Em uma recente viagem à Europa me deparei com um contratempo que me fez cancelar o vôo direto que tinha reservado e não haviam outros que me permitissem manter a agenda inalterada. As opções que me sobravam para cobrir uma agenda programada de trabalhos eram alguns vôos entre essas duas cidades com escalas, que totalizavam cinco até 23 horas, ou percorrer seis horas e meia dirigindo, segundo me indicava o Google Maps.
Logo que me vi nesse dilema, entre percorrer de avião ou de carro um trecho de ida e volta de Turim a Stuttgart, acionei meus amigos escribas do AE por sugestões.
Pergunte você a um autoentusiasta se ele prefere viajar 600 km de avião ou de carro e a resposta será logicamente a segunda alternativa. Se o tempo de viagem for parecido então, a pergunta soará ridícula e mais ainda se fosse o meu caso, onde o aéreo envolvia longas horas de espera nas escalas. Mas eu tinha somente reservado um Fiat Panda diesel! Treze horas ida-e-volta me pareciam um martírio naquele pequeno urbano e trafegar com ele nas Autobahnen eu teria de fazer pelo acostamento, pois até os caminhões me expulsariam da faixa da direita.
Então a consulta sobre alternativa de transporte mais conveniente não ficou tão óbvia assim e eles e vieram com recomendações de alugar um auto premium. Havia um porém, minha empresa não permite essa regalia e eu teria de arcar com o valor do aluguel, pesquisei no site da Hemingway e preços e o mais legal que minha autoindulgência me permitiria contratar era o novíssimo Maserati Ghibli, 750 euros pelos três dias de aluguel. Eem dinheiros de junho de 2014 isso me significava desembolsar algo em torno de R$ 2.300 reais. Nada mau.
Fui tentar dormir com essa idéia na cabeça, 410 cv extraídos de um V-6 turbo de 3 litros, caixa automática de oito marchas, o carro é estonteantemente bonito e tem o DNA da marca. Na manhã seguinte fiz a reserva pela internet e confirmei por telefone. Só não me disseram a cor externa nem do interior, o que não fazia grande diferença. Eu tampouco tinha provado 400 cv e usar todos eles por horas a fio na Autobahn estava me parecendo bom demais para ser verdade.
E acabou não sendo. Enquanto passava horas numa reunião no dia anterior à viagem a Stuttgart, a empresa de locação tentou entrar em contato comigo e quando conseguiu, já era quase noite, deu-me a notícia, não teria o Maserati disponível para a manhã seguinte, pois ele não fora devolvido pelo outro usuário no horário agendado. Diferentemente das grandes empresas de aluguel multinacionais que conhecemos, como Hertz, Avis, Sixt, que têm disponíveis dezenas de veículos para cada classe de locação, esta pequena empresa não dispunha de outro modelo similar. Propus me concedessem um outro e responderam tinham um Porsche 911 Carrera4 disponível, mas a quase 5 mil reais pelos mesmos três dias, mais que o dobro do Maserati.
Acostumado às grandes empresas americanas de locação, mal acostumado acho, se eles não têm o veículo contratado no momento, imediatamente te oferecem um free upgrade, acompanhado de um pedido de desculpas, em outras palavras, o cliente recebe um auto de categoria superior sem adicional de preço. Não é à toa que os EUA é o lugar de melhores serviços do mundo. Essa primeira experiência de aluguel de autos premium na Itália me ensinou a melhores pesquisas e buscas por reputação.
Não estava somente frustrado e sim, também lascado, era suposto devolver o Fiat Panda alugado para usar exclusivamente na Itália naquela noite e não teria como ir para Stuttgart, uma reunião agendada com semanas de antecedência, como os alemães costumam fazer. Liguei para a locadora e solicitei me concedessem um outro carro maior na devolução deste, mas era quase verão por lá, quando a demanda aumenta bastante e responderam não seria possível e ainda teria de devolver o meu… Depois de longa insistência, aceitaram em ficasse mais uns dias com o mesmo carro. Pronto, resolvido um dos problemas principais.
Meus primeiros seis dias de Fiat Panda, usado para deslocamentos entre Milão, Turim e Bolonha, não vinham sendo dos mais agradáveis. O pequeno Fiat até que vai bem na cidade, seu problema maior é nas autoestradas.
