“Fora da casinha”, dos esquemas tradicionais, da mesmice. Esta poderia ser a definição do Citroën Cactus com o qual tive o prazer de rodar na Itália por cerca 2.000 km em estreitos sete dias, metade do tempo percorrendo rodovias ótimas e a outra metade em regime de cardápio variado, inclusive com um pouco de off-road leve.
O Cactus é, sob todos os ângulos, o potencial integrante do catálogo da Citroën no Brasil, uma aposta certeira. O sucesso do modelo entre os europeus obrigou a uma revisão dos planos de produção, empurrando os números para cima e que mesmo assim ainda não consegue atender a demanda. Se é bom para eles, será bom para nós, especialmente por mirar (e estar acertando) o alvo: um público mais jovem ao qual a Citroën há tempos devia um produto dedicado. “Quando” ele será vendido no Brasil é ainda uma incógnita, mas de minha parte não há dúvida que ele mais cedo ou mais tarde estará nas concessionárias da marca por aqui e, certamente, saído da linha de montagem de Porto Real, RJ, e não importado, o que o deixaria muito caro.
Assim, antes de ele chegar ao Brasil, resolvi levar o Brasil — eu — até ele, e em uma manhã de tempo besta aterrissei na nublada Milão com o compromisso de retirar um exemplar para avaliação na sucursal da marca francesa na cidade italiana. Chegar lá exigia percorrer um caminho curto, mas o taxista, criativo, “bordou” exageradamente o trajeto. A corrida de no máximo 15 euros ao final registrou 50 no taxímetro. O aplicativo do telefone mostrou a picaretagem em tempo real e, na chegada, a solução foi simples, a ameaça. Com o mesmo telefone que “dedou” o caminho esticado, fotografei a placa do carro, o taxímetro e a cara do pilantra. Diante disso, sem muita conversa nem drama, a corrida ficou por 10 euros. Um “espontâneo” desconto de boas-vindas.
Da calçada à recepção, sentindo a nuca furada pelo olhar do taxista, foram poucos passos. E minutos depois o Cactus apareceu, vermelho como a vergonha. Malas acomodadas, primeira constatação foi a de que o Cactus tem um porta-malas sério, daqueles que abriga sem problemas uma malona das grandes e mais uma, daquelas de cabine de avião, e ainda sobra espaço. Em litros? 358, declarados.
Carro novo sempre se estranha, mas por ser um Citroën, marca que costuma escolher soluções fora do esquema padrão, até que o Cactus não exagera. Sentado ao volante, bem à frente admiro o painel. Um retângulo simples do tamanho de uma barra de chocolate que contém um velocímetro digital, hodômetros, marcador de combustível, um retangulinho para mostrar a seleção do regulador de velocidade e outro para avisar a marcha engatada com seta mostrando se hora de subir ou reduzir. Visualização das informações ótima. Conta-giros, não tem.
No centro do painel, uma telona tátil de 7 polegadas resume os restantes comandos de todo o resto: navegador, sistema de ar-condicionado e áudio e computador de bordo. Nada de complexo para operar mas com reações meio lentinhas. Quer mudar da visualização do navegador para a do áudio? A resposta tem certo retardo, há de se ter mínima paciência.
A versão?
Sabia desde o Brasil que o Cactus reservado para o AE seria a mais potente versão a gasolina, empurrada por um três-cilindros de 1,2 litro superalimentado, motorzinho moderníssimo e premiado (Engine Of The Year 2015…). É capaz de entregar 110 cv a 5.500 rpm e lindos 20,9 m·kgf a rasos 1.500 rpm. Tal escolha fugiu do que são talvez os mais vendidos Cactus da Europa, os empurrados pelos motores diesel, codinome HDI. Visto que no Brasil diesel neste tipo de carro não pode, este Cactus de motorização topo a gasolina aproximaria a sensação ao volante de um eventual modelo à venda aqui. Poderia ser este mesmo tricilíndrico 1,2 turbo (se importado) ou os nossos conhecidos 1,5 ou 1,6 litro que equipam os C3.
Denominado C4 Cactus PureTech 110 S&S SHINE, o carro que acabavam de me entregar custaria 20.600 euros (quase 84 mil reais ao câmbio de meados de março de 2016) de acordo com o “monte o seu” do site da Citroën Itália, sendo Shine a versão mais elaborada em termos de equipamentos (acima da Live e da Feel) e com o motor mais espertão. Opcionais? Só as rodas de liga leve de 17 polegadas (300 euros). Achou caro? Eu também. Mas é preciso lembrar que o nível de equipamentos deste Cactus é elevado. Bolsas infláveis são seis, assim como há controle de estabilidade, de tração, o óbvio ABS e mimos como o auxiliar de saída em ladeiras. Do ponto de vista mecânico/eletrônico o sistema start/stop está presente assim como o “cornering light”(faróis que acompanham a ação do volante iluminando a parte interna das curvas) e sensores que alertam eventual pressão inadequada nos pneus.
