Peruas são uma espécie em extinção.
Durante muitos anos foram a escolha mais lógica para famílias, devido à sua grande capacidade para carga e/ou passageiros. Por isso mesmo, eram veículos sem glamour algum, utilitários. Falando bem genericamente e simbolicamente, o carro esporte sacrificava tudo pelo desempenho e o prazer visual, e a perua, seu perfeito inverso, sacrificava todo prazer para ser algo totalmente utilitário. Um carro para mamães e vovós.
Mas justamente por isso, por simbolizar o carro de família, manteve seu mercado por muito tempo. Antigamente as pessoas não tinham vergonha de serem velhas, mães, avós ou tias, nem muito menos ter uma família cheia de pimpolhos. Na verdade, este era o objetivo-mor de todo mundo, constituir família, perpetuar a espécie e seu legado pessoal, muito dele herdado dos antepassados. Andar com reluzentes carros bonitinhos só para parecerem jovens ou ativos estava fora de questão: pais e mães de família eram pessoas sérias, preocupadas com algo mais importante que eles mesmos (o futuro de seus filhos e o sustento e bem estar da casa), e não tinham tempo nem inclinação para frivolidades. Brincar era coisa de criança.
Hoje o paradoxo é que as crianças, superprotegidas e massacradas por vigília constante, nunca se divertem de verdade, nem tem aventuras de verdade. Quando adultas então, correm para utilizar o pouco tempo livre que têm para brincarem de mil maneiras diferentes e criativas. De pular de penhascos presos a uma corda a andar de mais quilômetros de bicicleta que um triatleta olímpico, milhares de brincadeiras infantis hoje viraram coisa séria e negócios milionários. Faz-nos pensar onde está o progresso, não?
Mas divago; voltando às peruas, seu fim começou a se desenhar quando algo ainda mais utilitário e eficiente que ela se popularizou: quando apareceram a Renault Espace na Europa, e a Minivan Chrysler original, ambas surgidas nos anos 1980. Usando como base carros de tração dianteira e monobloco, as minivans tiveram grande sucesso e começaram a causar o fim das peruas, até que elas também por sua vez começaram a perder popularidade. E isto, é claro, se deu com o crescimento da popularidade dos SUVs, sport utility vehicles, veículos utilitários esporte.
Hoje imagem é tudo, e ninguém quer parecer um velho pai de família dos anos 1950 e 1960. Hoje todos querem parecer aventureiros, jovens, ativos. Querem usar calças cheias de bolsos de caçador africano, camisas camufladas de exército. No frio, os casacos parecem prontos para a próxima escalada do Anapurna. E é claro, um jipão com tração nas quatro rodas é o acompanhamento perfeito da fantasia, usada com orgulho durante o árduo passeio de casa até a escola das crianças, e depois até o escritório.
Somente os entusiastas do automóvel, esta anacrônica e francamente esquisita espécie também em extinção, que habita garagens escuras, estradinhas desertas de mão dupla e as poucas bancas de revistas importadas que ainda existem, permanece fiel às peruas. Isto, é claro, por causa da sua fantástica mescla de desempenho e centro de gravidade de automóvel com utilidade de furgão ou SUV. Um entusiasta pode ter uma perua para usar no dia a dia, mas guardando um desempenho de carro esporte no fim de semana, o que, se você só pode ter (ou só quer ter) apenas um carro, tem óbvias vantagens.
E se pensarmos bem, logicamente é ridículo ter-se, mantendo o resto inalterado, um cupê duas portas e um sedã de 4 portas quando se pode ter uma perua na mesma plataforma. A perua ocupa melhor o espaço do carro para carga e passageiros, com ganho pequeno de peso, e vantagens em distribuição de massa sobre os eixos em carros de motor dianteiro (vasta maioria hoje). É apenas a imagem que se quer projetar de si mesmo que faz uma pessoa gostar de cada uma dessas carrocerias em detrimento de outra. Mas lógica, como sabemos, é argumento pífio de venda; imagem não. E a imagem da perua é tão fraca hoje que quase inexiste.
Mas, esta espécie estranha de pessoa, o entusiasta, ainda chora o inevitável fim deste tipo de veículo. Não é para menos; este amante do bicho automóvel é, vamos ser sinceros, um chorão. Chora o fim do pedal de embreagem, e antes disso achou que os sincronizadores acabaram com a arte da dupla-embreagem e trocas no tempo, algo lastimável. Chorou o fim do banco inteiriço dianteiro, e um sem fim de fins de coisas que na verdade, reclamando-se ou não, chegaram a seu fim.
Mas enquanto ele (o fim) não chega, acho que é a hora de relembrar alguns dos marcos da história das peruas. Quem sabe dessa forma possamos gerar algum interesse, e talvez até alguma sobrevida, nesta que é a mais versátil das carrocerias na opinião deste humilde escriba.
