Não sou daqueles que adoram “ter razão”, estar sempre certo. Me contento com a filosofia do relógio parado (aquele de ponteiros): se tiver certo duas vezes por dia, já está de bom tamanho. Mas, agora vale um “eu não disse?” Dessa vez minha previsão de sucesso do Honda HR-V (leia a matéria Honda HR-V, a ousadia japonesa) me trouxe um prazer especial, já que o sucesso foi muito além do previsto e ainda mais em tempos de crise e retração de mercado. As vendas de automóveis já caíram cerca de 20% em 2015. No segundo mês de vendas, em abril, o HR-V já conseguiu quase 5.000 unidades vendidas (exatas 4.957), batendo de longe o Ford EcoSport e Renault Duster. Aliás, é necessário somar a venda dos dois (EcoSport 2.920 e Duster, 2.893, praticamente empatados) para passar o HR-V.
Claro que pode haver influência e a força da novidade, mas fontes não oficiais garantem que a produção já está vendida até agosto, o que indica estrada livre para o novo crossover/SUV da Honda.
Não sou considerado um jornalista “de mercado”, ou de economia. Sou um escriba “de produto”, voltado para o carro em si. Nossos simpáticos coleguinhas jornalistas nos definem da seguinte forma carinhosa: “se estou com o Bob e o Calmon e estamos falando de mulher é porque alguém atropelou uma”.
Claro que é maledicência e gostamos muito de carros e de mulheres (às vezes, nessa ordem).
Mas, apesar de ser “de produto”, décadas de lançamentos da indústria automobilística nos ensinaram muito. Mesmo sem querer, a gente acaba desenvolvendo um feeling sobre carro que vai emplacar e outro que o destino é o naufrágio comercial. Nada a ver com gosto pessoal: se acho um novo carro ótimo e gostaria de comprá-lo, provavelmente vai vender pouco. Qual é o consumidor que começa a ver um carro pelo motor e pelo ronco do escapamento, pelo barulho de aspiração de ar? Aliás, neste quesito de “gargarejo”, de ar entrando rapidamente para o motor, os Alfa Romeo continuam campeões.
E realmente começo a analisar um novo veículo pelo motor: existe carro ruim com bom motor, mas dificilmente um bom carro tem um motor ruim. Como cliente, sou a exceção da exceção.
Tanto que pessoalmente não tenho grande atração pelo HR-V, nem o colocaria na minha lista de desejos. Dentro dessa marca nissei, sou muito mais um Civic ou um City.
Mas profissionalmente é possível identificar quando um lançamento atende ao que o consumidor quer naquele momento.
Vamos tentar identificar algumas razões desse sucesso, mesmo que estas razões muitas vezes não obedeçam muito a raciocínios lógicos:
1) SUVs estão em alta no mundo todo e muito especialmente no Brasil, mesmo com a crise econômica e com objetivos “ecológicos” globais, que pedem carros menores. E ainda que HR-V não cumpra com fidelidade as definições clássicas de um Sport Utility Vehicle (cara de jipão, tração nas quatro rodas etc.), o consumidor o vê como SUV e ponto final. E ele vira “aspiracional”, palavra da moda dos marqueteiros.
2) Há uma crise político/econômica/financeira brava por aqui e tudo fica mais difícil. A maioria dos fabricantes (principalmente os tradicionais) enfrenta uma grande queda de vendas, exceto os japoneses (Honda e Toyota) e a coreana Hyundai (com seu HB20), que crescem em vendas. Motivos? Na minha visão, em tempos recessivos as decisões são mais cuidadosas, quase racionais. E comprar um produto com “boa reputação”, de marcas reconhecidas pela confiabilidade e durabilidade sempre parece uma decisão mais sensata em épocas de “vacas magras”.
E principalmente os japoneses trabalharam décadas para ter essa “boa reputação”.
3) Além de qualidades mecânicas ou de performance, o HR-V agrada à maioria dos consumidores pela estética. Mesmo não sendo, passa a imagem de um SUV, de um topa-tudo pelo seu porte, desenho intimidante, rodonas, posição mais elevada para dirigir… Vender carro bonito, no qual o dono se sente valorizado ao volante, é bem mais fácil. Vender feiura é muito complicado, o Etios que o diga.
Lembro de ver pela primeira o Peugeot 206 em algum salão europeu no final do anos 1990, sabendo que ele seria vendido aqui e nacionalizado. O pessoal da Peugeot me perguntou o que achei. Minha resposta: “Vocês terão um problemão daqui alguns anos. Quero ver vocês criarem o sucessor para um carrinho tão bonito e que vai vender bem”. E assim foi: o 206 praticamente implantou a Peugeot por aqui e o 207 (ainda mais o nosso “206 e ½”) naufragou feio. Ainda agora, com o 208 e o 2008 a Peugeot continua tentando se levantar.
4) O sucesso do HR-V era “bola cantada” desde o lançamento do novo Fit, em 2014. Boa parte dos jornalistas olhou para o Fit, fez o test-drive e a previsão de muitos “coleguinhas” era de que o carrinho iria vender muito. E assim foi. Mesmo com várias diferenças, mas guardando boas característica de “Fitão”, o HR-V mostrou que iria pelo mesmo caminho.
5) O preço do HR-V, de R$ 70 a 88,7 mil, que a maioria achou alto, não parece assustar ninguém.
Aí surgem outras questões, principalmente quem vai encarar melhor a disputa do segmento, com o EcoSport e Duster perdendo posições. Acredito que este concorrente está apenas começando sua carreira. Claro, se trata do Jeep Renegade, que ainda está em ramp-up, na aceleração de produção. A fábrica da FCA (Fiat Chrysler Automobiles, lembrando que a marca Jeep pertence à Chrysler desde 1987 e agora, à FCA) em Goiana (PE) é realmente impressionante, inclusive por sua capacidade produtiva inicial instalada, de 250 mil veículos ano. No entanto, mesmo em uma fábrica tão informatizada e automatizada, não basta apertar um botão e os carros começarem a sair da linha de montagem. Muito tem de ser ajustado e “lubrificado” para que a produção ganhe velocidade, sem perda de qualidade. Até problemas difíceis de prever acontecem, como carretas entaladas em viadutos em Recife, já que uma via perimetral para melhor escoamento da produção da Jeep ainda não saiu do papel e da promessa.
Além disso, os mais de 100 revendedores da Jeep são todos novos e certamente também necessitam de ajustes para operar a pleno vapor.
Mais difícil ainda é descobrir qual a força da marca Jeep em um produto nacionalizado, que traz de volta um nome que está muito mais na memória de gerações mais velhas.
Exatamente por tudo isso, deve ser um belo duelo entre dois produtos do mesmo segmento com características bem diferentes: um HR-V mais para crossover contra um Renegade bem SUV, com aparência mais tradicional, como a própria marca diz, um Jipão.
E tem mais novidade: as vendas iniciais da ainda pequena produção da Jeep indicam para uma a procura maior que o esperado das versões mais caras do Renagade, equipadas com motor 2,0 turbodiesel.
Novamente, façam suas apostas, senhores. Esta briga promete muitos capítulos e boas emoções.
Aproveito para parabenizar todas as mamães pelo seu dia!
JS
Nota do Escriba: em matéria de “SUV que não é SUV”, o Mercedes GLA é campeão. Claro que é um belo Mercedes, rápido no asfalto, mas é tão SUV quanto qualquer hatch da vida.