Era um sábado à noite e isso se passou lá pelo final dos anos 70 ou começo dos 80. Estava eu, moço e solteiro, debruçado no balcão de um bar chamado Vitória que ficava numa das travessas da Rua Augusta, em São Paulo. Tomava meu uísque sauer e, avaliando, me divertia observando a excitação das moças que, entrando, por mim passavam roçando e deixando seus inebriantes perfumes. Estava de cabeça fresca, portanto, e bebendo pouco, já que o objetivo de ali estar não era a bebida, e sim a comida. Só que ao meu lado estava um com a cabeça quente, já que, visivelmente bêbado, resmungava consigo próprio. Era barbudo e tinha pinta de cientista maluco. Via-se que era um cara na boa e não estava a fim de importunar ninguém. E como se conversasse com o próprio copo, que rodava nos dedos, falava algo sobre o álcool, o que achei natural e desinteressante.
E assim foi, até que me chegou aos ouvidos uma frase que chamou a atenção. Ele criticava o Proálcool, um então recente programa lançado pelo governo militar que nos dominava. É sabido que todo plano nacional feito por um grupelho de tontos e prepotentes, seja ele de direita ou de esquerda, só pode dar num tremendo fracasso e prejuízo para a nação. E deu.
Fiz girar meu banquinho e puxei assunto com o sujeito. Ele era um engenheiro mecânico que trabalhava na área de combustíveis e estava contrariado porque fincava o pé que o álcool seria muito mal aproveitado nos motores que estavam para queimá-lo. Parecia ter conhecimento profundo do assunto. Ele dizia que o álcool precisava de alta taxa de compressão para ser bem aproveitado, e só um bloco de motor Diesel teria condições de trabalhar com tal taxa, algo acima de 15:1. Ele previa o desastre para o plano e seu breve fim. Hoje vejo que esse engenheiro só errou no prazo, já que apesar de não haver mal que sempre dure, ele insiste em durar além da conta aqui no nosso país.
O que restou da conversa foi só isso aí, pois logo um daqueles perfumes citados me levou consigo, no entanto o que aquele sujeito disse com convicção ficou bem gravado na memória. A dúvida foi levantada e passei a questionar o assunto, apesar da maciça propaganda governamental que propalava que o álcool seria a salvação da Pátria, já que importávamos muito combustível, o que é ruim para a balança comercial — tal como em breve voltaremos a fazê-lo e a sofrer com isso, graças à incompetência e turbidez da mente da pessoa que há mais de uma década é responsável pelo setor, uma que se diz mãe disso e daquilo, mãe do PAC, mãe da crise.
Passados uns anos dessa noite no bar, apareceu no mercado um trator da Massey-Ferguson movido exclusivamente a álcool. O motor tinha bloco de motor ciclo Diesel e cabeçote de ciclo Otto, ou seja, tinha um pesado bloco, taxa de compressão alta (não informavam o quanto, mas era similar à do Diesel, algo acima de 15:1), e tinha cabeçote com velas de ignição. Gerava 90 cv. Na época eu tinha um trator da mesma marca e mesma potência, um 290X, a diesel, e meu irmão tinha uma perua Chevrolet Caravan, 4-ciindrosl, que também gerava 90 cv e era a álcool, só álcool.
Meu amigo Rosim era gerente da concessionária de tratores Massey-Ferguson, e me informou que esse trator a álcool consumia ao redor de 8 litros por hora de trabalho, e, como o leitor bem sabe, trabalho de trator é trabalho pesado, que usa ao redor de 80% de sua potência máxima.
Calculei que se eu pegasse a Caravan a álcool do meu irmão e andasse numa estrada a 140 km/h, o que também empregaria ao redor de 80% da potência do seu motor, ela faria ao redor de 6 km/l, no máximo 7 km/l. Então, na melhor das hipóteses em uma hora eu percorreria 140 km e teria gasto 20 litros de álcool.
Concluí, a grosso modo, que para gerar o mesmo trabalho — já que ambos os motores, o do trator e o da Caravan, geraram a mesma potência pelo mesmo espaço de tempo — o motor da Caravan gastaria mais que o dobro de álcool que o motor a álcool desse trator, o que demonstrava tremenda diferença de eficiência. As contas provavelmente não eram exatas, porém a diferença entre consumos era tão grande que a margem de erro não mudava a conclusão: o tal engenheiro que conversava com seu copo tinha razão.
