Peter Egan é um colunista americano que por décadas escreveu uma deliciosa coluna na revista Road & Track. Sua coluna falava apenas sobre um assunto: sua própria vida com automóveis. Como todo americano de classe média, Peter tem uma vida automobilística muito interessante, cheia de carros novos, carros usados, motocicletas de todos os tipos e muscle cars velhos e novos. Mas sua real paixão eram os carros (e motos) esportivos clássicos, dos anos 60 principalmente, e ingleses em sua maioria.
Acompanhávamos mês a mês suas longas reformas de Porsches 356, Jaguares E-type, motos Triumph, velhos Lotus de todos os tipos, e carros de corrida antigos. Peter é um artista da pena, e seu estilo calmo, auto-depreciativo, contemplativo e filosófico me marcou profundamente, e até hoje me faz voltar regularmente às minhas estantes de Road & Tracks antigas para uma pequena dose de memórias gostosas. A gente se sente, mesmo sem nunca ter falado com ele, como velhos amigos.
Mas conto isso porque algo que sempre me lembro dele é que, contrariando a vasta maioria da população americana, que sempre tem um picape na garagem, Peter preferia usar uma série de furgões, invariavelmente Ford Econoline, no seu dia-a-dia. Sempre comprava-os usados com coisa de quatro anos de idade, e usava-os por muitos anos até trocar por um mais novo. A história de como comprou sua primeira Van é Egan at his Best: conta ele que estava num estacionamento de uma pista de corrida, dentro de sua perua Ford, depois de ter rebocado seu carro de corridas antigo para uma prova do SCCA (Sports Car Club of America, o clube que sanciona corridas amadoras de carro esporte nos EUA), nos anos 80.
Chovia muito, e ele praticava um contorcionismo danado para se enfiar dentro do macacão de corrida dentro da perua. O porta-malas estava abarrotado de peças, pneus e ferramentas, e os vidros embaçados pelo menos impediam que suas partes pudentas ficassem totalmente visíveis. Uma situação lamentável e desconfortável. E o pior é que depois de vestido, tinha que esperar ali dentro mesmo, pois lá fora não existia lugar para se proteger da chuva.
Foi quando, limpando um vidro embaçado, viu um amigo dentro de sua Van Chevrolet. A Van estava com a porta lateral aberta e o sujeito, já vestido tranquilamente com espaço de sobra para ficar praticamente de pé, descansava bem sossegado, sentado num banquinho, com um copo de café na mão (preparado ali mesmo na traseira do furgão num fogãozinho portátil), olhando a chuva cair. Egan pensou na hora: talvez seja a hora de comprar uma van…
Uma historinha sensacional, porque mostra de forma bem prática e divertida as vantagens deste tipo de veículo. Uma van mantém sua carga seca e livre de pó, e este vasto compartimento de carga pode ser acessado por dentro, sem precisar sair do veículo. Certa vez Egan usou sua enorme Van Econoline para levar duas motos de corrida e dois amigos por mais de 500 quilômetros, no conforto do ar-condicionado e da proteção da chuva, até um evento na Flórida, onde podiam competir de moto. Não é fantástico?
Tenho uma vasta história com picapes, desde pequeno. Uma foto que gosto muito, de 1969, mostra um bebê MAO no colo do seu pai, tentando dirigir a picape Chevrolet C-14 que era da companhia de mineração na qual o pai trabalhava. Lembro-me muito bem de quando, muito tempo depois, meu falecido pai (que o Senhor o tenha em bom lugar) tinha um sítio perto da cidade mineira de Juiz de Fora. A primeira coisa que ele fez ao se mudar definitivamente para o sítio foi comprar uma picape, depois de décadas urbanas andando de Opalas, Monzas e Chevettes.
Afinal de contas, em sua nova condição de sitiante ela devia ser completada com um veículo que combinasse com a situação. A família só comprava Chevrolet então, seguindo velha tradição iniciada pelo meu avô materno com um Chevrolet 1937. Acabamos não com um, mas duas picapes (ou próximo disso): uma das últimas C-20, com o velho motor 4100 de Opala, mas já equipado com injeção multiponto, e uma das primeiras Blazer derivadas de S10, uma perua básica manual, com motor quatro-cilindros de 2,2 litros e injeção monoponto. Dizer que foram escolhas trágicas é pouco; basta dizer que a tal tradição em dois anos foi sumariamente abandonada.
A C-20 era um carro muito legal, que eu gostava muito. Nas estradas de terra desertas que circundavam nosso sítio, o motorzão de torque abundante e a traseira leve fazia da picape um carro divertidíssimo , e andar com a traseira “solta” me ensinou muita coisa nesta época. Mas no uso normal do sítio, não era lá grande coisa. Como raramente chegava a carregar peso suficiente na caçamba para melhorar a tração, às vezes ficava imobilizada até em cima de grama molhada.
Era algo estranho para meu pai, que se acostumara com a Pampa que tínhamos antes para trabalho, que não atolava nunca, era um tração-dianteira com pneus Pirelli M+S. Quando ia “à cidade”, no caso Juiz de Fora, era um sofrimento: a construção de chassi separado, somado à caçamba vazia e feixes de molas atrás, fazia da C-20 um carro extremamente desconfortável nas estradas de terra esburacadas. E na cidade, seu tamanho não combinava com as ruas estreitas e os estacionamentos absurdamente apertados desta cidade mineira. Fora que consumia muito combustível e no trecho de estrada asfaltada não era lá grande coisa em desempenho.
