“Yeah, it`s a Hemi!”
No mundo de hoje, é cada vez mais difícil se manter relevante, se você é um fabricante de automóveis. Depois de mais de um século de desenvolvimento, o automóvel moderno converge para uma configuração e ajuste cada vez mais similar, otimizado e maravilhosamente eficiente, mas infelizmente pasteurizado e sem variação alguma. Nos anos 70, se você quisesse um carro pequeno poderia escolher entre motor traseiro ou dianteiro, arrefecido a água ou a ar, e tração dianteira ou traseira. Hoje tudo convergiu para a quatro cilindros transversais arrefecidos a água, e tração dianteira, para ficar no exemplo do carro pequeno de uso normal. Nada mais lógico, visto que esta configuração se mostrou a melhor para este tipo de veículo, mas algo que torna difícil a diferenciação entre as marcas. A escolha do carro acaba por se tornar uma questão apenas do que um sujeito ou sua esposa acham “mais bonitinho”.
Mas ser relevante e diferente nunca foi um problema para a Chrysler. Desde que foi rejuvenescida nos anos 1990 por Bob Lutz, François Castaing e Tom Gale, a empresa tem conseguido ser um oásis de integridade, de fidelidade ao seu legado, de relevância e personalidade únicas. Desde 2003 principalmente, tem conseguido um retorno perfeito à sua fase mais alegre e próspera, que vai do fim dos anos 50 até o início dos 70, onde era a menos envergonhada das produtoras de uma espécie de automóvel americana que convencionamos chamar de “muscle cars”. A Chrysler era protagonista desta era: seus carros não eram apenas superpotentes, mas também alegres e desavergonhados como nunca mais foram. Cores berrantes, faixas diversas, tetos de vinil psicodélicos. Chegou a chamar um de seus carros de “super-abelha” e colocar faixas pretas transversais na traseira para imitar o inseto, e nomear outro em homenagem ao papa-léguas dos desenhos animados, com direito a buzina que fazia “beep-beep” e tudo.
E qual foi o primeiro passo dado em 2003 para este retorno divertido ao passado? O renascimento do V-8 “Hemi”. Hoje, com seus Challengers e Chargers, seus 392 e seus Scat-packs, seus Hellcats e seus Hemis, parece que é 1969 de novo. Uma verdadeira delícia.
Mas, o que significa a tal palavra Hemi? Na verdade é uma marca registrada da Chrysler, que hoje indica genericamente um tipo de motor, tal e qual lâmina de barbear é sinônimo de Gilette. Hemi vem de hemispherical combustion chamber, câmara de combustão hemisférica. Significa que o topo da câmara de combustão é um hemisfério, metade de uma esfera. Na verdade, dificilmente é um hemisfério perfeito, mas como tenta chegar a este ideal, o nome ficou. Significa também que as válvulas de admissão e escapamento estão opostas no topo da câmara, em ângulo (normalmente não maior que 90 graus) entre elas, e com a vela (ou as velas, quando há mais de uma por cilindro) o mais próximo possível do topo do hemisfério, bem no meio da câmara.
A superioridade da câmara de combustão hemisférica com a vela no centro sobre as demais câmaras é a propagação da frente de chama iniciada com a ignição da mistura ar-combustível ser uniforme em todas as direções e sem haver mistura “presa” em algum ponto da câmara, que com o aumento da pressão resultante da combustão tem propensão a se inflamar espontaneamente antes da queima normal, uma das principais causas da detonação (vulgo “batida de pino”). Esse é o motivo de motores com essa arquitetura de câmara de combustão poderem ter taxas de compressão mais altas, o que favorece a eficiência térmica e a potência.
Este tipo de desenho ficou famoso primeiro em competições, a partir dos revolucionários Peugeot de Grand Prix de 1913, onde pela primeira vez se viu o desenho básico do que seria o ápice do motor de combustão interna: o duplo comando de válvulas no cabeçote (double overhead camshaft, DOHC). Mas por anos e anos, este tipo de configuração era considerado exótico e caro demais para as ruas, e portanto eram confinados às competições, e um ou outro carro caríssimo e especial. Comandos ficavam no bloco, operando válvulas diretamente ou, em carros mais sofisticados, válvulas no cabeçote operadas por meio de varetas, configuração chamada, em inglês, de overhead valves (OHV).