Na época achei aquilo ótimo, pois se usássemos o álcool para substituir o diesel, seria um modo de reduzirmos a importação de petróleo, já que importávamos petróleo bruto e após o seu refino sobrava gasolina, que era exportada a preço baixo porque nossa gasolina era anêmica e o mercado mundial, com razão, a desprezava. Melhor explicando, de um barril de petróleo dá para tirar tanto de diesel, tanto de gasolina, tanto de derivados etc. Não dá para mudar a proporção. Então, para termos tanto de diesel sobrava gasolina. Certo?
Só que esse trator Massey-Ferguson a álcool, bloco de Diesel e cabeçote de Otto, logo sumiu do mercado. Sumiu sei lá por qual razão que a própria razão desconhece. E nessas três décadas não mais ouvi falar em nenhuma tecnologia que aproveitasse com a devida eficiência o potencial do álcool. E nessas três décadas, nas ruas vi e cheirei álcool mal aproveitado, o que significa muita terra boa sendo mal aproveitada para produzir um combustível cuja boa parte era jogada fora. Isso, claro, me entristece. Terra, dinheiro e trabalho jogados fora.
Solução já existe
Só que agora me animei. Em recente visita à unidade fabril da Bosch em Curitiba (com o Paulo Keller, com vistas à terceira matéria publieditorial da Bosch), o diretor da unidade, Engenheiro Mario Massagardi, nos informou que eles desenvolveram um motor que queima diesel e álcool ao mesmo tempo, que convencionaram chamar dual-fuel (duplo combustível). Basicamente, o sistema é o seguinte: são dois tanques de combustível, um para o diesel e outro para o álcool — combustíveis em tanques separados, isso é que é ser verdadeiramente bicombustível, e não com muitos assim chamam os carros flex, que levam gasolina e álcool no mesmo tanque.
Os combustíveis vão para o cilindro do modo que costumam ir, por meio de bomba injetora que o injeta diretamente no cilindro via cabeçote, e o álcool vaporizado entra pelo duto de admissão. Só no cilindro é que eles se misturam.
O motor tem taxa de compressão normal de Diesel, ao redor de 16:1, usa cabeçote de Diesel, daí não tem velas de ignição. A queima da mistura é iniciada pela ignição do Diesel ao ser comprimido (ignição por compressão), tal como ela é no ciclo Diesel. A porcentagem de cada combustível varia conforme a carga e rotação com que o motor é utilizado, mas que oscila em torno de meio a meio.
A grande sacada do sistema é que nesse motor dual-fuel o álcool tem uma eficiência de 40 %, ou seja, tem eficiência igual à do Diesel e muito maior que os 24 ou 25 % de eficiência que tem num motor do ciclo Otto (flex, no caso). E outra grande sacada: o motor não perde torque nem potência máximos em relação ao funcionamento só a diesel. O desempenho não muda.
Como o álcool tem um poder calorífico menor que o diesel, o consumo total em litros será maior, ou seja, no motor dual-fuel a soma dos volumes dos combustíveis queimados (diesel + álcool) é maior do que se usasse só Diesel. A grande vantagem é que nesse caso o álcool foi bem e não mal aproveitado como quando queimado num motor flex. Nesse caso, quando queimado num dual-fuel diesel-álcool, o álcool estará produzindo um trabalho 60% maior que quando queimado num flex. Por outro ângulo – basta fazer uma regra de 3 — evita-se que 37,5% do álcool seja jogado fora, como é quando queimado num motor flex de ciclo Otto.
O motor dual-fuel custaria — ainda não há exatidão no valor — ao redor de 15% mais que um motor convencional a diesel, percentual que se diluiria no custo total do caminhão, ônibus, trator.
A Bosch desenvolveu também o dual-fuel diesel-gás natural e o mesmo ganho de eficiência que há com o álcool, há com o gás, de 25% no Otto vai para 40%, e também sem perdas de torque e potência máximos. Com gás o percentual de cada combustível gira em torno de 35% de diesel e 65% de gás, também variando conforme carga e rotação. No caso do dual-fuel diesel-gás, o custo aumenta bem, é em torno de 30% maior, já que um caminhão precisaria de quatro tanques de gás, fora outros itens que o encarecem.
Em breve estarão nas ruas, ainda em fase de experimentação com frotistas selecionados, mas já em configuração de série. Outros serão exportados.
Bom, em resumo, o cara que falava com o copo estava certo. O tempo contou a verdade. Aquele Bar Vitória era bem legal…
Nota: como não havia material ilustrativo a respeito, coloquei essas fotos que fiz numa viagem à Argentina algum tempo atrás. Só para quebrar a monotonia do texto.
AK