Uma história do leitor Mauro César Reis e Lima
Não estamos mais em outubro, o mês das crianças, mas resolvi compartilhar com os amigos-leitores um pouco das minhas memórias de infância. Como se trata de um site sobre carros, escrevo sobre o Chevrolet Brasil 1958, o meu brinquedão. Enquanto as outras crianças tinham carrinhos de lata, eu tinha um caminhão de verdade!
Começo falando um pouco sobre o senhor José Carlos Martins. Ou melhor, Tio Zezé. Este foi mais um dos milhões de bravos brasileiros que existem/existiram em nosso país. Nascido em família pobre no interior de Minas Gerais, criado “brincando” no cabo da enxada na lavoura de mandioca, Tio Zezé saiu de casa muito cedo, mudando-se para a capital antes mesmo de completar 14 anos. Aqui, em Belo Horizonte fez de tudo um pouco para sobreviver dignamente. Foi pedreiro, capinador, carroceiro, sapateiro, comerciante. Trabalhou duro até dias antes de adoecer e falecer em 2003.
Em 1958, a construção de Brasília estava a pleno vapor. Tio Zezé que sempre tinha “tino” para bons negócios, enxergou na nova capital uma boa oportunidade para trabalhar. Comprou um caminhão Chevrolet novo, 0-km, e passou a levar mercadorias de Belo Horizonte para Brasília. Por ser distante de grandes centros urbanos, Brasília carecia de tudo, Tio Zezé ganhou um bom dinheiro com a venda de itens alimentícios e de vestuário para os candangos e depois para os primeiros habitantes da Capital Federal.
Com a inauguração de Brasília em 1960 e depois com o crescimento da concorrência, Tio Zezé largou o trecho. Passou a trabalhar com mudanças e carretos em Belo Horizonte. O Chevrolet o acompanhava nessas empreitadas.
Certo dia, lá por volta de 1973/74, o velho Chevrolet teve um defeito mecânico qualquer e Tio Zezé pediu se poderíamos dar um abrigo provisório ao caminhão até o conserto. Eu e meus pais morávamos numa casa de esquina que possuía um enorme quintal na lateral do lote, e como espaço não era problema, o Chevrolet foi encostado lá, à sombra da frondosa mangueira. Tio Zezé recebeu uma boa oportunidade de trabalho no Rio de Janeiro e se mudou para a Cidade Maravilhosa. Bom, aí o que era para ser provisório se tornou definitivo…
Por um tempo, meus pais proibiram a mim e ao meu irmão de brincar no caminhão, talvez na esperança de conservá-lo para quando o Tio o retirasse do quintal. Mas depois de uns anos parado e vendo que dificilmente o Chevy Brasil não sairia do lugar, o playground foi liberado. Sim, playground.
A criançada toda do bairro vinha brincar no caminhão. Era engraçado porque todos já tinham as profissões de brincadeira definidas: Eu e meu irmão, “os donos” do caminhão, éramos os motoristas, havia os chapas, que enchiam a carroceria com caixas de papelão e madeira recolhidas na vizinhança, tinha os mecânicos que explorava o velho truck de cabo-a-rabo. Como tudo era democrático, tinha espaço para as meninas. Elas ajudavam na limpeza dos vidros e varriam a carroceria. A cabine se tornou sede do nosso clubinho, a carroceria virou um palco para shows de calouro e também foi o esconderijo da molecada do pique-esconde (tinha um vão entre a carroceria e o chassi que era perfeito!). Na safra das mangas, o caminhão virava uma perfeita escada, ideal para apanhar as mangas mais altas. Apesar de a chapa ser espessa, a lataria ficava toda amassada, pois toda hora o caminhão tomava uma “mangada”. Nós, às vezes contribuíamos com os amassados e a lataria virava alvo dos nossos bodoques
No Chevrolet não havia tédio. Tudo podia virar brincadeira e ser divertido (e perigoso). Uma vez, Luís Pedro, nosso colega da rua, propôs um desafio de coragem. Vencia quem pulasse mais alto do caminhão. Maurício, meu irmão, por ser o menor e o mais novo, pulou do pára-choque. Davi, outro colega, foi mais alto e pulou do pára-lama. Eu, tentando ser o mais corajoso, pulei do capô. Estava ganhando a aposta até que Luís Pedro pulou do teto. Ele levou a aposta, um belo gesso no braço e algumas semanas de castigo em casa. Arranhões, farpas nos dedos e cortezinhos eram freqüentes. Aí chegava mamãe e com um pouco de carinho e Merthiolate®, resolvia tudo.
Também foi palco da vida. Vanusa, nossa gatinha, pariu diversas vezes dentro do tanque de combustível, que enferrujado, parecia mais com uma peneira do que com o tanque. Cada ninhada dela fazia a alegria da meninada que adorava brincar com os filhotes.
Porém, a cada ano que se passava o caminhão se deteriorava cada vez mais. Em 1982, eu já com meus 12 anos, vivenciei uma das cenas mais tristes da minha infância. De manhã cedo, fui acordado com o barulho de um caminhão Mercedes no portão de casa. Fiquei até animado achando que era outro caminhão para mim. Mas não. Um homem barbudo conversou com meu pai e logo começou a mexer no meu playground. Alguns minutos depois chegaram mais homens armados com ferramentas e machados. Era o fim da brincadeira. Aos poucos, foram saindo as rodas, pára-lamas, capô, portas, cabine, motor, caixa de câmbio, carroceria. O chassi tentou lutar, mas foi vencido no maçarico. Ao final do dia, a caçamba do Mercedes estava lotada. E o quintal vazio. Tio Zezé finalmente cumpriu a promessa de tirar o caminhão do quintal. E foi tudo direto para o ferro-velho. Agora eu só teria a rua para brincar.
O tempo passou e cresci. Tive filhas e sobrinhos. Para matar a saudades do caminhão cheguei a levá-los para brincar num ferro-velho de um conhecido. Só que essa geração hi-tech não curtiu muito se sujar de graxa e poeira. Muito menos de correr entre carros velhos e cacarecos.
Um dia desses passeando por Santa Luzia, MG, vi um caminhão semelhante ao meu parado no quintal de uma casa em ruínas (localizei a rua no Google Maps e usei foto do Streetview para ilustrar). Toda minha história de infância veio à tona e decidi escrever este texto. Pensando muito cheguei a conclusão de que os carros mesmo depois de “mortos” ainda podem dar alegrias a muitas crianças.
E vocês? Já tiveram um playground automobilístico?
MCRL