A lista que publiquei recentemente sobre peruas foi uma das mais difíceis que já fiz. Muita coisa ficou de fora, pelo simples fato de que existem vários tipos de peruas, de esportivas exóticas e pouco práticas até veículos eminentemente utilitários, e milhares tons de cinza entre estes dois extremos. Tentando cobrir um pouco de cada época, um pouco de cada tipo, e um pouco de cada nacionalidade, acabei por deixar muita coisa de fora. Mas as listas são assim mesmo, não há como fazer uma definitiva.
Mas o que sobrou daquela é tão legal, e o assunto é tão caro ao coração do entusiasta (aquele sujeito estranho, anacrônico, esquisito, que habita as sombras de fóruns antigos de internet, track-days e postos de gasolina na lagoa) que resolvi voltar ao assunto.
Aqui vamos falar de coisas diferentes, estranhas, exóticas. Peruas em que a utilidade, embora exista na forma do característico porta-malas envidraçado e com tampa traseira, é colocada em segundo plano ao estilo e ao glamour. Peruas criadas não para levar pimpolhos (embora, claro, sirvam também para isso), mas para levar talvez equipamento de esqui e malas para um casal passando férias na Suíça. Para gente que mora na Europa e vai buscar caixas de Beaujolais Nouveau na França uma vez por ano. Para gente que se importa não somente em utilidade, mas também de carregar cargas e pessoas com a maior elegância possível. Raridade, originalidade e sofisticação são pré-requisitos para entrar nesta lista.
Mas é também uma lista de velocidade, estabilidade e prazer ao volante. Nenhuma destas peruas deixa a desejar nestes quesitos, se comparada a um carro esporte. E utilidade sem compromissos em desempenho, vamos falar sério, é o motivo por que gostamos tanto do gênero.
Em ordem cronológica:
1) Aston Martin DB5 Shooting Brake (1963-1965)
Para quem não sabe, o DB5, o mais famoso dos carros de James Bond, era um cupê 2+2 feito à mão pela inglesa Aston Martin, carro de alto preço, sofisticação e fama. Era dotado do famoso 6-em-linha 4-litros de duplo-comando de válvulas da marca nesta versão, e suficiente para fazer o carro chegar a mais de 230 km/h de final.
Sir David Brown, o “DB” desta fase mais importante da história da Aston Martin, como a maioria dos gentlemen ingleses de então, era ávido praticante da caça à raposa, este esporte de reis que hoje está démodé, por simpatia ao pobre animalzinho das pradarias bretãs. Tinha especial apreço, também, por seus cachorros, fossem eles de caça, guarda ou estimação. Sendo assim, era inevitável que cedo ou tarde aparecesse uma perua shooting brake baseada em seus carros, para que ele pudesse chegar a estes eventos sociais com classe, em um carro que levava seu nome, e carregando todos os cachorros e armas necessários para matar cruelmente várias raposinhas inocentes.
A primeira foi feita na fábrica da Aston em Newport Pagnell, para Sir David, e as outras 12 conhecidas foram fabricadas pelo encarroçador Radford, de Londres.
2) Reliant Scimitar GTE (1968-1986)
O fabricante inglês Reliant é mais conhecido pelo Robin, um pequeno e barato carro de três rodas, famoso por ser incrivelmente fácil de capotar. Quem nunca viu o episódio do programa inglês Top Gear onde o sempre impagável Clarkson dá umas voltas com um deles, está convidado a assisti-lo no YouTube. Só de lembrar estou rindo aqui às gargalhadas, sozinho feito bobo.
Mas a provando que um produto ruim por si só não pode condenar um fabricante, a fábrica que criou o cômico Robin criou também o Scimitar. Lançado em 1964 como um belíssimo e veloz cupê, equipado com o 6-em-linha de 2,6 litros da Ford inglesa (substituído em 1966 pelo mais moderno V-6 “Essex” de 3 litros), foi um carro de relativo sucesso de público e crítica.