Mas ainda pior era a Blazer; esta parecia realmente que ia desmontar nas estradinhas, e o motor 2,2 litros era, além de extremamente lento e beberrão, uma coisa vibradora e barulhenta. E era pouco confiável, um problema que, junto com a propensão a atolar à qualquer chuvinha, infelizmente compartilhava com a C-20. Aquela Blazer acabou com a admiração por Chevrolets que cultivávamos na família por décadas em apenas dois anos.
Trocamos a Blazer por um Renault Scénic azul em 1999. Uma vanzinha de passageiros, em vez do utilitário. Com monobloco, um motor de dois litros forte e econômico, foi infinitamente melhor. Nada quebrou, era muito mais confortável na terra, muito mais estável e rígida, e nunca atolava. A C-20 foi trocada por uma Saveiro, com resultados semelhantes.
Na verdade, a grande diferença aí é a construção de chassis separado, e a tração traseira em veículos de carga que quase nunca andam carregados. O Chassi separado, apesar de necessário em aplicações extrapesadas, é ultrapassado completamente pelo monobloco em veículos de passeio e uso misto. Muita gente ainda hoje usa picapes com chassis (S10/Ranger/Hilux/Amarok/etc) acreditando que as parrudas peças de suspensão e chassis colocam eles em vantagem em terrenos acidentados, onde durariam mais e agüentariam abusos. Mas na verdade estes componentes estão lá apenas para agüentar o paquidérmico peso do próprio veículo, e mais um tanto de carga, que normalmente é metade de seu peso total, ou algo perto disso. Uma van monobloco, como a velha Kombi, carrega o seu próprio peso em carga. O chassi separado traz desvantagens múltiplas, que vão do pior comportamento estrutural em acidentes à menor rigidez do conjunto, e o maior peso. Algo ultrapassado completamente.
Mas hoje as picapes são usadas principalmente no asfalto mesmo, como veículos urbanos que agradam seus donos simplesmente por sua altura, peso e características distintas. Não faz sentido logicamente, mas a lógica nunca foi um forte argumento de vendas, então elas permanecem vendendo muito bem, obrigado.
Mas mesmo as picapes monobloco como nossas saudosas Pampas e Couriers, e os atuais Strada, Saveiro, Montana e outras do tipo, que fogem de todos estes problemas e se são veículos muito mais sofisticados em comportamento e desempenho, ainda assim, hoje, parecem para mim muito menos úteis que as vans.
Muito disso, é claro, vem do fato de que estou completando um ano neste mês como feliz proprietário de um velho (14 anos de idade!) Citroën Berlingo. Na verdade, esta matéria nasceu agora há pouco, quando fui levar o lixo da semana ao ponto de coleta, levar a lavadora de alta pressão ao conserto, passar na padaria e levar meu filho mais novo e três amiguinhos até uma festinha num sítio. A lavadora Kärcher, dois sacos gigantes de lixo orgânico (o jardim faz lixo pacas) e um de reciclável, e a molecada com suas mochilas, tudo entro no carro com folga. Abri o teto de lona (elétrico) e fiz tudo que tinha que fazer.
Sim, uma picape cabine dupla faria o mesmo, mas de forma muito menos eficiente e, por que não dizer, alegre, tenho certeza. Dirigir o Berlingo é uma delícia, sempre leve aos comandos, leve ao rodar, mais estável, e mais divertido, mais econômico e mais eficiente. E se fosse uma viagem com a família com malas, e até uma bicicleta pequena, tudo iria dentro dele protegido das intempéries, coisa que sempre é problema com picapes. Já trouxe geladeiras e armários para casa, regularmente encho o porta-malas de lenha para o forno e já coloquei três bicicletas de pé ali, e mais três pessoas com cinto afivelado dentro. É um carro incrivelmente versátil.
Uma picape monobloco, mesmo as pouco práticas picapinhas de cabine dupla modernas, apesar de serem veículos ainda mais estáveis e tão eficientes quanto o Berlingo, perdem em versatilidade comparativamente: com cabine simples, são veículos limitados no dia-a-dia de uma família e, se de cabine dupla, são sedãs com menos espaço no banco traseiro e de porta-malas abertos à poeira e chuva. Já as picapes de chassi separado, perdem em versatilidade e como veículos. Olhando logicamente, furgões de passageiros pequenos como o Berlingo e o Doblò ganham sempre.
Por que o sucesso das picapes e o restrito mercado dos furgões então? Simples: a lógica, como já disse, é um argumento de vendas débil. Uma picape passa uma imagem de robustez, de força e poder. Seu dono projeta a imagem de rústico fazendeiro, de esportista radical, de homem forte. Já um furgão passa a imagem de funcionário da companhia de luz e força indo realizar mais um reparo, vestido de macacão, debaixo do sol escaldante. Como explica este videozinho da Chevrolet, simples, mas educativo ao extremo.
Apesar da comparação ser inevitável na minha cabeça, na realidade são carros incomparáveis… Vans são para ser usadas, e não admiradas ou mostradas com orgulho em festas de peão boiadeiro. Precisam de um tipo diferente de pessoa para admirá-las. Eu, pelo jeito, sou uma delas.
MAO