Madrugada de 1º de fevereiro de 1996. Um ônibus da Viação Cometa percorre a BR-381 no sul de Minas. O motor Scania canta bonito, mesclando seu grave timbre com o agudo sibilo da turbina. Parece nem fazer força para empurrar a enorme carroceria de duralumínio. Em poucas horas estaríamos na capital paulista. A missão: buscar um carro recém-adquirido por meus pais.
E assim começava a saga de um Astra GLS 1995, também conhecido como Astra belga, em nossa família. Saga. Fabricado pela Opel em Antuérpia, Bélgica, importado para o Brasil pela Chevrolet. Comprado em Belo Horizonte, retirado em São Paulo, residente no Planalto Central, passando uma temporada em Patos de Minas, MG. Foi de meus pais, de minha irmã, de minha esposa, e agora, meu. De carro de família, chegando a percorrer mais de 30 mil km em um ano, a carro de uso esportivo.
Somente em 2007 é que passei a utilizar um pouco mais o carro. Havíamos ganhado-o como presente de casamento, e era minha mulher quem andava mais nele. Tínhamos também uma Montana Sport, que era nosso principal veículo, utilizado em viagens e deslocamento maiores. O Astra ficava principalmente para o uso diário, urbano.
Em 2010, numa ida ao Autódromo de Brasília, por motivos profissionais, fiquei sabendo que dali a dois dias iria acontecer um trackday. Conhecia vagamente esse tipo de evento por reportagens e tinha um algum conhecimento de pilotagem, adquirido em um curso de pilotagem feito alguns anos antes em Interlagos. Pronto. Decidido: a Montana iria para a pista.
Porém, numa dessas coisas do destino, minha mulher precisou utilizar a picape na semana do evento, e trocamos de carro nesse dia. Peguei o Astra e de imediato percebi que ele é que deveria ir para pista. Desempenho, freios, comportamento dinâmico. Tudo superior à pequena picape, embora ela se comportasse exemplarmente. Como qualquer mulher, é claro que a minha se opôs a idéia de levar o carro dela à pista! Mas disse que tudo bem, se fosse de fato o que eu queria. Contagem regressiva para o sábado do trackday!
Chegando no autódromo, carros bem melhores aguardando a entrada na pista quase me fizeram “botar o rabo entre as pernas” e voltar para a casa. Mas como já havia pago… Pista liberada, relativamente vazia, e íamos pegando o jeito da brincadeira. Delícia! Criança com brinquedo novo! Disputas animadas com dois Puntos T-Jet, e as voltas iam se sucedendo. Muitas mesmo. Mas em determinada hora, numa retomada, percebi fumaça pelo retrovisor. Boxe!
O quadro era desanimador. Motor sem marcha lenta, ruído metálico. Óleo para todos os lados. O retentor do comando de válvulas arrebentou permitindo que quase todo óleo fosse embora. Juro que a luz espia da pressão de óleo não acendeu. O motor, depois de empurrar o carro por quase 280 mil km, não suportou esse duro golpe. Nas palavras de um amigo, o motor quebrado era o menor dos problemas. O outro seria comunicar a dona o acontecido…
Carro na oficina, motor na retífica. Algumas semanas depois e uns três milhares de reais a menos no bolso, o carro estava de volta, de coração novo. Forte, torcudo, cheio de ânimo. Dado o montante do estrago, os pistões foram para última medida (87 milímetros), resultando num discreto aumento de cilindrada (2.044 cm³), e pedi que se arrancassem um “bifinho” do cabeçote, aumentando um pouco a taxa de compressão. Nada mais foi mexido, afinal, ainda era o carro de uso de minha mulher. Estávamos construindo nossa casa, o que exigia também uma maior disciplina financeira. Sosseguei.
Mas um ano depois, num negócio de família, compramos o Fiesta 1,6 que era de meus pais. E o melhor: sem vender o Astra! Aí sim! Poderia dar-me ao luxo de ter o carro para o trackday e eventualmente um deslocamento ou outro!
