O título dessa matéria poderia ser também “O dia em que os Mestres sorriram”.
Quem não conhece de perto, acha que a vida de jornalista especializado é só moleza, só alegria. Não é bem assim. Vale a velha frase de Einstein:”Você vê as pingas que eu tomo, mas não vê os tombos que levo”.
Normalmente a gente pilota mais o teclado do que carros realmente legais. Só que, de vez em quando, os Mestres olham pra gente e resolvem dar alguma compensação, uma amostrinha da vida de rico. Algo que lembra outra frase, desta vez de Marx: “Eu gostaria de ser pobre um dia. Todo dia enche o saco”.
E, com a graça concedida pelos Mestres, lá foi o Tio Escriba para a Califórnia, mais exatamente San Francisco, ou Cisco para os íntimos. Matéria realmente exclusiva, de brasileiro só fui eu e um “coleguinha”, jornalista da área de “life style”. O Ferrari Califórnia, um conversível de 560 cavalinhos empinados era a razão do bate-e-volta, com umas 20 horas de voo/aeroporto na ida (mais 20h na volta), com escala em Houston, Texas. Para meu colega, a programação em si, com direito a provas de vinho, hotel e restaurantes de luxo, conhecer a região… tudo isso era a matéria. O carro era apenas um acessório.
Afinal, cada um tem seu foco, o que geralmente depende de que tipo de publicação você escreve.
Agora, juntar um esportivo italiano, como um Ferrari, com vinhos diversos e de qualidade (à noite, claro), rodando pelo Napa Valley e Sonoma, a região vinícola da Califórnia (pouco mais de 100 km ao norte de São Franciso) é uma das melhores receitas que conheço de “um dia a ser lembrado”. Principalmente quando o esportivo italiano for um conversível, como o Ferrari California T, e o dia terminar com uma prova de vinhos “locais”.
Normalmente a italiana Ferrari não faz test drive de apresentação para jornalistas. Este foi promovido pela representação americana da marca italiana e daí o representante brasileiro, a Via Itália, nos ter convidado. Programa de luxo e completo: dirigir o California T pelos vinhedos e experimentar um pouco da vida de rico ficando em um hotel com campo de golfe e tudo. Mais que mostrar a esportividade do motor V-8 turbo de 3,9 litros e 560 cv, com a tração nas rodas traseiras, a ideia era aproveitar o lado Grand Tourer deste Ferrari. Ou seja, fazer turismo com a capota abaixada, apreciando as montanhas e vales cheios de parreiras do norte da Califórnia. O mais difícil é conciliar a vontade de acelerar o Ferrari nas estradinhas cheias de curvas com o prazer de apreciar belas paisagens.
E acelerar é uma das especialidades do Califórnia T: saindo da imobilidade, os 100 km/h chegam em apenas 3,6 segundos e, mais impressionante, os 200 km/h após 11,2 segundos. A máxima é de 316 km/h.
Claro, o test drive era em caravana, razoavelmente rápida, com cinco Californias pelas estradas montanhosas. Mas, a gente sempre pode “se perder”, sem querer “ficar para trás” e depois encher o pé para alcançar o resto da turma. Respondendo à pergunta óbvia: é bom? Não, é ótimo. Rodar com um carro onde sobra tudo (potência, torque, “chão”, elegância ….) é claro que enche o ego de qualquer autoentusiasta. Acelera como um carro de pista, tem suspensão firme, claro, mas confortável o bastante para encarar os poucos buracos que achei (e passei por cima de propósito) e com um obediência exemplar.
Aliás, nada de dança do painel (cowl shake), admirável. Achei isso tão incrível que coloquei a roda dianteira direita sobre uma calçada para torcer a carroceria e as suas portas mantiveram o fechamento inalterado. O monobloco não torce.
E tudo issocom dois bônus: o barulho serrilhado dos escapes duplos, bem à Ferrari, ecoando nos barrancos, e a capota (rígida, em duas partes) abaixada para pegar um “bronze californiano”.
Lançado no Brasil no final de 2014 já como modelo 2015, o California T é um dos Ferrari “de entrada” e vem de uma linhagem que homenageia o estado americano. A primeira foi o California 250 GT, de 1957.
Cheio de tecnologia, a eletrônica foi bastante usada para segurança: os 560 cv (a 7.500 rpm) e os brutais 77 m·kgf de torque (a 4.750) só são completamente liberados na sétima e última marcha do câmbio robotizado de dupla embreagem. As marchas contam com borboletas no elegante volante, que também tem o charme extra do botão de partida. Assim, tanto motoristas como pilotos podem usar bem o California T. O câmbio, estranhamente, são botões no console central, sendo muito estranho engatar ré mexendo em uma tecla.
