Quando se tem uma propriedade agrícola, um dia é diferente do outro. Nada ocorre repetidamente como em um escritório ou em uma fábrica. Há sempre uma surpresa, um fato novo que dificulta demais o planejamento, mas ao mesmo tempo faz da fazenda um local criativo para se ter idéias e mesmo fazer atividades que raramente uma pessoa comum, que fez uma faculdade de Administração de Empresas e deveria estar confinado num maciço de concreto da Vila Olímpia ou na avenida Paulista faria. E assim aconteceu comigo nos idos de maio de 2004…
Naquele ano, havia plantado uma significativa área de milho e o milharal estava carregado como raramente se vê, com produtividade nunca vistas até então na região. Contudo, para a colheita precisava de uma plataforma de milho para acoplar a uma colheitadeira e essa plataforma estava em Guaraci, cidade do norte do Paraná. O motorista da fazenda já vinha com alguns problemas de saúde, intestinais, que naquela manha de maio o fizeram abrir mão da viagem justamente na hora de sair. Era imperativo buscar o referido equipamento para a colheita (afinal, sem colheita, sem dinheiro…) e o único que tinha habilitação categoria D era eu e, assim, acabei fazendo meu primeiro “vôo solo” (viagem solo?) pela estrada afora.
Assim, de manhã, umas 9h30 de uma quinta feira (fazia um frio danado!), virei a chave do F-11000 da fazenda e seu MWM 229 6-cilindros instantaneamente veio à vida soltando seus canudos de fumaça branca, típicos de dias frios. E assim comecei o trajeto Garça–Guaraci, um trecho de 295 quilômetros passando por Marília, Assis, Londrina, Cambé, Rolândia, Jaguapitã — muitos deles de pista simples e com excesso de caminhões. E assim fui indo, motor sempre entre 2.000 e 2.800 rpm para não perder o ritmo da viagem (o 229 gosta de funcionar acima de 2.000 rpm), cruzando as marchas (câmbio e diferencial de dupla redução) sempre buscando reduzir ao mínimo a perda de velocidade. Era divertido ultrapassar os Mercedes turbinados nas subidas, afinal o Ford série F- sempre foi o “patinho feio” dos caminhões, e deixar um Mercedes para trás acaba tendo um sabor especial…Ainda mais porque o 11000 é conhecido como caminhão de 80… 80 km/h!
Quando cheguei em Cambé, resolvi parar em um posto de gasolina para tomar um café e me senti o próprio alienígena descendo de seu disco voador — caminhão Ford 100% original todo sujo de terra em meio a Mercedes L-1618/1620 e carretas Scania 113, todos “tunados” com pneus radiais e adesivos em todos os vidros. E devia estar estranho mesmo até nas vestes, pois estava de camisa polo bem passada e botina bem engraxada e o povo de regata e sandália Havaiana ou outra marca. Mas, tudo bem, encostei no balcão, pedi um pingado, comprei dois maços de Continental (descobri que nesses lugares não existia Marlboro dourado, o cigarro que eu fumava), montei no 11000 e fui embora.
Às 2 da tarde parei em Guaraci, destino final. E para minha “alegria” descobri que não havia nada programado para minha chegada e que o dono da fazenda que liberaria o carregamento, além de não ter falado nada, estava em Londrina. Sem saber o que fazer, resolvi sentar e esperar, comendo os salgadinhos com a Coca-Cola que havia comprado no posto de Cambé. E nessa espera, entre um cigarro Continental “estoura-peito” e outro, vejo entrando porteira a dentro um Vectra prateado: era meu pai e o motorista dele. Disse que tinha acordado mais tarde e quando soube do meu paradeiro resolveu ir atrás — para desespero meu que, além de saber das dificuldades físicas de meu pai (fazia apenas um ano e meio do AVC que sofrera), o “motorista” improvisado dele dirigia muito mal e que o risco deles saírem dali e irem parar em Curitiba, ao invés de subir para Garça, era considerável. Isso sem falar que o cara havia perdido a carteira de habilitação há mais de cinco anos!
Pois bem, as 16h30 aparece o dono da fazenda com a nota fiscal feita, mas ai surgiu o problema do cartão de ponto: faltando meia-hora para o final do expediente não havia uma viva alma disposta a carregar a plataforma no caminhão e liberar minha partida. Depois de muito pedir, o dono da fazenda precisar quase implorar para um maquinista bochechudo ficar mais meia-hora sem cobrar hora extra, carregaram a plataforma de 2,5 toneladas no Ford, junto com diversas peças e baldes de lubrificantes para a colheitadeira, dando umas 8,5 toneladas de peso bruto total. O carregamento terminou umas 18h00 debaixo de uma chuva torrencial e logo pus o pé na estrada novamente. E dessa vez escoltado (literalmente) pelo meu pai e seu “motorista sem CNH”, que grudou em mim de tal maneira que se eu pisasse mais forte no freio corria o risco do Vectra bater na bola do diferencial do Ford…
Cheguei em Jaguapitã, encostei o Ford no posto e enquanto abastecia o caminhão, recebi um telefonema: era meu encarregado na fazenda que precisava tirar um dinheiro no banco para pagar uma consulta médica de um funcionário. Como o Banco do Brasil ficava a uns três quarteirões do posto, pedi uma bicicleta emprestada ao frentista, fui ao banco, fiz a transferência no caixa eletrônico e voltei, ensopado e pensando na sinusite que viria no dia seguinte.
