“Contas certo com a morte; desse modo, tanto ela como a vida se tornarão mais doces .” – Duque Vicêncio, personagem de William Shakespeare em sua peça “Medida por Medida”, de 1604.
Falar de morte é difícil. Ninguém gosta do assunto, baixa a cabeça, desconversa, se esquiva. Mas morte, todo mundo sabe, é parte indivisível e indispensável da vida. Ser consciente de nosso inevitável fim é na verdade o cerne da condição humana, o que nos faz o que somos. Aceitar a morte como parte inevitável da vida, incontáveis filósofos lhe dirão, é indispensável para levar uma vida sadia.
Sim, é claro que mortes prematuras e evitáveis são uma tragédia. É triste, incontornável e definitivo na vida das pessoas que ficam. Mas aceitar a morte e continuar andando para frente é logicamente a única coisa que podemos fazer, e mandamento férreo em toda religião: um luto grande demais é pecado, a vontade de Deus, afinal de contas, não deve ser questionada.
Outro grande pecado, seja para ateus ou religiosos de todos os credos, é não viver a vida de forma plena. Não fazer o melhor possível com o tempo que temos aqui é quase um crime, e algo que, particularmente acho ainda pior que uma morte prematura. Viver uma vida inerte, sem objetivo maior a não ser apenas sobreviver, me parece um destino ainda pior que a morte em si.
Mas parece ser este o objetivo final de todos hoje em dia. Se sacrifica facilmente o prazer à mesa por uma alimentação saudável mas comparativamente insossa. Sacrifica-se momentos de descanso e prazer introspectivo consigo mesmo para correr maratonas diárias em nome da boa forma física. Se anda extremamente devagar com automóveis porque, sabe-se bem, carros são assassinos malvados e devem ser controlados de pertinho. A classe média alta trabalha mais do que nunca para pagar seus condomínios caríssimos e seus carros blindados para se proteger de bandidos, sem tempo algum para qualquer outra coisa.
Fico imaginando que, gastando esta imensidão de tempo cuidando de nossa sobrevivência, quando vamos cuidar de nós mesmos realmente? Me parece que mantendo-se sempre ocupados o suficiente para não pensar em mais nada senão a sobrevivência, esquecemos de viver. Calar a angústia de viver trabalhando incessantemente para se manter vivo é um tremendo contrassenso, e um prato cheio para filósofos ávidos por uma nova tese…
Acho que realmente exageramos aqui. Embora, repito, a preservação da vida seja o mais nobre dos objetivos, ainda assim ela não é o valor máximo. Toda história épica de heróis nos mostra que sim, existem coisas pelas quais vale a pena morrer. Dar valor extremo à própria vida é na verdade característica básica dos vilões.
Mas hoje parece que isto se inverte. Nunca o egoísmo e o individualismo estiveram tão em voga. Impulsionados por uma cultura materialista, e uma crença religiosa na lógica e na ciência, as pessoas parecem acreditar que podem controlar suas vidas completamente, e desta forma, têm o poder de prolongá-las indefinidamente. Mesmo que não exista motivo palpável para esta extensão… Mas infelizmente você não é mais importante que ninguém, e vai morrer quando menos esperar, quer você queira ou não. Humildade e resignação parecem ser característica dos fracos hoje em dia, mas na verdade são características extremamente desejáveis, se presentes na medida certa.
Mas o que me incomoda realmente é que não foi sempre assim. Nos anos 1970, quando era criança, as pessoas tinham uma tolerância incrivelmente maior para riscos. E apesar de tragédias serem sim, mais freqüentes (e eu mesmo tenho algumas histórias de arrepiar os cabelos), desafio qualquer um a encontrar uma criança desta época que não fale carinhosamente deste tempo. Era uma época que, vista de hoje, parece de uma liberdade tão deliciosa que chega a chocar. E não existe maneira melhor de ilustrar isso do que esta lista: coisas que eram totalmente aceitáveis, que hoje são tabu completo.
Uma lista sem medo da morte, e por isto mesmo, cheia de vida e alegria. Uma lista de uma época onde o acaso existia, acidentes aconteciam sem termos que culpar ninguém, e se você se machucasse fazendo algo com um carro, só tinha que culpar a si mesmo. Uma lista da época em uma pessoa consciente procurava apenas evitar acidentes, porque se envolvesse em qualquer um, estava por sua conta e risco. Um tempo em que se você fizesse algo que potencialmente pudesse fazer mal apenas a você e a sua família, ninguém tinha nada a ver com isso. Uma época em que se preocupava mais em viver do que sobreviver:
1) Dirigir no colo do papai
Primeira experiência ao volante de 10 entre 10 crianças que hoje tem mais de 40. Ainda é permitida com o carro parado, muito popular com os bebês.
2) Andar sem cinto de segurança
Eu comecei a andar com cinto apenas depois de começar a dirigir, ao redor de 1985. Não porque fosse mais esperto ou estivesse preocupado com a segurança, mas sim para permanecer sempre no controle do carro. Tente passar numa depressão ou lombada bem rápido sem cinto para entender o por quê; se você não parar no banco traseiro, está no lucro!
