Tenho duas características que de certa forma me definem: sou uma pessoa bastante bem humorada e não fujo de uma discussão. Quanto ao primeiro item, tudo bem. Próximo… Como vocês bem sabem, estou trabalhando para melhorar este segundo aspecto da minha personalidade, mas aí tenho algumas coisas que preciso esclarecer, meio a título de habeas corpus. Além de ser argentina e taurina sou neta de espanhóis (galegos), bascos franceses e italianos (para minha sorte, do Norte, genoveses, pelo menos isso…). Em outras palavras, como posso lutar contra tanta carga genética?
Isto posto, entendam que fugir de uma discussão é algo que me custa muito, mesmo. Mas também há coisas que acho que nos definem como pessoas, como cidadãos. Se não tivermos opinião, ou se não discutirmos certas coisas, se não deixarmos de nos conformar com alguns fatos, o que nos diferenciará de cordeiros? Ou de formigas? Ou de alienados?
Sei que o assunto é polêmico e o começo do ano é momento de novos planos (vocês também prometeram voltar à academia em 2015?), esperanças (o fim da corrupção no Brasil, por exemplo) ou apenas torcer para que este ano seja melhor do que o anterior, mas três fatos correlatos nas últimas semanas me deixaram preocupada: um caso intencional e dois, aparentemente sem dolo, de pessoas que deixaram crianças trancadas dentro de veículos que acabaram morrendo. Daí eu ter de deixar de lado minha primeira característica, pois não há bom humor que resista a este assunto.
No intencional, uma motorista de transporte escolar foi à manicure e trancou durante duas horas uma criança dentro do veículo enquanto fazia as unhas. Não se esqueceu dela, não. O fez de propósito, provavelmente achando que não aconteceria nada. Inicialmente disse que teve um mal súbito, mas quando foi confrontada com testemunhos do salão onde esteve, acabou reconhecendo a verdade. Aliás, mais uma vez alguém tentou se esconder atrás do “mal súbito”. Como dizem lá em Sorocaba, ô inferno! Nos outros dois, os próprios pais foram os autores.
Basicamente, o caso se repete. Às vezes dizem que não tinham o hábito de levar as crianças à creche e foram diretamente ao trabalho, às vezes simplesmente esquecem de deixar na creche – mas uma mãe lembrou de ir buscar a criança que não tinha deixado pela manhã. Sei o quanto a rotina nos faz repetir comportamentos, embora não me enquadre nessa categoria. Apenas porque quando tenho de fazer algo diferente no meio do meu caminho de todo dia presto mais atenção do que o normal – não ligo o rádio, por exemplo, para evitar a menor distração, entre outras coisas.
Mas o que mais me surpreende nestes casos é como pode alguém dirigir por vários quilômetros sem olhar no retrovisor interno. Sim, porque pelo menos em um caso a cadeirinha estava colocada no meio do banco traseiro, corretamente fixada. No outro não havia fotos, mas mesmo assim. O Bob Sharp já escreveu diversas vezes sobre a visão periférica que nós todos temos. Será que estas pessoas dirigem como cavalos de carroça, com obstáculos nas laterais dos olhos para que não enxerguem para além da frente? Em nenhum momento olharam para trás? E quando fecham o carro não olham para ele?
Sinceramente, não consigo acreditar. Não quero pensar que pais trancariam um filho de propósito num carro, pelo menos não sabendo das conseqüências, o que os qualificaria como péssimos pais. Vou me ater apenas a criticá-los como motoristas, mesmo correndo o risco de parecer leviana. Não olhar nem uma vez o retrovisor interno? E olha que os dos meus carros são realmente pequenos e os coloco de forma a ver o máximo do vidro traseiro. Mesmo assim, me poupe…
Lembrete – Claro que estes casos não são exclusividade do Brasil e pesquisei bastante antes de me debruçar sobre este tema. Nos Estados Unidos, país que adora uma estatística e tabula tudo, entre 1998 e 2014 morreram 636 crianças trancadas dentro de automóveis – e a maioria tinha menos de cinco anos. Há casos (29%) em que os pequeninos entram sozinhos e acabam ficando presos, mas a maioria (53%) foi esquecida, mesmo. Outros 17% foram deixados intencionalmente e 1% não se sabe como terminaram dentro do veículo.
É fácil que dentro de um carro a temperatura seja 10 ºC superior à externa. Sem contar com que a temperatura de uma criança sobe cinco vezes mais rápido do que a de um adulto, segundo um levantamento do renomado Hospital Johns Hopkins. Quando a temperatura corporal da criança atinge 40 graus, os principais órgãos começam a entrar em colapso e a partir de 41,7 ºC pode ocorrer a morte, como bem sabe qualquer pai ou mãe que já correu para o pronto-socorro de madrugada com o filho no colo. Imaginar o que acontece com uma criança trancada dentro de um carro por várias horas gera imagens de filme de terror na minha mente. Difícil de apagar e mais difícil ainda de aceitar.
Já vi muita gente voltar ao carro porque esqueceu o celular no console ou entre os bancos – e o aparelho pode ficar realmente imperceptível muitas vezes. Mas estes pais não voltaram para buscar as crianças. Aliás, se alguém consegue se esquecer do filho no carro pode programar um alarme no celular para lembrá-lo disso. Me soa absurdo, mas é menos absurdo do que empurrar essa responsabilidade para os fabricantes de veículos – sim, já ouvi gente dizendo que os carros deveriam ter algum tipo de alarme para isso. Incrível, mas tem gente que sempre culpa os outros por tudo, e se esquece de assumir as próprias obrigações.
Nos Estados Unidos já tem cadeirinhas com dispositivos de segurança e chaveiros de proximidade que “avisam” quando a chave fica longe da cadeirinha. Mas me pergunto se alguém capaz de esquecer o próprio filho lembraria de programar o alarme.
Mudando de assunto – Nas três últimas semanas caíram quase 1.000 árvores em São Paulo. Além das vidas perdidas, do estrago ambiental e dos prejuízos, o trânsito fica um inferno. E a Prefeitura, que tem a exclusividade da manutenção das árvores, não faz seu trabalho, as concessionárias de energia que tem obrigação legal de enterrar os fios não cumprem a lei e um responsabiliza o outro. Na verdade, todos são culpados. Já que o Ministério Público não faz o que deveria, como jornalista gostaria que a imprensa divulgasse o nome do prefeito, do subprefeito e do presidente de cada concessionária de energia cada vez que isso acontecesse.
NG
Foto de abertura: huffingtonpost.com
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