1990 rapidamente acabou com a promissora idéia já em 1991. Apenas pouco menos de 160 unidades foram fabricadas.
Mas uma inclassificável criação que só podia ter sido criada no Brasil!
MAO