Olhando o como um cliente brasileiro, salta à vista a ausência de opção de revestimento interno de couro e — para um carro de mais de 80 mil reais — uma opção com potência superior aos 110 cv entregues pelos tricilíndrico turbo de 1,2 litro de nosso Cactus.
Rodando
Nos primeiros metros, a excelente manobrabilidade do câmbio de cinco marchas chamou a atenção, assim como a maciez dos engates e da embreagem. Não é sequinho como um câmbio alemão, nem preciso como um japonês, mas está em um meio termo aceitabilíssimo. A primeira impressão sobre o ajuste de suspensões revela maciez, uma surpresa, quase incoerente com a altura e pegada “aventureira” com jeitinho de minissuve.
Na primeira parada para um café, rodeei o Cactus mirando os detalhes atentamente. Ponto de maior de atração é, de longe, a lateral almofadada. Um extenso painel de material plástico macio ao toque e pontilhado por pequenas bolhas de ar fofinhas que acabarão definitivamente com a preocupação das vagas apertadas e consequente danos as laterais feitos pelas “portadas” dos desatentos. Bonito? Não. Diferente? Muito, e sem dúvida útil. Outro ponto que chama a atenção é a frente. A boca do radiador é baixa, praticamente atrás da placa e abaixo dela. As luzes estão divididas com uma linha alta de LED no melhor estilão Evoque e, logo abaixo, um bloco retangular com três elementos: farol alto, baixo e pisca. E abaixo disso tudo, o farol auxiliar de neblina.
Na traseira, mais plástico macio, muito, cobrindo praticamente toda a parte baixa da tampa do porta-malas e envolvendo as lanternas. Reflexão imediata é que o Cactus com estes apliques é muito mais insólito para os europeus do que para nós, onde há décadas o estilo Adventure inaugurado pela Fiat criou escola, e foi disseminado por praticamente todos os fabricantes. A onda da suposta robustez conferida pelas partes plásticas aplicadas cá e lá faz sentido.
Mas o Cactus é bem mais do que uma versão fantasiada de um modelo. Ele é o modelo! Nasceu assim,não deriva de nada e é a realização industrial do veículo conceito, Concept Cactus mostrado no Salão de Frankfurt de 2007. Sua síntese agora à venda pode ser resumida como um casamento entre aparência insólita e inovadora e soluções práticas relevantes como o desenho do banco dianteiro, quase que inteiriço (nas versões automáticas o é de fato…), ou a polêmica solução de adotar nos vidros das portas traseiras o sistema basculante. Sim, portas que abrem com vidros que só basculam. Me lembrei de quando andava no banco traseiro do Fuscão do meu pai, do Chevette, do Fiat 147, todos com tal sistema basculante.
Qual a razão para a Citroën dotar seu Cactus de vidros que não abrem de maneira convencional nas portas traseiras? A resposta é a dupla: peso e custo. Segundo os franceses, eliminar o maquinário que sobe e desce os vidros traseiros significou abolir 25 kg do peso, aumentar o espaço transversal do banco traseiro e oferecer no revestimento das portas espaço para uma garrafa de 1,5 l e algo mais.
A obsessão por peso reduzido e suas benesses (consumo menor, maior desempenho global…) não se restringiu a cortar vidros que sobem e descem, mas também usar um capô de alumínio e aços especiais na estrutura, que pesando menos garantam a necessária rigidez e competência ante os cada vez mais exigentes testes de colisão. Com isso a Citroën conseguiu o feito de situar ao redor da 1 tonelada o peso do Cactus, cifra excelente considerando ter ele 4.155 mm de comprimento e atender bem os testes de Euro NCAP (4 estrelas) em 2014. Falando em segurança, outra inovação do Cactus é a localização da bolsa de ar inflável frontal para o passageiro, que em vez de estar no painel, está no teto.
De volta ao volante
Café tomado, quilômetros — cerca de 400 — pela frente me instigavam. Como será o Cactus rodando ao ritmo dos italianos em suas autostrade onde o limite é de 130 km/h? Vibraria demais o tricilíndrico? E o barulho interno? Alto de suspensões, seria instável em ritmos mais animados? E nos curvões rápidos? E nos lentos? E esse banco, bom para colunas problemáticas como a minha? Muitas perguntas que foram sendo respondidas com o passar dos quilômetros (e dias) com o Cactus.
