Minha paixão por carros e motos é antiga. Diria até que não me lembro do dia em passei a amá-los. Assim, desde muito pequeno, acompanhando as revistas de carros e motos, observava os roteiros de aventuras. Um deles em particular me fascinava: Ushuaia, na Argentina.
Já adulto, outras prioridades sempre entravam na frente dessa grande aventura que eu queria fazer, ir rodando até a cidade mais austral do mundo. Mas em 2012, já relativamente estabilizado e com disponibilidade de tempo, convenci a Lu, minha mulher, de que era a hora de encararmos essa epopéia. Aqui, cabe colocar que em 2007, em nossa lua-de-mel saímos de Brasília e fomos até Buenos Aires, o que achamos relativamente tranqüilo. Utilizamos para tal uma Montana Sport. Aliás, como eram lindas as Montanas da geração anterior!
Mas em 2012 já não possuía a bela picapinha. Tinha um problema: meus dois carros, embora muito queridos, não me inspiravam confiança para a empreita: um Astra belga 1995, e um belo Vectra CD 1997. Ambos beiravam os 300 mil km. E eu não tinha dinheiro suficiente para comprar um carro mais novo e nem queria me desfazer desses velhos Chevrolet. A solução estava na garagem: uma Honda Hornet novinha. É. Tive que “passar nos cobres” aquela verdadeira delícia de 600 cm³. Até pensei em ir nela, mas a mulher falou que de jeito nenhum…
Dinheiro da Hornet na mão, e vamos escolher o companheiro da viagem. Exigências: robusto, mecânica conhecida, bom desempenho, estradeiro, câmbio longo, boa autonomia. Ah, e o orçamento era limitado, em torno de 25 mil reais. O vencedor: um Astra hatch 2009.
Encontrei um pouco rodado, 25 mil km, e em ótimo estado. Mesmo assim, fiz uma revisão, e corri atrás dos itens que poderiam ser cobrados pelos policiais dos países vizinhos: dois estepes, cambão, lençol branco…
A preparação da papelada também consumiu um bom tempo: documentação do carro em ordem, sem alienação e em meu nome, carta-verde (item mais que obrigatório: todo policial exige), ampliação da cobertura do seguro do carro, plano de saúde internacional, vacinas…ufa!
Partimos em 16 de outubro de Brasília, e demos uma esticada até Curitiba, quase 1.400 km. Fomos muitíssimo bem recebidos por pelo primo André e sua querida família. Descansamos dois dias na agradável capital paranaense.
Renovados, partimos para próxima parada, Gramado. Fizemos uma opção interessante: em vez de descermos pela BR-116, optamos pela BR-101, antes utilizando a BR-376, e já no Rio Grande do Sul, chegar a Gramado por uma estrada conhecida Rota do Sol, a estadual RS-453. As três estradas têm trechos maravilhosos, espetaculares, em especial a última. Realmente vale a pena. Chegamos a Gramado antes de meio dia, o suficiente para curtir um pouco a cidade, muito aconchegante.
No dia seguinte, já prevíamos a saída do país. Cedo pegamos estrada, também muito bela, a descida de Nova Petrópolis a Porto Alegre, pela-116. Já com o sol forte do início da tarde, cortávamos a Reserva do Taim, com sua natureza exuberante. Em Chuí, cambiamos algum dinheiro e tocamos com destino a Punta del Este. Estrada de asfalto impecável e muito pouco movimento. Chegamos rapidamente a Punta, onde pernoitamos. Aqui uma observação: a diversidade da frota uruguaia é um espanto, vê-se literalmente de tudo: chineses, puros-sangues europeus, americanos, brasileiros, argentinos. Tudo nos mais variados estados de conservação.
Manhã seguinte, pé na estrada. Meta: chegar a Buenos Aires, utilizando o serviço de balsas, chamado por eles de buquebus, algo como embarcação-ônibus. Seguindo a indicação do GPS fomos pelo interior do Uruguai até Colónia del Sacramento, onde embarcamos. Em pouco tempo estaríamos em solo argentino.
Passamos três dias em Buenos Aires. Em um dos passeios, até a cidade de Lujan, distante cerca de 70 quilômetros, me fez perceber como que, em se tratando de trânsito, há algo muito errado por aqui. Pegamos uma autoestrada, a mesma que leva ao Aeroporto de Ezeiza e que corta grande parte da capital. Qual foi a minha surpresa ao ver o limite de velocidade 130 km/h! Não acreditei! Já havia reparado que o trânsito estava fluindo rápido, a uns 120 km/h. Tudo tranqüilo e sem sobressaltos. Resolvi então experimentar andar no limite indicado, mas pelo GPS. Pista da esquerda e 140 km/h no velocímetro. Sem problema. Ninguém travando a pista da esquerda, e nada de pardais que visam somente a arrecadação. Estamos muito atrasados nesse aspecto, concluí.