A primeira modificação foi a instalação de um volante de motor aliviado, depois que vi a reportagem aqui no AUTOentusiastas. Como a embreagem já demonstrava sinais de desgaste, era uma ótima oportunidade de instalá-lo. O original pesa em torno de 10 kg, e o trabalhado, 5,5 kg. Entrei em contato com o fabricante e em poucos dias a peça estava aqui. Durante a instalação, já como o carro desmontado e no elevador, verificou-se que o volante viera errado. O fabricante, numa notável prova de seriedade, mandou de imediato a peça correta, por avião e na mesma tarde, para que o carro ficasse pronto logo. Encomendei também uma polia do comando de válvulas regulável. Instalada, regulou-se o comando com um pequeno atraso.
Rodei assim alguns trackdays, e achei que seria interessante buscar mais aderência e estabilidade. Tomei a liberdade e procurei o Bob Sharp e o André Dantas, daqui do Ae, contando os feitos e as idéias. Solícitos, me deram algumas dicas e explicações sobre suspensões. Do André, nada menos que verdadeiras aulas, como são seus excelente posts que aqui vemos. Optei por comprar um jogo de molas esportivas, que baixaram o carro em torno de 5 centímetros, e amortecedores com um pouco mais de carga. O carro permanecia perfeitamente utilizável no dia a dia, se assim quisesse.
Na hora de alinhar, optei por uma configuração contrária ao que se usa em pista, acentuando sua característica de subesterço. Uai, como assim? Explica-se: normalmente, carros são projetados para serem subesterçantes, ou seja, uma vez superado o limite da aderência tendem a alargar a curva, saem de frente. Para o motorista comum, corrigir uma situação dessa é mais fácil e intuitivo: basta parar de acelerar e, se for o caso, virar mais o volante. Como eu ainda não tinha experiência significativa de pista, ter um carro dócil me permitiria aperfeiçoar a pilotagem sem sustos, aprendendo traçado, frenagens etc., com mais tranqüilidade e segurança.
O problema é que o carro subesterçante aliado ao asfalto muito abrasivo do Autódromo de Brasília (e algumas zebras assassinas), provocava um desgaste brutal dos pneus dianteiros. Volta e meia ficavam despedaçados. Durante um bom tempo andei de aro 14, e utilizei as medidas 175/65, 185/60 e 185/65. Mas chamava-me atenção de que quando trocava pneus, a oferta e variedade de pneus aro 15 era maior, e não raro o preço era menor ou semelhante. Hum…bora pensar em sapatinhos maiores.
Eis que vejo numa promoção rodas originais Volkswagen por excelente preço! Um Chevrolet com rodas VW? Sem crise! Gosto da marca alemã também! Escolhi um modelo aro 15, oito raios, com desenho bem vazado, o que ajudaria na refrigeração dos freios. Comprei e só depois atentei-me para que embora a furação seja igual, o centro das rodas das Chevrolet e VW são diferentes, as últimas tendo um diâmetro 0,5 mm maior. Será que daria problema? E lá estava eu perturbando o André Dantas novamente.
Mais uma vez solícito, explicou-me que tal diferença, embora ínfima, poderia sobrecarregar os parafusos de rodas, visto que o centro da roda não estaria corretamente apoiado. Numa situação corriqueira já seria desaconselhável, em pista então… Rodas num bom torneiro e aumentamos o diâmetro interno para a colocação de anéis centralizadores, numa solução semelhante a rodas instaladas como acessórios. Trabalho cuidadoso, anéis entrando justos e consciência leve. Entrar no fascinante Mergulho da Bruxa — também chamado de Curva do Desespero por alguns…- a mais de 160 km/h e pensar numa roda solta? Não, obrigado!
Conforme o tempo passava e eu ia praticando, as velocidades cresciam e as solicitações também. E os freios não estavam gostando da brincadeira. Depois de uma meia dúzia de freadas fortes, o pedal começava a amolecer e afundar. Impressionante como isso mina o lado psicológico! Você chegar à toda na boca da curva e estar na dúvida se os freios vão funcionar é dureza. Trocamos o fluido de freio especificação DOT 4 por um DOT 5, cujos pontos de ebulição são 230 e 260 ºC, respectivamente. Melhorou, mas ainda não inspiravam confiança. A solução foi partir para fluido com especificação Racing, e aí sim: sem frio na barriga antes das curvas. Curiosamente, esse fluido embora seja DOT 4, tem ponto de ebulição em 300 ºC.