Em ordem cronológica:
1) Rolls-Royce 40/50hp Shooting Brake / Ford model T Station Wagon (1908-1926)
Em 1908 duas coisas importantes aconteceram no mundo do automóvel. Na Inglaterra, Sir Henry Royce mostrava o carro que, seguindo suas crenças mais famosas (“A qualidade será lembrada muito depois que o preço foi esquecido”), pretendia ser o melhor do mundo: o 40/50hp “Silver Ghost”. O carro sozinho criou a fama e a marca Rolls-Royce como se conhece até hoje, e mostrou como o automóvel podia ser confiável, veloz, seguro, silencioso e confortável, numa época em que era nada disso.
Do outro lado do Atlântico, Henry Ford lançava também um automóvel destinado a fama e a consolidação de sua marca, mas na outra ponta do mercado: o Ford modelo T. Usando modernos métodos industriais de massa, e criando um carro barato mas de qualidade, Ford tornaria o automóvel algo comum, acessível a todo mundo. Mudaria a face da terra com seu T em poucos anos.
E ambos também popularizaram os extremos possíveis das peruas, efetivamente fazendo o seu marco zero. Nos EUA, o T rapidamente substituiu os “Station Wagons” puxados a cavalo de então; esses transportes eram comuns, para buscar gente e sua bagagem nas estações de trem. Por sua natureza extremamente utilitária, eram feitos de madeira exposta, sem revestimento ou embelezamento, algo que por décadas acabou, anacronicamente, fazendo parte da aparência das peruas.
Na Inglaterra, os lordes rapidamente popularizaram peruas baseadas em seus Rolls-Royces, também utilitárias em madeira, mas por motivos mais chiques: eram usadas para transportar os caçadores e seus cachorros de caça na mala. Estes nobres veículos utilitários eram chamados de “Shooting Brakes”, nome hoje usado indiscriminadamente para qualquer perua mais chique ou pequena demais para ser levada a sério.
Apesar de não criarem o gênero, tornaram-no muito mais popular do que eram até então, nos dois extremos de preço, e são, portanto, o real início. Gênese.
2) Buick Roadmaster Station Wagon (1947-1953)
Primeira tentativa de dar algum glamour e status à utilitária perua. Ao contrário dos Shooting Brakes ingleses, o Roadmaster era um carro produzido em série, um modelo normal de produção em fábrica.
O Roadmaster, em sua versão sedã, era um dos carros mais velozes dos EUA, e um dos mais caros e luxuosos. Uma versão perua dele foi realmente algo novo e inesperado. Luxuosa, bonita, moderna e veloz com seus motores de oito cilindros (inicialmente em linha, depois em V), uma perua como nenhuma outra até então. Era igualzinha ao sedã, na verdade, com a adição de detalhes de madeira na lateral e um porta-malas generoso. Um passo importante para a aceitação da perua como um carro normal.
3) Chevrolet Bel Air Nomad (1955-1957)
A Nomad original era baseada no Corvette, e era um carro-conceito, uma pequena peruinha do Corvette. Mas quando a Chevrolet lançou seu novo e revolucionário Chevy 1955, com o V-8 de bloco pequeno que se tornaria uma lenda, resolveu fazer história no mundo das peruas.
Uma cruza de Corvette com uma perua Chevrolet full-size. Um ícone de estilo, de beleza imortal. Cara, com apenas duas portas, muito elegante, era vendida somente na versão mais luxuosa (Bel Air). Não vendeu muito bem, mas se tornou desde então um clássico americano.
4) Oldsmobile Vista Cruiser (1965-1977)
A partir do meio dos anos 1960 e durante os 1970, a perua americana chegou a seu ápice. Enormes, com motores suaves e gigantes debaixo do capô, acoplados a câmbio automático, eram iates das estradas extremamente desejáveis. No porta-malas, podia-se pedir opcionalmente bancos escamoteáveis virados para trás do carro, algo que as crianças de todas as idades adoravam. As tampas traseiras eram um show a parte. As mais normais tinham vidros (elétricos ou manuais) que abaixavam, mas a criatividade correu solta ali: existiam tampas que desapareciam para dentro do carro, e tampas que abriam de duas formas diferentes, para baixo e para o lado.
Mas talvez a mais emblemática de todas seja a gigantesca, e maravilhosamente nomeada Oldsmobile Vista Cruiser. Com teto mais alto, cheio de janelas, para uma vista panorâmica a partir dos bancos traseiros, se tornou um clássico do gênero, e um ícone dos anos 1970.
5) Volvo P1800ES (1972-1974)
Pode parecer estranho para um jovem acostumado os Volvo atuais, mas a empresa antigamente era extremamente conservadora em estilo. A exceção era seu cupê esporte P1800, um carro esporte original em desenho, e com bom desempenho para a época, propiciado por seu 4 em linha de 1,8 litro (depois 2,0) e 115cv.
Mas ficou realmente famoso quando, no fim de sua vida, ganhou esta versão perua. Sim, um pequeno cupê esporte 2+2, em versão perua. Inovador e original, até hoje é um marco de design na empresa. Sua original tampa traseira em vidro, com limpador, famosa, volta e meia retorna nos carros da marca, a última no hatchback V30.