O Hemi da Chrysler, apesar de não ser o primeiro de seu tipo como veremos adiante, veio para tentar ser uma ponte entre o comando no bloco e o cabeçote perfeito, de desenho hemisférico. Um motor “Hemi” tem câmara de combustão hemisférica, mas comando no bloco. As válvulas opostas são operadas por varetas e balancins, numa complexidade mecânica divertidíssima. É um esquema em desuso hoje, claro, depois que se passou a dominar a arte de se posicionar e acionar comandos no cabeçote de forma barata e confiável em carros de rua. Hoje, é um anacronismo, mas como qualquer um que tenha dirigido um Charger Hellcat lhe dirá, um anacronismo incrivelmente eficiente e, claro, divertidíssimo.
E para mostrar que a Chrysler detém o nome, mas não exclusividade deste tipo de motor, montei esta listinha aqui. Interessante notar que todo carro equipado com um motor deste tipo é interessante; uma coisa rara de se ver.
E na verdade tem uma grande importância histórica, o tal do Hemi: o primeiro motor com câmara hemisférica não foi o Peugeot GP 1013. Este tem a primazia de ser o primeiro DOHC, mas o primeiro motor a usar câmara de combustão hemisférica que se tem notícia é o Pipe, de 1905. Este motor belga era um quatro-cilindros em linha, com dois comandos no bloco, perto do virabrequim, mas que por meio de varetas acionava as válvulas opostas no cabeçote, a um ângulo hoje não usual de 120 graus, e vela central. O Pipe foi o primeiro Hemi.
Mas ele não entrou na lista. Como também ficou de fora nosso Simca Em-Sul, o Chrysler seis em linha Hemi australiano, e o Isetta-BMW, que adoraria colocar. Por mais que tentasse, não consegui justificar sua presença no meio de tanta coisa legal e exótica. Escolher é perder, sempre, mas nem por isso menos necessário. Mas divago; sem mais delongas vamos à lista então, em ordem cronológica.
Segundo o MAO, os 10 melhores Hemi de todos os tempos são:
1) Riley 2½ litre “Big Four” (1937-1957)
Em 1926, Percy Riley lança um carro que seria importantíssimo para a história de sua empresa, situada em Coventry, na Inglaterra. O pequeno Riley 9 era um sedã pequeno e barato, mas seu motor de quatro cilindros em linha e 1,1 litro tinha algumas características que o diferenciavam de todo resto: colocando dois comandos, um de cada lado do bloco, mas o mais alto possível (mantendo-se o acionamento direto do virabrequim por meio de engrenagem), usava varetas pequenas, válvulas opostas a 45°, e câmara hemisférica.
O pequeno motor girava alto e fácil para seu tempo, e logo se tornaria comum em carros de corrida. Os dois comandos no bloco se tornariam uma tradição da Riley, presente em praticamente tudo que a empresa produzia a partir dali. O seis em linha de até 1,7 litro nessa configuração foi a base para o famosíssimo E.R.A., o lendário carro de competição que Peter Berthon criou para Raymond Mays.
Em 1937 lançava o que estava fadado a ser a última evolução desta linhagem, um grande quatro-em-linha de 2.443 cm³, com um longo curso de pistões de 120 mm e um diâmetro de cilindros de 80,5 mm. As válvulas tinham 90° entre si, e bloco e cabeçote de ferro fundido, mas cárter e pistões em alumínio. Os comandos eram acionados por correntes duplex, e as varetas de acionamento das válvulas eram excepcionalmente curtas, leves e rígidas. Com dois carburadores SU H4, dava 110 cv.
Equipava os sedãs RMB da marca, mas também são famosos por serem o motor dos fantásticos carros esporte de Donald Healey, de 1946 até 1954. A Riley é comprada pela Morris em 1938, que por sua vez se liga a Austin em 1952 para formar a BMC (British Motor Corporation), e acaba negligenciada até que em 1957, os motores Riley acabam.
2) BMW 328/ Bristol six (1937-1961)
Já contei a interessante história do nascimento deste seis-em-linha Hemi bávaro naturalizado inglês em algum detalhe aqui no Ae. Vale a pena reler.
Diferente dos Riley e do Pipe original, o seis-em-linha da BMW tinha apenas um comando, as válvulas opostas sendo acionadas por balancins que acionavam varetas secundárias, que por sua vez acionavam outros balancins no lado oposto do motor. A admissão e os carburadores ficavam em cima do motor, no meio do “V” formado pelas tampas de válvulas.