Primeiro ponto, o motor. Nada tem de desanimado. 110 cv que empurram pouco peso são mais do que suficientes com apenas um a bordo e porta-malas cheio. Manter os 130 km/h, pouco mais, pouco mais ainda, não é tarefa difícil. A Citroën declara a máxima de 188 km/h para ele e uma aceleração 0-100 km/h de 9,3 s. É razoável, aliás, mais que isso. É bom mesmo. No trecho mais sinuoso do roteiro os curvões de raio longo foram feitos sem susto mesmo provocando o Cactus, inventando mudança de faixa de rolamento em regime de apoio pleno com desaceleração brusca inclusa, receita boa para sentir quanta vontade tem a traseira de passar para a frente e… nada. Eletrônica atua silenciosa ou nem foi chamada à causa? Acho que a última hipótese.
A ergonomia agrada com leve pecado que é ter de desviar o olhar para atuar nos comandos situados na tela central, uma espécie de iPad onde o dedo precisa se apoiar em um ícone para que o comando seja efetivo. Eu gosto? Não muito. Preferiria ter teclas e botões, um cockpit mais ao estilo Spitfire do que Airbus. Mas esse sou eu, nascido nos anos 1950, e o Cactus certamente não foi pensado para mim mas sim para os que viram a luz no século atual, gente que tecla mensagem com uma mão enquanto manuseia o controle do game com outra…
Resta o fato que, no Spitfire, seria possível continuar olhando pelo para-brisa (e metralhando) enquanto no Cactus “Airbus”e sua tela tátil o dedo deve ser dirigido com o olhar.
Sobre o banco e seu formato quase que inteiriço, a nota é positiva. Há regulagem de altura e costas e traseiro encontram apoio honesto. O volante só tem regulagem de altura, mas o saldo da posição é bom, com a vantagem não indiferente de ser um carro capaz de abrigar gente de estatura elevada e a habitabilidade do banco traseiro não sofrer com isso. Nota sobre o banco traseiro: o encosto não é dividido e a razão alegada foi a busca desenfreada por redução de peso, que neste item — se adotada a solução divisível — acrescentaria 6 kg ao Cactus. No meu modo de ver, não valeu a pena tal economia, pois a versatilidade de um encosto bipartido é algo incontestável.
O trecho rodoviário feito na base da correria, da vontade de chegar ao destino, não pareceu afetar a parcimônia do motorzinho: média de 17,4 km/l de gasolina, ótima, que de certo modo confirma os consumos oficiais divulgados pela Citroën para o modelo: 25 km/l no ciclo extraurbano, 21,2 km/l no ciclo misto e 17,2 km/l no urbano.
Nos dias seguintes o convívio com o Cactus, predominantemente urbano, mostrou que o curioso Citroën tem ótima vocação para ser um faz-tudo. Fácil de usar, fácil de estacionar, boa visibilidade e, ainda, economia. Anotamos uma média de 16,2 km/l sendo que na localidade onde rodamos congestionamentos definitivamente não fazem parte do cardápio.
Apesar de algum tempo de mercado, cerca um ano e meio, o Cactus atrai olhares e não é muito comum ver outros na rua. Mais de uma vez flagramos o senhor ou a senhora, o garotão e até a crianças “virando o pescoço”, confirmando que a receita “fora da casinha”, sinalizada no início, surte efeito.
Na Europa o Cactus tem como concorrentes diretos o Renault Captur e o Nissan Juke, e ambos não passeiam pelo Brasil. A comparação mais imediata com um carro vendido no Brasil seria com o Honda HR-V, mais potente, ou com os Renault Duster e Sandero Stepway mas, no meu modo de entender, o Cactus não pode ser enquadrado nem lá nem cá. A razão é que ele é único, exclusivo e herdeiro digno da tradição da marca dos dois chevrons, onde as cabeças são treinadas para pensar diferente e de maneira criativa e inovadora. E com este C4 Cactus, o objetivo foi atingido.
Ao devolvê-lo, tive certeza de que gostei dele cada vez mais a cada minuto que o dirigi. Como aquela namorada que você fica quase por falta de opção e depois de pouco tempo se pega apaixonadinho. Carro para entusiasta? Talvez não. Falta esportividade enquanto sobra praticidade, falta diversão enquanto sobra racionalidade. Mas há de se tirar o chapéu para esse Citroën, um dos que mais incorpora o slogan Creative technologie.
RA