Mas ficou realmente conhecido quando Tom Karen, da futurista casa de desenho inglesa Ogle Design, criou uma perua esportiva baseada no cupê. O resultado, chamado GTE, foi tão feliz em desenho e desempenho que teve vida extremamente longa: mesmo quando parou de ser produzido pela Reliant em 1986, acabou voltando em 1988 em outra empresa criada por entusiastas, e viveu desta forma até 1991. Para mais informações, veja a excelente matéria do Juvenal Jorge.
3) AMG Hammer station wagon (1986-1990)
O mundo de 1986 era bem diferente de hoje. A AMG não era parte da Mercedes-Benz, e sim uma casa de preparação independente, especializada na marca. A Mercedes era uma empresa que fazia sedãs sérios, sóbrios, de qualidade, em três tamanhos somente: o pequeno 190, o classe E, e o classe S. Além disso, apenas um conversível de dois lugares, o SL, e um jipe utilitário chamado G-wagen. E só.
O classe E era o esteio da companhia. Oferecido em versões cupê, sedã e perua, era como todo Mercedes tradicional um carro sério para gente séria, tanto em estilo quanto em comportamento. Mas uma coisa exemplifica bem melhor o quão diferente de hoje é o ano de 1986: O mais potente motor oferecido nesta carroceria era um 6-em-linha de 3 litros, comando no cabeçote, de 170 cv. Hoje, o menor motor a gasolina disponível nos Classe E é um quatro-cilindros turbo de 184 cv. Trinta anos é muito tempo mesmo.
A AMG se tornou famosa nos anos 80 por dar mais alegria aos Mercedes. Além de motores mais potentes, era conhecida por seus carros monocromáticos, e suas rodas de desenho exclusivo, que davam uma pitada correta de ousadia nos sisudos carros de Stuttgart.
Mas nada que a empresa tinha feito até ali preparou o público em geral para o seu famoso “Hammer”. A Mercedes-Benz jurava que o V-8 da companhia, usado nos Classe S e nos SL, não cabia debaixo do capô do Classe E, carro criado para usar apenas motores em linha. Mas a AMG fez ele caber. E não se satisfez apenas com o motor Mercedes V-8 original de 5,6 litros, de um comando, e apenas 230 cv: aumentou a cilindrada (aumentando diâmetro dos cilindros) para 6 litros e colocou dois cabeçotes de duplo comando e quatro válvulas por cilindro, desenvolvidos por ela mesmo. O resultado de toda esta sofisticação técnica (inédita entre meros preparadores) era 380 cv, para um 0-100 km/h em 5 segundos cravados, e mais de 300 km/h de final, algo simplesmente inimaginável em um sedã de luxo então. E ainda mais numa perua!
E o mais incrível é que o carro permanecia tratável, seguro, estável e confortável como qualquer Mercedes original, mesmo a estas velocidades incríveis. Não é à toa que a Mercedes acabou por estreitar cada vez mais seus laços com o preparador. Historicamente importantíssimo, portanto, e extremamente raro e exótico hoje na sua versão perua.
4) DP Motorsport Porsche 944 cargo (1989-hoje)
Criado por um preparador alemão, esta pequena peruinha baseada no Porsche 944 é extremamente agradável em aparência, e raríssima: menos de 10 foram feitas. Mas ainda hoje é possível contatar o fabricante original para uma conversão.
5) BMW M5 Touring (E34, 1992-1995)
Toda perua do BMW M5 deveria estar nesta lista, mas a primeira, que ainda usava o lendário 6-em-linha de competição amansado para a rua, é talvez a mais rara, clássica e desejável de todas. Especialmente em sua versão final de 3,8 litros e câmbio de seis marchas. Com todo espaço interno de uma perua série 5, e todo o nervosismo do 6-em-linha de competição que gira até 8.000 rpm, ao som do incrível berro de suas seis borboletas, é uma combinação única de tranqüilidade familiar com ferocidade de carro de corrida.
6) Ferrari 456 GT Venice (1994-1995)
Imagine ser rico o suficiente para pedir para a Ferrari e a Pininfarina projetarem um carro para você. E não somente um carro, mas um Ferrari especial para sua família. Assim foi este carro, criado para um dos irmãos do Sultão de Brunei nos anos 90, baseado no magnífico 465GT e herdando dele seu V-12 de 442 cv. Um pacote especial de seis carros por quase 50 milhões de dólares, se os boatos forem verdadeiros.