Nos Estados Unidos, esse é o Ferrari mais usado no transporte diário: para 70% dos clientes esta é o primeiro carro da marca e 50% o usam no dia-a-dia. Segundo alguns especialistas (ou “especialistas”) não é um grande Ferrari. Para mim, estava sobrando carro.
Além de todo o infotenimento e a eletrônica de segurança que controla o conjunto motor, suspensão, estabilidade, frenagens, o California T teve duas outras metas no projeto. Primeiro, manter o ruído serrilhado e característico de um Ferrari em um motor com dois turbocompressores, o que não é fácil, já que os turbos abafam e modificam o ruído do escape. E também manter um perfil limpo na carroceria quase toda em alumínio (pesa 1.625 kg), sem adereços aerodinâmicos como defletores ou aerofólios. Tudo foi conseguido através de grades e reentrâncias, que inclusive transferem o ar quente (vindo dos interresfriadores que refrigeram o ar comprimido pelos compressores e do radiador) para a traseira do carro, diminuindo a turbulência. Um recurso tão eficiente que foi proibido na Fórmula 1.
Pelos vinhedos
Definido como um 2+2, o banco traseiro é mais bem utilizado para bagagens ou crianças. O porta-malas de 340 litros se reduz para 240 com a capota abaixada. A capota rígida, juntamente com o vidro traseiro, se aloja no porta-malas em apenas 14 segundos.
E o maior prazer está realmente em rodar com a capota abaixada, inclusive para se escutar melhor o nervoso ronco do “V-Oitinho”(só 3.855 cm³) ecoando pelos barrancos. O motor foi instalado atrás do eixo dianteiro, para ficar entre eixos e a distribuição de massa é 47% na frente e 53% atrás. A razão está na violenta capacidade de frear. Com quatro discos carbocerâmicos, durante a frenagem se tem a distribuição ideal de peso, de 50-50%.
Estabilidade irrepreensível e respostas muito rápidas ao acelerador e volante são marcantes com em todo Ferrari, e o T traz inclusive preocupações ambientais. Economiza 15% de combustível e emite 20% a menos CO2 que seu antecessor, o California 30. Rodando rápido, mas sem grandes acelerações, se consegue algo entre 12 e 14 km/litro de gasolina americana. Com o pé embaixo, os ambientalistas precisam de assistência médica.
Claro, o controles de estabilidade, tração e motor tem níveis, entre o esportivo e o “verde”. E também se pode desligar tudo, o que dá um certo frio na barriga, além de travamento de partes menos nobres do corpo do motorista/piloto. Sem nenhuma assistência eletrônica a melhor forma de não sair da estrada de traseira e descer barranco abaixo é imaginar que se está descalço e existe a ponta de um prego no acelerador. Acelere com carinho, para as rodas traseiras não “descolarem” do asfalto e fique esperto ao volante para correções muito rápidas e delicadas. Ao contrário de outros esportivos, se você se meter numa fria, os controles eletrônicos não religam automaticamente. Você pediu, você que se vire. Por isso é que existe no YouTube tanto Ferrari dando em poste, caindo em banhados…
Claro que existe um aspecto limitante para se ter um “dia perfeito”: o California T custa cerca de R$ 1,9 milhão aqui no Brasil, dependendo da cotação do dólar. Só para constar, minha preferência foi rodar com o modelo em azul. Já que dava para escolher, não fui muito com os cornos do vermelho meio vinho.
Ultima pergunta: chama atenção, mesmo na Califórnia? Sim, e muito. Estava rodando em uma estradinha, havia um SUV na frente, que foi logo para o acostamento. Ultrapassei e a família passou a me seguir, pelo menos quando havia trânsito. Em um entroncamento, o americano para ao meu lado e pergunta: é mesmo um Ferrari? Com a resposta positiva, ele comenta: Lindo de se ver rodando. Aproveite seu dia!!!
Claro, aproveitei por mais de 320 km, mais umas voltinhas na cidadezinha de Sonoma (cerca de 11.000 habitantes com construções da época do Velho Oeste), mais umas manobras no hotel para posar de rico, mais….
E aí voltei para o Brasil para andar com meus cacos velhos. Felizmente existe um velho Escort conversível para se ter um ventinho no rosto e lembrar o dia que rodei com o Ferrari California. Na Califórnia.
JS