MEU DILETO COMPANEIRO
Por Lucas Guimarães
Na segunda metade dos anos 1990, minha família estava se mudando para Brasília. Sim, no gerúndio, pois vínhamos conforme as oportunidades profissionais apareciam. Como uma de minhas irmãs ficara em Belo Horizonte, um de nossos carros ficou por lá. Com isso, a nossa “frotinha” — um Astra belga 1995, um Santana 1985 turbo, um belo e sofrido Voyage Plus 1986 e uma CB 400 1980 — precisava de reforço, um novo integrante.
O escolhido foi um Palio 1,6 16V. Não era o meu candidato, mas gostei muito daquele pequeno Fiat cinza Steel (que sucesso essa cor!), interior em um grosso veludo azul, rodas de liga leve. Encantador. Em poucos carros que andei vi o ponteiro varrer toda a escala do conta-giros com tanta rapidez. Uma delícia. Minha irmã era quem mais usava o carro, mas era claro que meu pai também apreciava o comportamento latino do Fiatzinho, talvez por sempre simpatizar com a linha esportiva dos Unos, os “R”, ou os “tampa preta”, nas palavras dele.
Pois então: qual era o meu candidato, o derrotado? O Escort 1,8 litro 16-válvulas , o “Zetec”. Os números de desempenho daquele carro chamavam-me atenção, assim como os “causos”. Chegamos a ir vê-lo em concessionárias, mas o péssimo atendimento das ditas Ford fez a escolha pender para o Fiat. Mas não foi uma derrota completa. Sem qualquer conversa sobre carros, e no mesmo mês, uma tia de Sete Lagoas, MG, comprara um Escort, desses que eu queria. Nunca vi pessoalmente outro com a configuração dele: GL 3 portas, já modelo 98, como único opcional a pintura metálica.
Os anos vão se passando e conforme o dinheiro vai permitindo, vou brincando de carros e motos: preparados, originais, importados, nacionais, novos, velhos… Não chega a ser tão amplo quanto o rol de mulheres que Martinho da Vila alega ter tido em “Mulheres”, mas também prazeroso, a seu modo e proporções. Mas Escort, não tive ou cogitei de ter um até então.
Mas numa ida a Sete Lagoas, já em 2013, vi o de minha tia estacionado, e enquanto tomava um cafezinho, o observava. Muito inteirinho, pequeno para os padrões atuais, muitas linhas curvas em contraste com os vincos de hoje, uma simplicidade interessante… Encurtando: “Tia, quer me vender seu carro?” E a resposta foi a pior possível: “Já vendi.” Acho que todo mundo conhece o gosto amargo do “cheguei tarde”.
Meses depois, volto àquela cidade mineira. E o Escortinho ainda estava lá. “Uai, tia, não havia vendido?”. “Sim, mas o negócio não vingou. Você ainda quer? Combinamos o preço e é seu.” Claro que quero! Caramba, que felicidade! Sim! Feliz por comprar um velho carrinho! Depois de 16 anos, aquele carro viria, com seus defeitos inerentes à idade, claro, mas viria. E ainda duas-portas, do jeito que gosto! Só loucos ficariam felizes por ter comprado um Escort em pleno 2013.
Ligações para combinar o depósito, documentos etc, e marcar o dia de buscá-lo. Detalhe: nunca havia andado nele, e nem inspecionei-o realmente. Saí de Brasília à noite e parecia que o ônibus ia 40 km/h naquelas longas retas da BR-040. Ansiedade é dose!
Muitíssimo bem recebido por minhas tias, um bom café, recomendações, uma reza, e no amplo salão que viram os hatches e peruas quando rebatido o banco traseiro, um berço infantil desmontado. Berço esse que serviu a minhas irmãs e a mim, e que hoje conforta minha sobrinha e meu filho na casa de meus pais.
Uma breve passada no posto de gasolina para conferir o básico, afinal eram 670 quilômetros pela frente. A descarga sequinha me deixou tranqüilo quanto ao consumo de óleo. Mas estranhei quando o ponteiro do combustível indicava meio tanque e ainda sim entraram mais de 30 litros. Procurei o manual do proprietário (cheio de observações de minha tia — coisa de entusiasta!) e lá estava a capacidade total, 64 litros. Ótimo! Gosto de carros com grande autonomia, um sossego. Achava incrível quando meu Omega GLS 2,2 com seus 70 litros passava dos 800 quilômetros com um tanque.
Manhã fria e íamos tocando. A dirigibilidade não estava perfeita, mais tarde descobri que era a sonda lambda inoperante. Mas tudo bem, fora o ponteiro do combustível travado na posição cheia e o termômetro do motor, que dava indícios da válvula termostática travada aberta. Parei então em Três Marias, percorrido em torno de 190 quilômetros. Pedi para completar o tanque e logo depois o frentista volta dizendo que haviam entrado menos de 13 litros. Hein? Como assim? Peguei a calculadora e fiz as contas: 14,5 km/l andando entre 110 e 130 km/h. Muito bom!
Seguindo viagem, o baixo ruído interno indicava que o motor girava pouco, confirmando um câmbio bem longo. Exige algum costume, mas superado isso, é ótimo. Ultrapassa-se os 60, 110 e 160 km/h de primeira, segunda e terceira marchas, respectivamente, quando entra o corte de giros, tipo sujo. Basta colocar o motor no giro certo, e ultrapassagens são feitas facilmente.