6) Lynx Eventer (1982-2002)
O Jaguar XJ-S, principalmente em sua versão V-12, é um carro de muitas qualidades, que lhe propiciaram vida longa (1975-1996). Mas sua aparência nunca foi seu forte, principalmente sua incongruente traseira com barbatanas e vidro traseiro vertical.
E isto fica mais fácil de perceber olhando este carro. A famosa casa Lynx, especializada em modificar carros da Jaguar, em 1982 começou a converter o cupê XJ-S em uma pequena perua, criando um carro muito mais bonito que sua versão original. E, é claro, com sua utilidade expandida pelo novo compartimento de carga generoso. Um dos Jaguar mais exóticos e desejados pelos entusiastas.
7) BMW série 3 Touring (1987-hoje)
Quando um funcionário da BMW resolveu fazer uma perua para si mesmo baseada em seu sedã série 3 de segunda geração (E30) no meio dos anos 1980, estava criando uma das mais importantes linhagens de peruas no mercado.
Sim, a perua série 3 nunca teve uma capacidade de carga generosa. Sim, é um carro compacto, que nunca poderia ser comparado a uma perua americana full-size em espaço para passageiros e carga. Mas por outro lado, é uma perua de verdade, com quatro portas, lugar para cinco adultos, e suas malas, sendo portanto bem mais útil que um Volvo 1800ES, um Eventer, ou outra perua do tipo.
Na verdade a perua do série 3 é um grande compromisso para o pai de família que gosta de dirigir. Sempre disponível com câmbio manual e motores potentes, com um comportamento em curvas bem acertado, tração traseira e freios de primeira linha, é algo que pode, sozinho, fazer tudo que um entusiasta gostaria de fazer com um carro. Um carro que, como um obediente e educado pastor alemão, é um companheiro fiel e constante, sempre pronto a fazer tudo que se pede dele com prazer e alegria.
Pena que aqui no Brasil não está mais disponível a venda. Como já disse aqui, literalmente venderia partes do corpo para poder comprar uma perua série 3 zero-km. Pode ser até a mais lenta delas (316i), não importa: é um tipo de carro que serve para tudo, e pode ser tranqüilamente o único em minha garagem.
8) Subaru Outback (1994-hoje)
As peruas Subaru de tração total sempre fizeram sucesso com fazendeiros e pessoas que precisam andar em caminhos difíceis regularmente. Gente como veterinários, agrônomos, engenheiros e mineradores.
Em 1989 a Subaru então deu um passo adiante neste tipo de veículo: colocando uma suspensão mais alta e rodas maiores, e equipando a perua como um carro de luxo, criou um veículo aspiracional não somente para seus clientes tradicionais, mas para todo mundo. O seu sucesso foi tão grande que criou cópias de praticamente todas as marcas, o que sabemos, é o maior elogio.
A perua Outback junta performance no asfalto com utilidade de perua e habilidade off-road. Se você me perguntar, acho um compromisso bem melhor que peruas ainda mais altas, as famosas SUVs.
9) Volvo 850 T5R (1995)
Se descontarmos o já mencionado P1800ES, a Volvo sempre foi uma marca de perua utilitária no idioma tradicional, sem glamour, carro da vovó. É só olhar para qualquer perua Volvo até o fim dos anos 1980 para entender isso.
As coisas começaram a mudar com o lançamento do Volvo 850 em 1991. Este Volvo tinha tração dianteira, inédito em Volvos de tamanho médio até então, e tinha um comportamento decididamente mais esportivo que os carros tradicionais da marca. Mas as coisas realmente ficaram interessantes em 1995, com o lançamento do T5R. Equipado com um cinco em linha DOHC de alumínio, com 2,3 litros e turbocompressor, produzindo cerca de 250 cv, era capaz de fazer o zero a 100 km/h em menos de seis segundos, algo realmente legal em uma perua Volvo quadradona, antes símbolo máximo de lerdeza.
10) Audi RS 6 (2013-hoje)
A Audi tem uma grande tradição em peruas esportivas com tração total, iniciada com a fantástica RS 2 de 1994, criada em parceria com a Porsche e equipada com um cinco-em-linha turbo com então incríveis 315 cv.
Esta, a RS 6, é a última desta nobre linhagem. É um carro fantástico, capaz de ser usado normalmente no dia-a-dia, mas com um desempenho de supercarro. Com 560cv, tração total, e toda a tecnologia moderna, é um dos ápices do automóvel moderno; um carro normal familiar que pode acompanhar Porsches e Lamborghinis. Talvez até levando a família inteira, com bagagem!
Não só rápido para uma perua, mas rápido comparado a qualquer coisa. Um incrível automóvel que engloba tudo que sabemos até hoje sobre automóveis. Algo que mesmo com desempenho estratosférico, é perfeitamente usável e útil no dia-a-dia, faça sol, chuva ou neve. O ápice da espécie “perua”.
MAO