Mas a viagem tinha que seguir ao sul, agora com destino a Viedma. Estradas boas, porém chuva. Aqui, um erro: estava já com os pneus relativamente desgastados, com 3,5/4 milímetros. Só confirmou aquilo que eu já tinha como verdade: pneu meia-vida é, na verdade, meia-morte. Aquaplanagens foram muito freqüentes. Devia ter saído de pneus novos.
Pernoite em Viedma, e continuamos descendo. Agora o destino é Puerto Madrin. As atrações dessa cidade ficam em suas imediações, como a península Valdez. A fauna impressiona. O acesso é quase sempre por estradas de terra. Aqui a diferença das nossas: bem largas, com manutenção freqüente, patroladas. Anda-se a 80 km/h numa boa, com o carro flutuando deliciosamente. Impossível não lembrar das histórias dos carreteras argentinos, que cortavam estradas de rípio a 200 km/h ou mais. Isso há mais de 50 anos!
Dois dias depois, prosseguimos rumo ao sul. Sempre pela Ruta 3. Nas imensas e desertas retas, procurava andar na velocidade de cruzeiro de 140 km/h. Por que não mais? Primeiro, poupar o carro e o consumo de combustível, pois os postos eram sempre muito distantes um do outro. Ainda assim, médias de mais de 13 km/l foram freqüentes. Gasolina sem álcool é outra conversa. Segundo: a força dos ventos patagônicos! Andávamos com o volante esterçado, a ponto de marcar levemente o ombro dos pneus. Ultrapassar era um desafio, assim como o deslocamento de ar dos veículos no sentido contrário. As carretas andam de lado, realmente impressionante. As ultrapassagens inspiram outros cuidados, além dos tradicionais: o padrão de uso das setas lá é o contrário do nosso: seta para esquerda, pista livre. Seta para direita, carro no sentido contrário.
Comodoro Rivadavia, San Julian, Rio Gallegos… chegamos à fronteira com o Chile. Sim, embora Ushuaia esteja na Argentina, obrigatoriamente se passa pelo Chile. Inclusive, a questão fronteiriça entre esses dois países não é pacífica. Chegamos então à passagem pelo Estreito de Magalhaes, feita por ferry boat. Emocionante, dar-se conta que chegou até ali rodando. Até ali, mais de 7.000 km. Pegamos novamente uma estrada de cascalho, não tão boa, sol forte e muito frio, 3º C. Novos trâmites aduaneiros –— agora Chile-Argentina — e pousamos em Rio Grande. Por sorte, um hotel excelente estava com uma superpromoção. Um presente. Descansamos realmente.
Dia seguinte, chegaríamos ao nosso destino. Pegamos a estrada, belíssima, e fomos cortando as montanhas nevadas. Andando naquele ritmo rápido gostoso, ao mesmo tempo curtindo a paisagem, ansiosos para chegar, e curtindo uma discreta pilotagem. Quase não falávamos, só curtíamos. Nessas incríveis coincidências, começa a tocar “Enjoy the silence” da banda Depeche Mode. Difícil uma “moldura musical” melhor para esse quadro!
Chegamos. Satisfação, Gratidão. Passamos quatro dias por lá, muitos passeios. Agora a volta. Mais 8 mil quilômetros. Não adiantava desanimar, o caminho seria construído quilômetro a quilômetro, pacientemente. Primeira parada, El Calafate. Absolutamente lindas as atrações como os glaciares e Torres Del Paine. Encontramos dois casais de brasileiros, num Vectra e numa Hilux, que subiriam até Bariloche pela ainda rústica Ruta 40. Melhor oportunidade impossível. Na véspera, porém, desisti. O cansaço falou mais alto. Ainda estávamos longe demais de casa, e isso alongaria ainda mais a viagem. O fato de termos sido relativamente displicentes com a alimentação acentuou o cansaço. Tínhamos que voltar.
Volta mais direta, quase que o caminho de volta, só que mais rápido. Optamos por sair pelo nordeste argentino, o que não foi uma boa opção. Alguns trechos de estrada ruim, e o azar de pegarmos um policial corrupto. Detalhe: fomos parados certamente mais de 10 vezes, mas sempre muito bem tratados pelos policiais. Infelizmente, esse fugiu à regra. Como se não bastasse, um problema na aduana com nossos passaportes, que além do desgaste, nos rendeu uma multa. Era de fato hora de voltarmos para o Brasil. Esses contratempos não tiram o brilho dos argentinos, que sempre nos trataram muito bem, não raro com carinho. Retornamos ao Brasil por Uruguaiana (RS), onde pernoitamos.
Subindo pelo oeste de Rio Grande do Sul, Santa Catarina, e Paraná, chegamos a Foz do Iguaçu, para uma parada de três dias. Impressionante é pouco para descrever as Cataratas e a usina de Itaipu.
Saímos de Foz, pousamos em Londrina, para então no último trecho chegarmos em Brasília. Viagem sob forte chuva, mas tudo bem. Carro na garagem, depois de 25 dias e 16 mil km. Nos olhamos como que afirmando “missão cumprida”. Nessa hora, um dos faróis apaga. O nosso único problema mecânico na viagem: uma lâmpada queimada!
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