Cheguei muito bem em Brasília. A idéia seria então, com calma, ver o que fazer com o Escort. Substituir o Astra nos track days? Vamos testá-lo então!
Primeiro, levei-o ao dinamômetro, para ter uma referência. Obtivemos 96 cv na roda, o que ratificou a idéia de que o motor estava saudável. Não se pode esquecer que Brasília está a aproximadamente 1.100 metros acima do nível do mar, e que isso gera uma perda de aproximadamente 11% em relação ao declarado pelo fabricante. Como referência, o Astra que é 2-litros e tem uma leve preparação, marcou nas mesmas condições 95 cv na roda.
No Autódromo de Brasília foi uma grata surpresa ver esse Ford andando. Absolutamente previsível, substerçante sem exageros. Freios agüentaram bem, sem sinal de fading. Dei uma pequena ajuda na ventilação deles, retirando o tampão de onde ficam os faróis de neblina e os pára-barros. As pinças e os discos facilmente visíveis pela frente do carro indicariam que por ali teria um bom fluxo de ar. Esse fato foi preponderante para que o Astra ficasse definitivamente para os trackdays, embora as relações de marcha não tenham casado bem com o traçado da pista — segunda, terceira e quarta precisariam ser um pouco mais curtas (a quinta não tem nenhuma serventia lá, obviamente).
E o que era para ser de uso eventual, foi ficando de uso diário. Passou a ser meu carro de dia a dia, me conquistou. Conquistou justamente pelo que hoje é abominado pela indústria automobilística no Brasil, e talvez a mundial. Área envidraçada enorme, linha da cintura baixa, e o já falado câmbio manual longo. Painel baixo e curto. Dimensões externas reduzidas (um Ka do modelo novo é bem mais volumoso que o Escort), desenho sem vincos e arroubos. Pneus de perfil alto e rodas pequenas para os padrões atuais, 14 polegadas. Fiz a pequena ousadia de colocar pneus 195/65 R14, raros, um pouco maiores que os originais.
Mas não consegui ficar quieto e com o carro absolutamente original. Algumas coisinhas incomodavam-me e eram de fácil solução: as rodas de aço com calotas, o painel sem conta-giros e o pára-choque dianteiro, que “implorava” pelos faróis de neblina.
As rodas incomodavam-me pelo motivo de ser praticamente impossível achar as calotas originais daquele modelo, que por serem de encaixe, são facilmente perdidas ou furtadas. E andar sem calotas, com as rodas pretas de aço, derrubaria demais o visual do carrinho. A solução estava literalmente ao lado de casa. Numa reforma de uma casa vizinha, um dos pedreiros tinha um Mondeo GLX de primeira geração, literalmente caindo aos pedaços, ruim mesmo. Porém, com as rodas de liga leve originais. Pobre Mondeo, além de surrado, agora segue com as rodas de aço que eram do Escort. Guardei as calotas, claro. E as novas rodas foram para a pintura e usinagem das bordas.
E vagueando pela internet, encontrei a oferta de um painel novo, 0-km, dos Fords esportivos da época, com conta-giros e fundo branco. Um legítimo New Old Stock. Comprei, claro! A instalação deu um certo trabalho, mas com a ajuda de um vídeo no YouTube tudo funcionou perfeitamente.
Faróis de neblina: instalação cuidadosa, sem furação aparente no painel, com o interruptor oculto. Encontra-se o kit prontinho para comprar. Processo rápido. Claro que só serão acesos para a condição para a qual foram projetados: neblina. Mas ressalto que a iluminação proporcionada pelos faróis principais é excelente, uma das melhores que já vi. Curioso como uma configuração básica, no caso, lâmpadas H4, faróis monoparábola, e lentes de vidro frisado, pode produzir um resultado tão bom. É o caso do simples, mas bem feito.
A essa altura do texto, muitos leitores devem estar pensando “Que absurdo! O cara pegou um achado, original e imaculado, para sentar o bambu no autódromo e descaracterizá-lo! Herege! Herege!”
Calma, calma. Vamos devagar, por partes. Quanto ao uso, digamos, esportivo, gosto de fazer uma comparação com uma história pessoal. Por pouco mais de um ano, participei de uma equipe de corridas, a pé mesmo. Que experiência fantástica era participar de corridas, levar o corpo ao limite, buscar seu máximo, compartilhar os progressos com os amigos. Chegar em casa exausto, mas satisfeito. Se carros têm alma, acho que é assim que eles se sentem quando saem de um autódromo. Cansados, exauridos. Mas irradiantes por dentro. E cheios de história para contar para os amigos de garagem.
Quanto aos equipamentos, todos são peças originais da marca — exceto os faróis auxiliares — e poderiam ter equipado o carro em uma versão hipotética. E as rodas, posso retirá-las a qualquer hora, visto que guardei as originais do carro. Além do mais, acessórios com moderação e bom gosto embelezam ainda mais o que é belo. Correto, mulheres?
Tudo isso colocado, é evidente o quanto gosto desse carro. Mas não é só isso que o torna especial. A antiga proprietária dele, minha tia, cuida de toda a família com especial zelo e atenção. Uma guardiã. Para exercer essa nobre e importante função, ela precisava de alguém que a acompanhasse, de um companheiro, de um parceiro. Afinal não é esse o significado da palavra Escort?
LG
Fotos do autor, exceto indicado em contrário nas fotos
Autor das fotos no autódromo: Rodrigo Lira, do site www.digus.com.br
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