Fui ao “lançamento” do Giulia, que me lembrou outras histórias. O lançamento merece aspas, pois não era simplesmente a revelação de um novo carro, mas sim o relançamento de uma marca tradicional, a italiana Alfa Romeo que precisa e merece ter melhores dias.
Desculpem, mas também sou um alfista. Claro, como boa “prostituta idosa”, não espere exclusividade. Fico comovido com o ronco de um V-8 americano, vejo uma lenda na estrela de três pontas da Mercedes, gosto muito das revividas argolas da Audi vindas dos DKW, gosto de japinhas abandonados e por aí vai.
Mesmo assim, sou também um alfista desde 1.900 e preto e branco. Mais exatamente 1978, quando comprei um dos primeiros 2300 nacionalizados. Um exemplar feito em 1974 com muitas peças italianas, como o painel cheio de instrumentos Veglia Borletti e aquele belíssimo volante de alumínio com acabamento imitando madeira. Revolucionário para a época, já tinha câmbio de cinco marchas, duplo comando de válvulas, tanque de 100 litros… Um Alfa azul marinho com estofamento creme, que levei para visitar o Brasil. Fui de São Paulo a Natal (RN), daí para Belém do Pará e depois despinguelei para Brasília voltando para casa. Coisa de mais de 10 mil km em pouco mais de um mês.
Como todo Alfa, deixou muitas recordações, algumas ótimas, outras nem tanto. Rodava como gente grande (coloquei os dois carburadores duplos, deitados, Dellorto e outros quetais), muito mais rápido que os carros da época, mas quebrava por puro capricho, sem nenhuma lógica que mecânicos ou engenheiros pudessem prever ou explicar. Uma verdadeira “amante argentina”, com direito a brigas no meio da rua e xingamentos mútuos.
Só para ilustrar, um carro semi-novo, com baixa quilometragem e no meio do sertão pernambucano, o freio de mão traseiro simplesmente desmontou dentro da panelinha (interno ao disco, pois a 2300 já tinha discos nas quatro rodas). Uma barulheira enorme, metal sendo liquidificado a mais de 130 km/h, roda travando, frio na barriga…
Tudo resolvido em um borracheiro de beira de estrada, onde desmontei a bendita roda e o cubo, retirei os cacos e cavacos que sobraram dos patins de freio e continuei a viagem sem o freio de estacionamento. Queria colocar fogo na “amante portenha”.
Mas sempre tem outro lado. Seu volante era pesado — direção “desassistida” — e em curvas rápidas ia forçando o acelerador para as rodas traseiras empurrarem ainda mais (claro, tinha tração “onde Deus mandou”) e o Alfa ia inclinando, inclinado a carroceria, até que o volante ficava bem mais leve. A roda dianteira interna à curva estava “no ar” e a 2300 continuava brilhantemente a curvar em três rodas. Um momento único, quase sublime, confirmado pela cantada do pneu “no ar” que voltava a tocar o asfalto no começo da reta. Era o momento de “aleluia”, de “nunca vou vender esta maravilha”.
Exatamente a amante que te ferra, limpa tua conta no banco, fala mal de você para todo mundo, mas… Basta um beijinho e você não consegue terminar o relacionamento tumultuado.
Claro, minha convivência sensual e complicada com os Alfa Romeo foi bem mais longa. Veio depois outro 2300, dos últimos, já 1986, um 164 3,0 V-6 de 1995, um Spider vermelho 1972 (aquele conversível de 2.000 cm³)… Foram muitos…
Cada vez que vendia um Alfa, me fechava no banheiro, olhava no espelho e me dava uma bronca: “Você sabe que é encrenca, que dá prejú, que só anda quando está de bom humor, que….”
Depois de algum tempo, não resisto, compro outro Alfa. Até hoje brigo comigo mesmo para não casar com uma 156 wagon, uma das peruas mais lindas já fabricadas, obra-prima do designer italiano Walter d’ Silva, neto de portugueses, hoje o grande chefão de estilo do Grupo VW.
O prazer ao volante, instigado pelo gargarejo do motor engolindo ar, o gosto pelas curvas, tudo leva o alfista ao paraíso. Do outro lado está a mania de quebrar sem avisar, a mecânica com soluções as vezes complicadas, peças difíceis de achar, tudo isso leva ao inferno.
Um inferno que levou a marca a quase quebrar, o que fez o governo italiano “convencer” a Fiat para comprar a sua Alfa em 1986. A fase Fiat produziu bons e maus momentos para a marca, até sair o sedã 164. Este modelo criou tantos problemas que acabou forçando a Alfa Romeo a sair dos Estados Unidos, o maior mercado do mundo para carros esportivos e luxuosos. Tanto que a Fiat precisou comprar uma marca inteira — a Chrysler — para poder obter visto de entrada na terra de Tio Sam novamente.