Existiram muitas peruas especiais, únicas, baseadas em Ferraris, mas nenhuma com quatro portas e porta-malas de verdade. Poucas coisas são tão belas, e tão latinamente operescas em seu som e comportamento, quanto um 465GT. Junte a isso este desenho fantástico, e a praticidade que vem dele, e se tem a matéria-prima básica de sonho.
7) Audi RS 2 (1994-1995)
Ferdinand Piëch é tido como um chefe tirano, um déspota, e uma pessoa robótica em seus objetivos, com muito pouca consideração ao seus irmãos humanos. Sátiras mil já apareceram em que, vestido de jaleco branco, o malvado Dr. Piëch se prepara para pôr em ação um plano maligno para dominar o mundo.
Apesar de tudo isso, em mais uma prova que não existe perfeição aqui na Terra, o nosso mundo seria infinitamente mais chato sem Piëch. Sem ele a Porsche nunca teria se dedicado a competições nos anos 60 e 70, culminando no 917 e tudo que ele representa. Sem ele a Audi nunca teria lançado o Quattro original e, portanto, nunca seria o que é hoje. Na verdade, digo sem medo de errar, a excelência do carro esporte moderno não existiria, pois é dele o ímpeto de melhora que os fez desenvolver tanto e tão rápido nos últimos 30 anos. Sem ele não teríamos o envelope levado a um extremo tão grande como foi no Bugatti Veyron.
E sem Piëch provavelmente nunca teríamos a incrível linhagem de peruas super-esportivas que hoje nos oferecem as incríveis RS 4 e RS 6. E esta linhagem começou com este carro: o RS 2.
Numa época em que a Porsche, empresa de sua família (é filho de Louise Piëch, irmã de Ferry Porsche) estava em maus lençóis, com vendas baixas e alta capacidade ociosa, Piëch, então chefe da Audi, teve a idéia brilhante de criar uma cruza de perua de tração total com um Porsche.
O resultado hoje é lenda: o 5-cilindros Audi foi massageado delicadamente pelos engenheiros de Weissach, e assim foi convencido a produzir 315 cv. As rodas, pneus e freios vieram dos Porsche. E com a tração total da Audi, se tornou capaz de acompanhar qualquer carro esporte contemporâneo em qualquer lugar.
Numa época antes dos Cayenne, era o mais próximo de uma perua Porsche que poderia se chegar. Talvez, em espírito, ainda seja. Um clássico imortal.
8) Mitsubishi Lancer Evolution IX Wagon (2006-2008)
Só existiu por pouco tempo, no mercado japonês, com volante de direção no lado direito, e apenas 2.500 foram feitos. Mas o motivo me escapa; uma versão perua dos mega-velozes e capazes Lancer Evolution da Mitsubishi é uma idéia que me parece tão boa que me espanta nunca mais ter sido colocada em prática.
9) Cadillac CTS-V Station Wagon (2010-2014)
Uma perua Cadillac. Com câmbio manual de seis marchas. E o V-8 com compressor do Corvette ZR1 de 552 cv. E suspensão capaz de manter qualquer BMW M no retrovisor num passeio em Nürburgring. Precisa dizer mais? Quem conhece a história da empresa sabe que nada disso faz parte de sua tradição.
O fato de que foi um fracasso de vendas, portanto é rara hoje e diz muito do por que as peruas estão lentamente se extinguindo.
10) Ferrari FF (2011-hoje)
Para quem gosta de peruas como eu, gosta da segurança e incrível capacidade de pôr potências estratosféricas no chão sem drama nenhum da tração total permanente como eu, e gosta da latinidade e dos V-12 que cantam óperas mecânicas da casa de Maranello como eu, o FF poderia bem ser o melhor carro do mundo. Se não fosse o estilo do carro, sem inspiração nenhuma, bem que poderia mesmo ser…
MAO