Com cabeçote de alumínio, tinha fluxo excelente, e girava alto para sua época. Era um motor moderníssimo para 1937, o que o fez ter longa vida. Chegou a equipar com sucesso carros de F-2 da Cooper no pós-guerra, onde ainda era competitivo, principalmente nas mãos de Mike Hawthorne. Nascido com 85 cv de 2 litros na Alemanha nacional-socialista, acaba com 2,2 litros e mais de 140 cv na Inglaterra de 1962. Um clássico até hoje interessante.
3) Talbot-Lago “T26 Record” (1946-1953)
Os seis-em-linha dos Talbot do Major Antonio Lago seguiam a prática dos Riley: dois comandos montados nos dois lados do bloco em posição alta, para varetas de acionamento menores. Com generosos 4,5 litros e três carburadores duplos, era um dos mais potentes motores da época imediatamente após a Segunda Guerra Mundial. Dava de 160 a 210 cv dependendo da versão, com torque generoso. Equipou de monopostos de competição até enormes sedãs, passando por carros esporte diversos.
Um exótico, raro, caro e magnífico puro-sangue de vida curta, mas memorável.
4) Ardun-Ford V8 (1947-1952)
Este é outro motor que já contei a história no Ae, num artigo longo demais da conta como sempre, mas que merece ser relido.
Criado pelo russo Zora Arkus-Duntov antes de ficar famoso na GM, onde tornou o Corvette um carro esporte de verdade, o Ardun era vendido como um kit para converter os onipresentes V-8 Ford flathead, de cabeçote plano (válvulas no bloco) no primeiro Hemi V-8 da história. Não foi grande sucesso para Zora, mas depois que vendeu o negócio, outros pegaram a idéia e a desenvolveram pacientemente, se tornou um clássico entre os hot-rodders americanos dos anos 50. Por causa disso ainda hoje é possível comprar um kit Ardun novinho.
5) Panhard Dyna (1948-1967)
Os pequenos Panhard do pós-guerra foram talvez os mais avançados e bem feitos carros de sua época. Mas o que nos interessa aqui, além da carroceria de alumínio, tração dianteira e suspensão independente, era o seu pequeno motor de 2 cilindros contrapostos arrefecido a ar e deslocamento de 650 a 850 cm³.
Este pequeno motor era uma verdadeira jóia. Tinha mancais do virabrequim roletados, cabeçote integral com a camisa aletada do cilindro, e barras de torção como molas de válvulas. Comando no bloco e câmara de combustão hemisférica, claro, completavam a especificação ambiciosa do pequeno motorzinho.
Girava alto e liso como poucos, e dava tanto velocidade como baixo consumo de combustível. Ganhou várias vezes o Índíce de Performance nas 24 Horas de Le Mans, movendo os carros especiais DB-Panhard principalmente, e era matador em toda prova em que o regulamento limitava a cilindrada a 900 cm³. Um verdadeiro puro-sangue em miniatura.
O Dyna X original deu lugar ao arredondado Dyna Z em 1954, que por sua vez deu lugar ao similar PL17 em 1959, que durou até 1965. De 1964 até 1967 existiu também um belíssimo cupê chamado Panhard 24, o último carro da veneranda empresa. Todos eles equipados com o pequeno e valente Hemi de dois cilindros.
6) Chrysler Fire-Power V8 (1951-1958)
Na esteira do incrível sucesso da GM com seus V-8 de válvulas no cabeçote e comando no bloco (mas câmara de combustão triangular, wedge) a partir de 1949, a Chrysler contra-ataca com uma grande evolução em 1951: o seu primeiro motor Hemi.
Não se chamava Hemi então; o Chrysler era “Fire-Power”, o DeSoto “Fire-Dome”. A Dodge tinha um motor menor com mesmo desenho, chamado de “Red Ram”. Hemi se tornaria um apelido dos hot-rodders americanos, que logo adotaram o motor como um dos seus preferidos, hoje conhecidos coletivamente nesta comunidade como “Early-Hemi”.
O início de uma lenda, que perdura até os dias de hoje.
7) Daimler 4½ Litre V-8 (1959-1968)
Criados por Edward Turner, o famoso engenheiro de motocicletas, criador da Ariel Square Four e o famoso bicilíndrico da Triumph, os dois V-8 Hemi da Daimler eram de qualidade incomum. Tinham cabeçote de alumínio, e desenho da câmara inspirado nas Triumph de Turner.
