É com prazer que relato ao leitor uma das mais significativas viagens que fiz como engenheiro de desenvolvimento da Ford Motor Company do Brasil. E foi em abril de 2000 que fui à Venezuela apresentar o Fiesta Street com motor Zetec RoCam 1,6-L
A Ford Venezuela (FOV) com fábrica em Valencia, cidade vizinha a Caracas, produzia o Fiesta Street com motor Zetec-SE 1,25-L em regime de CKD e o programa de substituí-lo pelo Fiesta Street com motor RoCam 1,6-L, produzido em São Bernardo do Campo, foi que me levou a esta importante viagem.
O Fiesta venezuelano era basicamente o Fiesta europeu, inclusive com a mesma grade cromada em alguns modelos que cheguei a ver no trânsito de Caracas.
A viagem já iniciou de maneira inusitada, pois na data prevista não consegui vôo direto de São Paulo a Caracas e tive que fazer escala em Miami nos Estados Unidos. E lá fui eu, São Paulo-Miami-Caracas.
Já sobrevoando Caracas, me chamou a atenção as favelas incrustadas nos morros, que mais pareciam um Rio de Janeiro piorado. Perguntei a comissária de bordo a respeito e ela me disse que as favelas venezuelanas eram chamadas de “barrios peligrosos” e que não paravam de crescer devido à deteriorante situação da economia no país. Vale notar que Hugo Chávez estava no poder há apenas 14 meses, o desastre mal estava começando.
Na saída do aeroporto um motorista já me esperava com uma reluzente Ford Explorer e lá fomos nós, de Caracas a Valencia, com ele dirigindo de pé em baixo. Perguntei ao motorista se as velocidades não eram regulamentadas e ele disse que sim, porém ninguém respeitava. No dia seguinte, o mesmo motorista me apanhou no hotel e me levou à fábrica da Ford.
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O time da FOV, com seus representantes de marketing, peças e acessórios, compras, qualidade, manufatura e engenharia, estavam ansiosamente aguardando a minha apresentação a respeito do Fiesta Street brasileiro. E no meu portunhol misturado com inglês, creio que fiz uma boa explanação técnica, comparando os dois produtos.
Na realidade as diferenças fundamentais entre o veículo venezuelano e o brasileiro eram os motores.
O Zetec-SE 1,25-L: 16 válvulas duplo-comando, com 75 cv a 5200 rpm e 11,2 m·kgf a 4.000 rpm e taxa de compressão de 10:1.
O Zetec RoCam 1,6-L brasileiro: 8 válvulas, monocomando, “torcudo” em baixas rotações e com taxa de compressão 9,5:1. Tinha 95 cv a 5.500 rpm e 14,1 m·kgf a 2.250 rpm. Com rotação de corte em torno de 6.250 rpm, não era tão elástico quanto o Zetec-SE, que cortava liso a 6.900 rpm.
O câmbios eram praticamente os mesmos exceto as relações de 2ª e 3ª marchas mais longas no Fiesta RoCam (5,4% e 3,0% respectivamente). A relação de diferencial era a mesma para os dois veículos e também a medida dos pneus, 165/70R13.
1ª 3,58 – 2ª 1,93 (2,04) – 3ª 1,28 (1,32) – 4ª 0,95 – 5ª 0,76:1 diferencial 4,06:1
As suspensões do Fiesta brasileiro privilegiavam o conforto, enquanto que o venezuelano mantinha as suspensões mais firmes, originais do veículo europeu. Foi difícil convencer o time da FOV a respeito desta alteração do produto.
Terminada a apresentação formal, o pessoal da mão na massa já estava esperando para o inicio de uma viagem de avaliação, onde dois veículos, um venezuelano e outro brasileiro, seriam comparados lado a lado, dentro das características de mercado da região andina.
E saímos de Valencia rumo à cidade de Santo Domingo onde ficou patente a força do petróleo na Venezuela. As estradas eram bem asfaltadas, inclusive as vicinais externas e internas às inúmeras fazendas que presenciei pelo caminho.
O Fiesta brasileiro se mostrou mais confortável em termos de suspensões, porém com mais presença de ruído do motor. O RoCam 1,6-L dava conta do recado, mantendo um bom compromisso de dirigibilidade e desempenho de maneira geral. Já o Fiesta venezuelano, embora mais áspero em rodagem, parecia um kart em estabilidade, sendo agradável de dirigir com sua marcante característica “fun to drive”. O motor 1,25-L Zetec SE era muito elástico e com corte a 6.900 rpm , dava gosto de esticar as marchas.
Os dois veículos estavam com os mesmos pneus 165/70R13, inclusive da mesma marca Pirelli, venezuelanos, para que a comparação fosse feita nas mesmas bases de rodagem.
E foi na “Carretera Transandina” que o Fiesta brasileiro mostrou suas garras. Seu torque em baixas rotações dava segurança em ultrapassagens sem a necessidade de trocas de marcha constantes. Tocada simples e fácil para qualquer motorista.
A subida com 15% de gradiente média na Cordilheira dos Andes, entre as cidades de Barinitas e Santo Domingo, foi realmente emocionante. Foram 43 quilômetros com curvas acentuadas e paisagens inesquecíveis. Subimos da altitude de 300 m até 2.800 m, em 50 minutos aproximadamente. Na realidade a cordilheira é tão gigantesca que chega a oprimir os nossos sentimentos.
E após 447 km em 8,5 horas, chegamos ao hotel Los Frailes, onde para comemorar o final do primeiro trecho da viagem, brindamos com um vinho branco geladinho que quase me matou. Devido à altitude em torno de 3.000 m, a minha pressão interna que já estava desequilibrada, com o vinho então, subiu ainda mais. Nem jantei, dormi sentado na cama tomando aspirina para baixar a pressão. No dia seguinte, graças a Deus, acordei novo em folha, o meu corpo reagiu bem e após um excelente café matinal, partimos para a segunda etapa da viagem.
No trecho de Santo Domingo à cidade de Valera, já descendo a cordilheira, que o Fiesta brasileiro mostrou uma qualidade fundamental para a região andina. O Zetec Rocam apresentava excelente freio-motor, ajudando a não ocorrer fading dos freios. O Zetec-SE , em contrapartida, tinha pouco freio-motor devido as suas características de tempo em que as válvulas de admissão e escape ficavam abertas simultaneamente. Motor “girador” porém com pouca capacidade de desaceleração.
A rota incluiu também trechos litorâneos entre as cidades de San Felipe e Morón, chegando a Valencia após 8 horas e 538 km de viagem.
A rota completa, incluindo os dois trechos, foi feita em 16,5 horas, perfazendo 985 km (média de 59,7 km/h).
Os dois veículos praticamente empataram em termos de consumo de combustível, fazendo média de 10 km/l aproximadamente, com a boa gasolina venezuelana.
E com orgulho que ouvimos o pessoal da FOV reconhecendo o potencial do Fiesta Street Zetec Rocam 1,6-L brasileiro, sendo considerado mais adequado aos mercados andinos que o Fiesta venezuelano.
Finalmente, missão cumprida!
Encerro este post com uma homenagem ao querido amigo e engenheiro E. Batelli, que com maestria liderou o desenvolvimento da calibração dos motores Zetec RoCam 1,6-L gasolina, para o mercado venezuelano.
CM