Por tudo isso, a cerimônia do anúncio da volta da Alfa Romeo em Arese, antiga sede da marca, perto de Milão, na Itália, foi especialmente emocionante. Ainda mais com uma madrinha-promessa encarnada pela nova Giulia roncando forte com seus 510 cv de um motor 3,0 V-6 de alumínio, biturbo. Aliás, um motor que equipa o Maserati Ghibli, com o qual rodei recentemente na pista alemã do ADAC (o poderoso e onipresente Automóvel Clube da Alemanha), próximo de Berlim, em um evento promovido pela ZF, uma das maiores indústrias de transmissões autopeças do mundo.
Este V-6 que teve dedos da Ferrari e vai para a Giulia Quadrifoglio (topo de linha, correspondente à AMG da Mercedes ou a linha M da BMW) é um canhãozinho que ronca forte pelo escape duplo de inox, gosta de giro, acelera para valer e despreza placas de limite de velocidade. No Giulia faz o 0 a 100 em 3,9 segundos. Claro que o Giulia também terá versões menos sofisticadas, que devem aparecer no Salão de Frankfurt, em outubro.
O novo Giulia, mesmo que alguns vejam semelhanças de desenho com os BMW, tem a sensualidade de “una vera Alfa”. A grade dianteira triangular vertical— que muita gente boa chama de “cuore sportivo”, este na verdade a essência da marca, não a grade — continua representando a marca centenária que sobreviveu muitas crises e hoje tem pouca presença pelo mundo (vendeu míseras 68.000 unidades globalmente em 2014).
Os representantes atuais são o MiTo e o Giulietta, que não passam de um Punto com algum trato esportivo. O único Alfa realmente Alfa é o 4C, de baixíssima produção quase terceirizada, com a qual rodei na pista de testes italiana da FCA em Balocco, junto como o Zé Roberto (vulgo Sir Roberto Nasser) e o Boris Feldman. Concordo com o Nasser e repito o que ele disse. Também rodei só com o 4C em Balocco, desprezando o MiTo e o Giulietta, pois não se deve misturar caviar com sardinha, como bem disse Sir Nasser.
Vestido pela 4C conversível, com seus endiabrados 1.750 cm³, um biturbo de 240 cv, você se sente o Senhor das Curvas e o Rei das Retas. Os outros dois (MiTo e Giuletta) estão longe da tradição esportiva da marca. Pilotei ambos alguns anos atrás, também em Balocco, e foi o bastante. Não atraem para uma segunda volta.
Giulia no palco
Aí voltamos para Arese e o grande revival da marca. Mesmo com um Giulia quase protótipo no palco, foi o evento mais emocionante que participei na área automobilística. Velhos escribas como eu tiveram seus olhos marejados com a entrada do Giulia, enquanto o tenor Andrea Bocelli cantava Nessun Dorma. Cego, Andrea confessou antes que, quando criança, ficava com os ouvidos atentos para escutar o Alfa de seu pai voltando para casa. Somente uma marca centenária consegue fazer um espetáculo destes sem parecer apelativo.
Nesse clima, o discurso de Sergio Marchionne , capo di tutti capi (chefe de todos os chefes da FCA, executivo-chefe da Fiat Chrysler Automobiles) foi mais que aplaudido. Um projeto de US$ 5 bilhões promete levantar a Alfa Romeo até 2018. Não só com o Giulia, mas também com sete novos modelos a serem lançados neste período.
Mesmo com tanto dinheiro, não será uma tarefa fácil. Acordos com o governo prevêem a reativação (ou melhor utilização) de várias fábricas pela Itália. Mesmo a unidade de Arese, desativada alguns anos atrás, continuara apenas como um símbolo da marca, abrigando só o museu. Um museu que foi reinaugurado para contar a história da marca desde 1910.
Na frente da fábrica de Arese, em meio ao evento, ex-trabalhadores locais protestavam pela não inclusão da cidade nos planos de reativação da marca.
E mais que resolver problemas trabalhistas, a Alfa Romeo precisa se adaptar ao competitivo mercado de luxo mundial, não apenas com a sedução de suas linhas e sua perrformance esportiva. O trio alemão — Mercedes, Audi e BMW — oferece tudo isto com qualidade, durabilidade e confiabilidade. Três palavrinhas que rimam, mas que são muito difíceis de serem encontras juntas, embaixo do mesmo capô.
No mesmo dia do lançamento, 24 de junho, exatamente quando a marca completava 105 anos, em 10 cidades brasileiras os alfistas brasileiros faziam jantar comemorativo da volta da marca. Exatamente em um país onde os Alfa não são mais vendidos. E essa paixão terá de ser muito bem tratada para que o Cuore di Milano volte a ser respeitado. E bem vendido pelo mundo. E esta parece ser a intenção do grupo FCA, do contrário eles teriam aceitado a oferta do Grupo VW e vendido a Alfa para os alemães, que deixariam a marca sob o guarda-chuva da Audi, que já abriga as italianas Lamborghini e Ducati.
JS