Durante esse meio tempo, os eventos passaram a ser organizados por outra entidade, o Distrito Racing, formada por entusiasmados participantes da modalidade. Figuras sensacionais, os caras dão o sangue para que os participantes tenham o maior tempo possível de pista livre, e com segurança. Num evento, um dos diretores, Glaydson Fernandes, já me conhecendo de etapas anteriores e sabendo que um de meus ofícios é instrutor de direção operacional, solicitou que eu acompanhasse alguns estreantes e os instruísse. Talvez ele não saiba, mas enxerguei naquele pedido um enorme elogio. E é muito emocionante quando um aluno lhe agradece de forma sincera. Um deles, Danilo, hoje praticante assíduo, me chama atenciosamente como “Professor”. Uma honra poder ser chamado assim.
Em regra, carros pouco preparados ou originais agüentam voltas a fio sem a necessidade de paradas. Mesmo assim, elas são necessárias. Nos intervalos entre as baterias, enquanto os carros e principalmente nós descansamos — quem nunca andou num autódromo não imagina o quão desgastante é fisicamente — é hora de conversar com os amigos e até mesmo fazer novas amizades. Lembro até hoje de um caso curioso: topei com um Gol GTI vermelho na pista e brigamos de unhas e dentes, um negócio aguerrido mesmo. Ao fim da bateria, carros nos boxes, nos cumprimentamos pela disputa eletrizante. O piloto, Guto. Somos amigos hoje. Depois esse Gol foi bem preparado, e ficou em outro patamar de desempenho, inviabilizando qualquer disputa com meu carro. Posteriormente ainda consegui brincar brevemente com a dupla, enquanto aqueciam os pneus, conforme a foto. Mas, pneus aquecidos, e foram embora.
Participava de seguidos trackdays, quando o Autódromo de Brasília foi fechado para reforma, que o tornaria compatível para receber uma etapa da Indy. Infelizmente, sabemos que a reforma foi cancelada e o autódromo hoje agoniza, com as obras interrompidas. Mas esse triste fato não bastou para que o conta-giros do Astra parasse de freqüentar as 6.000 rpm. Agora a diversão eram os Hot Laps, também organizado pelo Distrito Racing. O Hot Lap consiste basicamente em voltas cronometradas em uma pista e no caso específico foi no Kartódromo do Guará, uma das cidades-satélite do Distrito Federal. Embora cause estranheza para alguns carros andando em pista de kart, posso garantir que é sensacional. Gostei muito das etapas que tiveram, e o Astra também: a despeito de sua desfavorável relação peso-potência, mais de 12 kg/cv (1.250 kg e 95 cv nas rodas), conseguimos ficar entre os 10 primeiros. Isso reflete bem o quão ágil é o carro. Um espetáculo no Hot Lap foram os Peugeot 106 com swap de motor para 1,6 16v.
Com a paralisação das obras do autódromo da capital federal e a interrupção dos Hot Laps, restaram os trackdays ocorridos no Autódromo de Goiânia. Recentemente reformado, o autódromo dá gosto de ver. O traçado é bem desafiador, com curvas para todos os gostos e uma enorme reta. Andei lá duas vezes, gostei muito, mas a potência relativamente baixa do carro, o coloca lá atrás nos tempos dos participantes. Mas tudo bem. Ando um sem-número de voltas. Certa vez até permiti que alguns amigos andassem no carro, fazendo uma curta “Copa Astra”. Durante o fim de semana imagino que foram aproximadamente 100 voltas, diversão em doses cavalares. E sem problemas mecânicos.
Enfim, essa é a saga desse velho carrinho. Simples, já com o peso dos anos, meio surrado, diria franzino quando se trata de carros de pista. Mas com a incrível capacidade de fazer o seu dono se sentir como uma criança junto a seu brinquedo preferido.
ooooo