Numa dessas viagens, depois de hora e pouco, comecei a sentir estranha dor nos omoplatas, era um cansaço parecido ao quando pilotamos kart e ele vem do constante e pouco usual esforço com o volante de direção. No Panda não era bem um esforço e sim um constante trabalho para mantê-lo em trajetória reta. Bingo, o Fiat não era bom de reta, sua altura pouco usual e configuração não o mantinham firme na trajetória e as correções eram constantes e permanentes, a certo momento testei algumas mudanças em minha postura, como apoiar os ombros no encosto e trabalhar somente os antebraços, mas resultou em nada. A parada para descanso teve de ser mais freqüente e intervalar a viagem a cada duas horas foi o paliativo encontrado.
Quem não tem cão…
O Panda atual é a terceira geração de um modelo criado em 1980 com várias e substanciais mudanças em relação à segunda, porém longe de ser um projeto novo. Sua proposta passou a ser de eminentemente urbana para um carro “essencial” que pode servir como único veículo da família. Pouco menor que o Uno, que teve suas linhas inspiradas nele, tem 3,65 m de comprimento, 2,30 m de entre-eixos e 930 kg (em ordem de marcha), um porta-mala no singular mesmo, o modelo alugado era propelido pelo conhecido 1,3-L Multijet, diesel 75 cv e câmbio manual de cinco marchas, a última bem longa. Uma surpresa agradável e que desfez de cara minhas expectativas de desempenho contido foi essa motorização, velocidade máxima superava 170 km/h (no GPS cheguei a atingir 180), ruído na cabine aceitável o que teoricamente lhe permitiria um cruzeiro longo como esse até Stuttgart acompanhando o tráfego das Autobahnen, mas a estabilidade direcional era um fator negativo. A concorrência se mexeu, ande num VW up!, por exemplo, e verá o quanto esse VW urbano é bom de estrada, de estabilidade direcional, comportamento, enfim, esses dois projetos parecem distantes em bem mais de dez anos.
Curiosamente, o Fiat é um best-seller não só na Itália, seus números de venda no mercado europeu superam 111 mil unidades até agosto deste ano o que o fazem líder do segmento ‘citycar’. Adorado pelo público feminino, elogiam sua posição elevada de banco, direção bastante dócil e leve e alavanca do câmbio saindo do painel. Justamente duas dessas qualidades se convertiam em pontos negativos em estrada. A direção eletroidráulica tem dois modos, assim como em alguns Fiat aqui, o modo CITY parece calibrado para esforço mosca, tal a leveza para manobrar.
As autoestradas na Itália têm teoricamente limite de velocidade de 130 km/h, mas as autoridades são bastante tolerantes com isso, logo pude trafegar de pé embaixo em tempo integral, fazendo ótimas médias, interrompidas somente pela necessidade de breve descanso a cada duas horas e pouco.
Outro observação interessante foi o sistema de pedágios, além da opção por transponder (como o nosso aqui) você podia usar cartão de crédito e ainda pagando somente uma vez ao deixar a autopista, um rateio justo por km rodado dando bastante agilidade e conforto à viagem. São coisas de país evoluído que poderíamos tentar trazer ao Brasil.
Como experiência negativa em Bolonha, tive um contratempo interessante. Passava perto do Hospital Maggiore, aquele no qual Ayrton Senna foi levado após seu acidente fatal em Ímola em 1994, quando decidi render-lhe um tributo. Encostei o carro num posto de gasolina abandonado a 100 metros da portaria, desci para meia dúzia de fotos e ao retornar, um guincho tentava levar meu carro. Uma enorme discussão entre dois sujeitos que falavam idiomas diferentes se seguiu, estava disposto a não deixa-lo levar meu carro e engrossava com ele, abusando de meus 1,90m, 85 kg e cara de mau, nem assim, pediu-me 50 euros para deixar por isso mesmo.