O menor deles tinha 2,5 litros e foi instalado inicialmente no carro esporte Daimler Dart/SP250, e depois, quando a Jaguar comprou a empresa, no sedã Daimler 2,5 V-8, na verdade um Jaguar Mk2 repaginado. Mas legal mesmo era o V-8 maior, de 4,5 litros e 220 cv: fazia da imensa limusine Daimler Majestic Major algo capaz de acompanhar os sedãs esportivos da Jaguar.
Uma limusine Hemi inglesa. Só de pensar me faz rir sozinho…
8) Chrysler 426 Hemi (1964-1971)
O elefante. A lenda. Sete litros de pura fúria incontida. Criado como um motor de corrida, foi também para as ruas para se tornar o mais lendário dos V-8 americanos. Quando um entusiasta fala em “Hemi” com alguma reverência, ele certamente está falando deste motor.
Uma montanha de potência e torque que só foi superada em pura fúria e maravilhosa falta de lógica pelos Dodge Hellcat modernos. E foi nele que a Chrysler adotou o antigo apelido como nome oficial, ligando-se a este tipo de motor para sempre.
9) Renault 4 em linha de alumínio “A-type” (1968-1986)
O Renault 16 de 1965 é um dos carros mais cuidadosamente engenheirados da história, um eficiente e muito original hatchback familiar que praticamente criou sua categoria. Uma daquelas revoluções ocultas que silenciosamente levantam a barra para um patamar muito acima do que estava até então.
O motor criado para ele não podia ser diferente. Todo em alumínio, pesava menos de 100 kg completo, e tinha um comando único no bloco, mas posicionado bem alto. As versões originais tinham válvulas enfileirados, câmara de combustão triangular, 1,5 litro e apenas 60 cv. Mas como era leve e tinha um transeixo acoplado, foi usada pela Lotus, bem modificado para 82 cv, em seu primeiro carro de motor central-traseiro, o Europa de 1966.
Mas o que interessa para esta lista é o motor lançado em 1968 na versão esportiva chamada R16 TS: usando a mesma página do livro que Amédée Gordini tinha usado para fazer o R8 Gordini, o novo motor deslocava 1,6 litro e tinha câmara de combustão hemisférica e vela central, mantendo o comando no bloco, como nas versões mais mansas. Eram 83 cv no R16 TS, mais que o motor básico “envenenado” pela Lotus.
Este quatro-em-linha Hemi de alumínio, ardido, girador, leve, potente, se tornou o propulsor de uma série de Renaults bravos então, em versões de aspiração natural ou turbocomprimidas. Alpine A110, Alpine A310, R5 Turbo, R17 TS, Fuego… a lista é grande e de dar água na boca. Um grande clássico dos anos 70/80.
10) Dodge Hellcat Hemi (2015- hoje)
Os Dodge Hellcat são coisas que provam que há esperança para a humanidade. Que prova que o espírito humano é mais que lutar pela sobrevivência, este esporte praticado paranoicamente hoje em dia, mas que é característica predominante não do Homem, e sim das bestas.
O espírito humano se eleva não na lógica, na segurança, na falta de individualidade pregada por teóricos que se sentiriam realizados se agíssemos como parte de um formigueiro gigante e acéfalo. Não, o homem é caótico, ilógico, indomável. Nós amamos intensamente, criamos música, dançamos, lutamos pelo que achamos certo, choramos e caímos na gargalhada no momento seguinte. Nosso espírito é tão indomável que criamos máquinas que nos tiram do chão e nos fazem voar, que nos levam para longe rápido, e até nos permitem sair de nosso planeta, apenas pela vontade de saber o que existe além. O espírito humano é corajoso, sem medo, explorador, descobridor. Esta ridícula mania atual de endeusar a racionalidade, a segurança e a saúde nunca vai avançar a humanidade; no máximo nos tornar drones imortais presos a telas interativas, trancados sozinhos em algum lugar, vendo o mundo por detrás de portas eletrônicas que não podemos transpor. Pior que a morte é uma alma amputada, retirada de nós.
Os Dodge Hellcat são o antídoto para tudo isso. Setecentos cavalos de fúria controlada, em um sedã familiar americano. Ilógico, perigoso, perdulário? Claro que sim. Mas libertador como poucas coisas neste mundo de hoje. Como cantar uma música a plenos pulmões, como abraçar forte seu filho, como se apaixonar pela primeira vez, um carro desses é somente sobre emoção pura. Sobre prazer de controlar algo poderoso. Sobre o excesso como uma declaração de independência de pensamento.
E um delicioso e iconoclasta anacronismo de um tempo que não volta mais. Yeah, it`s a Hemi.
MAO