3) Andar no “chiqueirinho” do Fusca
Aquele espaço entre o banco traseiro e a parede corta-fogo traseira do fusca é tecnicamente um porta-malas. Mas não importa, para as crianças que cresceram dentro do carro (que não foram poucas, convenhamos) aquilo era combustível de alta octanagem para a imaginação. Compartimento secreto, submarino, cama de um trem, cabine de comando da nave do Flash Gordon… Cadeirinhas de criança? Não existiam. E cinto de segurança era algo que quando existia no carro, não tínhamos idéia do motivo de tal existência. Talvez enforcar os irmãos mais irritantes. Sei lá.
Em viagens, dormir no chiqueirinho era um privilégio muitas vezes disputado a pescotapas, o que as vezes fazia o pai revoltado apelar para…:
4) Deixar a molecada abandonada no meio da rua
A primeira vez que o exasperado pai ameaçava parar e deixar todos os irmãos bagunceiros no meio da rua abandonados, era uma ameaça terrível demais para ser ignorada. Todo mundo ficava quieto e a bagunça acabava imediatamente. Mas com o tédio da viagem, o furdunço inevitavelmente continuava, e os anjinhos inocentes no banco de trás começavam a achar que, na verdade, um pai legal como o deles nunca ia abandoná-los no meio da rua…
Era a hora do pai usar a mais infalível arma de seu vasto arsenal de então: realmente parava o carro e tirava os moleques de lá aos gritos, e ia embora. Uma volta no quarteirão era tempo o suficiente para que nunca mais duvidassem dele!
“Só voltei porque sua mãe me implorou! É bom não me torrarem a paciência nunca mais!”
5) De pé saindo pelo teto solar
Na primeira vez que fiz isso, ainda moleque, no Chevette 1977 branco do meu tio Luiz Carlos com um teto Webasto removível, achei a coisa mais incrível que se podia fazer em um carro. Hoje sei que não é a melhor (talvez esteja entre as 10 melhores usando calças), mas de qualquer forma, a experiência, hoje totalmente ilegal e irresponsável, me fez um amante de tetos que podem abrir até hoje. Pena que só meu cachorro pode meter a cara para fora dele legalmente, hoje. Peraí, será que pode?
6) Crianças na frente
Outro grande motivo para pescotapas entre irmãos nas raras vezes em que os dois pais não estavam juntos lá na frente. Ir na frente, feito adulto, era um privilégio disputadíssimo. E lembrem-se: ninguém usava cinto então, muito menos as crianças. Quando pequenas ficavam até de pé segurando aquele “pqp” no painel do fusca. Ou usando volantinho de brinquedo como esta da propaganda acima…
7) Todo mundo na caçamba da picape
Você não precisava de uma perua de sete lugares. Não precisava nem de Kombi ou microônibus, na verdade. Com jeitinho cabia todo mundo na caçamba da picape. Nossa tolerância para desconforto era maior, sim. Mas era compensada por uma capacidade de se divertir com coisas mais simples, uma alegria perene sem motivo aparente algum.
Certa vez, nos anos 1980, pegando carona do sítio de meu pai até a cidade mais próxima com mais seis amigos na caçamba de uma C20, estava rindo de algo e me inclinei para frente, ao mesmo tempo que a picape acertou um buraco na estrada de terra. Sentado como estava na traseira da caçamba, e somado ao momento gerado pelo meu movimento de cabeça para a frente, saí voando girando sobre mim mesmo, dando piruetas no ar. Fui cair sentado na estrada, olhando para trás do sentido em que nos movimentávamos, e, sem saber muito bem o que acontecera, meio que rindo ainda da piada de antes da pirueta, pensei: ué, onde foram parar todos?
Os meus amigos juram que eu dei duas giradas no ar antes de chegar ao solo. Alguns dizem três. Com certeza foi um movimento composto também de um vetor lateral, para ter caído olhando para o lado oposto. Sinceramente não faço idéia do que aconteceu, felizmente não me machuquei, mas fico feliz por ter proporcionado incontáveis risadas a todas as seis testemunhas desde então.
8) Passear de pé segurando santantônio no buggy
Acredito que no Nordeste ainda seja praticado em dunas, mas na minha infância, andar de buggy era andar de pé tomando vento. Sim, em estradas, cidade, todo lugar. Pequeno prazer perdido no passado para sempre…
9) Três pessoas no banco dianteiro
Ah, os bancos inteiriços dianteiros… Os Opalas com três marchas na coluna foram uma parte mais constante em minha infância do que bala Juquinha e guerra de mamona. Entrar num Opala desses para mim é como voltar para casa.
Certa vez, andando no Opala ao lado do meu avô, e com um primo mais novo no meio, estávamos rindo felizes sobre algo que não me lembro mais o que era. De repente, uma freada brusca, e meu priminho acerta o painel de frente, rindo. Paramos, e meu avô, preocupado, pergunta se tudo bem com ele, que estava em silêncio com a mão na boca. Quando tira a mão da cara e vira para nós, podemos ver um dente na mão do garoto, que já ria de novo com uma baita janelona bem na frente do sorriso. Felizmente, era um dente de leite já meio mole, que ele tinha medo de tirar. Caímos na gargalhada de novo!
10) Dar ou pedir carona
Andávamos em turma de garotos ao redor dos 10 anos, para todo lado. Caronas para a praia, saindo de sítios, para carregar bicicletas quebradas, eram extremamente comuns e corriqueiras.
Hoje, quem faz isso?
MAO