O guincho não parecia oficial da prefeitura, mas o motorista estava uniformizado como tal, coisas de países latinos. Bem negociado, o tributo ao nosso campeão acabou me custando 30 euros e uma enorme bronca dos italianos corruptos, sem hotel nem roupas para pernoitar sem carro, deixá-lo levar o Panda nunca foi opção, mas seguramente uma delegacia por agressão ao incauto me seria bem pior. Não havia placas de proibido estacionar naquele posto e havia outros vários veículos parados no mesmo terreno. Creio ele percebeu o Panda era de aluguel e tentou tirar algum proveito. Em contrapartida, no pequeno restaurante que almocei, música brasileira de fundo e o dono puxou longa conversa, endosso o que muitos jornalistas que foram para lá já escreveram, os italianos gostam de nós, brasileiros.
Rota escolhida
Há um ano eu sequer havia ouvido falar do aplicativo Waze, para navegar contei com o GPS clássico e o Google Maps no tablet, das alternativas de trajeto, optei pelo que indicava menor tempo, cruzaria também a Suíça e parte da Áustria.
Teria de redobrar cuidados com a polícia suíça, saindo da festa italiana que são as suas autoestradas, onde os 130 km/h são só para constar, a fiscalização quase inexistente e quando há, eles não o perturbam com o seu ritmo. Já os suíços são bastante rigorosos, no trajeto vi policiais observando tráfego com binóculos e vez ou outra avistei-os parando viajantes. Eles multam para valer, os valores são padrão europeu.
Não contava, no entanto com um verdadeiro trânsito paulistano, se pudesse, chamava o nosso prefeito da capital para ensiná-los que tráfego com excesso de veículos se resolve reduzindo o espaço a eles com ciclofaixas e faixas de ônibus, como ainda não pensaram nisso antes eu não sei. E caso o pacato cidadão suíço se indignasse, bastaria chamar uma legião de internautas contratados pelo erário público para combater os reclamões por redes sociais, coxinha na parte alemã da Basiléia diz-se “kleine Schenkel”. No dia 12 de junho o Brasil estreava na Copa do Mundo e tinha combinado de assistir ao jogo inaugural na casa de um amigo. Não poderiam aqueles carros todos estarem saindo mais cedo do trabalho para ver o Brasil jogar.
A beleza da paisagem, acabou compensando o tempo adicional.
Os quilômetros suíços me custaram uma hora e vinte minutos a mais do tempo estimado de viagem, i.e., se esperava cruzar o pequeno país em pouco mais de uma hora, o fiz em quase três, ainda bem o território deles é pequeno.
Na Áustria apanhei autoestradas vazias, seria um trecho bem curto, de poucos quilômetros apenas até cruzar novamente a fronteira, na verdade você só percebe que ainda não chegou na Alemanha por que no território austríaco o seu GPS indica limites de velocidade no cantinho da tela e esse limite desaparece na Alemanha, há enorme semelhança visual entre esses dois países, depois disso seriam menos de três horas de pé embaixo até Stuttgart, se possível evitando mais paradas para descansar os ombros.
Na Autobahn A8 não aliviei o pé nem para piscar, há trechos com limite de velocidade e nenhuma fiscalização, tirei uns dez minutos do tempo estimado de chegada do GPS.
Abasteci e medi o consumo, quase 13 km/l de diesel, parece bom, mas não é, o motor já não é dos mais econômicos e meu modo de dirigir só contribuiu para enriquecer os donos de postos de gasolina.
Cheguei a tempo de assistir o jogo do Brasil, meu amigo é casado com uma croata, torci contidamente e curti pizza quadrada com boa cerveja local.
Para voltar, depois de cumprida a agenda em Reutlingen, apanhei o trajeto que passava por Ulm e um trecho da Suíça, cruzando Liechtenstein, mas também superou sete horas de viagem. Mais habituado ao carro e tráfego, abusei horas de pé embaixo, lembrei da revista Motor 3, quando o saudoso José Luiz Vieira moeu um motor de Panda, deixando as bielas al dente. Trinta e poucos anos depois, a indústria faz carros mais confiáveis, já não quebram com abuso e também são mais ecléticos. No meu companheiro de viagem italiano consegui obter médias horárias superiores a 160 km/h antes das paradas para ombros e combustível e, considerando estes, 125 km/h, impensável aqui no Brasil, menos ainda num carro pequeno como o valente Panda.
O sonho de Maserati ficou adiado. Arriverderci.
MAS