Fui até meu pai e seu motorista e avisei: “Olha, o caminhão não está muito pesado mas está chovendo demais e a viagem é cansativa. E agora as subidas serão ainda mais devagar. Sendo assim, chegando em Londrina, farei um sinal com a mão e vocês me ultrapassam. Daí por diante para chegar a Garça é uma linha reta, não tem erro!”. Meu pai, que já estava cansado da aventura, não estava a fim de chegar à meia-noite em casa, de imediato concordou e partimos no rumo de casa.
E dá-lhe chuva! Pista simples…naquele dia descobri as mazelas da drenagem ruim das pistas. E como uma pista bem sinalizada com “olhos de gato” faz toda a diferença. Como no lugar do rádio no painel havia um enorme tacógrafo, tive que me contentar em cantar, medindo minha voz com a fala do MWM e da água batendo nas caixas de rodas. E o Continental “estoura-peito” que naquele momento era mais saboroso que uma cigarrilha. E nessa tocada fui indo. Em Londrina fiz sinal e uma fila de carros passou, entre eles meu pai, e continuei minha marcha solitária, noturna, e embaixo da mais intensa chuva que presenciei até hoje.
Nessa viagem compreendi todos os conceitos que o Bob Sharp, então colunista do Best Cars, dizia sobre curva de potência, torque e transmissão: mais do que nunca, conhecer a curva de potência do motor, mesmo que no feeling, foi de uma utilidade muito grande. O 229, abaixo de 2.000 rpm, perde rapidamente o giro e o embalo na subida cai assustadoramente, acabando com o desempenho e a velocidade média. Assim, espera-se o motor cair para 2.000 rpm e ao atingir essa rotação baixa-se uma marcha, e o 229 volta para 2.500 rpm, e assim sucessivamente, minimizando a perda de velocidade.
E foi absorto nesses pensamentos que de repente veio uma incontrolável vontade de atender às necessidades fisiológicas…mas, como parar em meio ao temporal? Mas em seguida, no meio da serra de Echaporã, próximo a Marília, a chuva deu uma ligeira trégua. Assim, encostei o Ford numa alça de acesso a uma fazenda, desci, bati pneus e fui fazer “tirar a água do joelho” — até ver um carro se aproximando lentamente, mas a uma distância considerável. Naquela hora meu único pensamento foi a falta que fazia o revólver 38 que meu avô tinha, cano de 2” e coldre de colocar na bota. Como a única “arma” que tinha era um martelo de madeira para bater pneus, tratei de me arrumar rapidamente e com as calças de qualquer jeito subi e toquei o bonde até chegar em Garça depois de 6 horas de viagem e 300 quilômetros, onde meu encarregado me esperava num posto de gasolina para me dizer que era possível chegar até a fazenda com o caminhão sem maiores problemas.
Para meu espanto, alguns minutos depois encosta meu pai e o motorista dele. Ao ver minha reação de espanto, eles logo se explicaram: em Londrina eles me passaram, mas quando chegou na divisa com SãoPaulo eles ficaram com medo de seguir viagem e resolveram me esperar e me seguir, mas para não me causar susto resolveram me seguir de longe. E ficaram me esperando de longe na hora que parei para “desaguar”, com receio de me assustar. E assim chegamos todos são e salvos, meu pai com câimbra e nervoso com o motorista dele (que dirigia tremendamente mal de dia; à noite e com chuva, então…) e com sono, e eu bravo com os dois pelo susto que eles me deram a ponto de eu quase urinar nas calças….de necessidade fisiológica e medo.
Agora, o esquisito dessa viagem aconteceu meses depois. Na fazenda havia uma mulher que morava com a filha e o genro (o rapaz era nosso funcionário) e que tinha graves problemas mentais, já tendo sido internada em sanatório e tudo mais. E essa mulher saiu de casa em julho de 2003 e nunca mais foi vista até junho do ano seguinte, quando uma assistente social de Jaguapitã conseguiu contato com a fazenda dizendo que essa mulher estava há meses morando no lixão da cidade como indigente. A família foi buscá-la e a trouxe para casa, onde providenciou os cuidados. Pois essa mulher, ao me encontrar, virou-se para mim e disse: “Patrãozinho, quase que peguei uma carona de volta para casa. Te vi lá em Jaguapitã e você pegou a bicicleta do frentista e foi no centro e voltou. Só não pedi carona porque quando fui embora o caminhão da fazenda era branco e agora é esse cinza…”
DSA
ooooo