Imagine uma operação apta a ser chamada Resgate Histórico. É o projeto da Jaguar Land Rover para refazer limitadas nove unidades do Jaguar D-Type em sua versão travestida para uso quase civil e denominada XKSS. Duas primeiras letras indicam evolução sobre o XK 150 — no modelo inicial o numeral 120 indicava-o como o primeiro automóvel de série a cravar 120 milhas por hora — uns 193 km/h verdadeiros. Por que nove ? Foi o volume de unidades pronto, apto a entrega e destruídos no amplo e geral incêndio na fábrica de Browns Lane, no interior inglês, onde era montado mesclando operações industriais e trabalho artesanal.
Em gradação histórica, o XK 120 evoluiu para o C-Type, e dele a Jaguar resolveu fazer projeto específico para carro de corrida, chamando o designer Malcolm Sayer para, sobre o conceito visual criado pelo fundador e alma mater da Jaguar, o depois Sir William Lyons, evoluir a novo produto com DNA de estilo Jaguar. Do lápis de Sayer nasceu o D-Type, uma evolução em tudo, não apenas em preparação, mas também em projeto tratado como um verdadeiro carro de corrida — um bom carro de corrida, e não limitado a carro de série aperfeiçoado.
Lyons entendeu estar de bom tamanho e autorizou a produção de série inicial de 300 unidades, num processo industrial diferente da linha onde fazia os sedãs MK VII e o XK 140. Pelo fato de utilizar muitas operações manuais, a atividade construtiva foi transferida para a fábrica de Browns Lane, isolada, forma de separar, sem permitir interface entre processos produtivos tão diferentes.
Bom produto, venceu a demolidora 24 Heures Du Mans de 1955, 1956 e 1957. Em 1956 bateu recorde: seis carros conquistaram os seis primeiros lugares — marca nunca superada — e em sete anos venceu a famosa prova de resistência cinco vezes. Le Mans sempre se constituiu em argumento de vendas para compradores na Europa e do mercado maior, os EUA.
Usava fórmula de hábil aplicação pelos ingleses, a relação peso-potência. Aproveitando tecnologia aeronáutica mesclaram soluções, num misto de monobloco em alumínio, subchassi e treliça em tubos de aço, em junções por parafusos, vestindo-o com carroceria em alumínio moldada à mão. Na prática numérica o motor convencional Jaguar, evolução do surgido pós-guerra no XK 120, um seis-cilindros em linha, bloco de ferro, cabeçote em alumínio abrigando dois comandos de válvulas, 12 válvulas, quase 3,5 litros de cilindrada, alimentação por três carburadores Weber 45, duplos, horizontais, fazia potência variando entre 250 e 262 cv. Mecânica incluía câmbio com 4 marchas à frente, embreagem multidisco, e inovadores freios a disco Dunlop. Pesava, ao final, em torno de 900 kg. Pouco peso, muitos cavalos, deram resultados dinâmicos em bom status mesmo comparados com números atuais: 0 a 100 km em torno de 7 s; velocidade máxima em torno de 250 km/h — alguns diziam, cravara 260 quilômetros horários.
Ingleses eram, então, bons de construção em carros de corrida, porém fracos em lobbying, não tinham acompanhamento nem voz ativa na feitura dos regulamentos. Enquanto bebiam cerveja quente na Velha Ilha — dizem, por conta da dúbia qualidade das geladeiras Lucas… — o regulamento das corridas foi mudado, e o D-Type barrado no baile. Da série projetada para 300 unidades, haviam vendido 68, tinham carros em sequência de produção, e 25 unidades prontas para ser vendidas a pilotos. Tornaram-se invendáveis com a mudança das regras esportivas.
Sayer e os artífices foram chamados para transformá-los em veículos quase usáveis em rua, o passo inicial para os hoje tão comuns superesportivos.
Mudaram a parte traseira, eliminando a asa aerodinâmica nascendo após o arco de proteção para a cabeça do piloto, amenizaram a elevação dos para-lamas, criaram um para-brisa, acharam meios para receber para-choques e novas luzes posteriores. No lado esquerdo do habitáculo, retiraram a cobertura aerodinâmica — o tonneau cover — e no espaço criaram o banco para acompanhante e uma porta para acesso, aplicaram diáfanos para-choques. Curiosidades, todos tinham volante ao lado direito, aí incluídas as unidades exportadas a países com circulação pela direita; dispensavam uso do marcador de combustível, como os carros de corrida, com o reabastecimento comandado pelos boxes; e mantiveram as pioneiras — e caras — rodas em liga leve injetada, substituindo as clássicas raiadas Dayton e cubos Withworth.
Transformaram 25 unidades do D-Type e as denominaram com óbvio nome comercial do mito XK e o SS traduziria Super Sport. Levaram uma unidade para o Salão de Nova York de 1957 e lá venderam todos os 25. Imediatamente entregaram 16, e um incêndio destruiu a fábrica, consumindo as restantes nove unidades prontas, todo o ferramental industrial e manual, estoque, flambou, queimou, torrou, incluindo carros em processo de construção. Encerrou o projeto.
Os 16 entregues se transformaram em lenda e foram para os EUA — e de lá, duas para Cuba.
Carro era rápido, andou matando proprietários – como em Cuba, numa corrida reunindo as duas unidades, entre Havana e Playa Vera, um se acidentou, o proprietário morreu, e a sucata foi preservada por anos, até que o inglês Colin Crab, especialista em comprar carros importantes em mercados desimportantes, conseguiu adquiri-los e tirá-los da ilha – já havia feito ações semelhantes no Brasil, Argentina e Uruguai.
Uma das unidades, tratada como ícone, pertenceu ao ator Steve McQueen, sempre identificado com automóveis e motos esportivas. Comprou usada a de número de série 713, restaurou completamente pintando-a em BRG, o Bristish Racing Green, a cor oficial da Inglaterra nas corridas, vendeu em 1967 à William Harrah’s Automobile Collection, em Reno. Em 1978 recomprou, mantendo-o até falecer em 1984. Após, sua unidade foi para o festejado Petersen Automotive Museum, em Los Angeles.
Performance e exclusividade fazem história. Das 16 unidades enviadas para os EUA remanescem 14. Destas 12 foram em prestigioso encontro, o Pebble Beach Concours d’Élegance, na junção de Carmel-Monterey, Califórnia, edição 2010.
Fênix, a propósito
Você sabe, todas as histórias envolvendo automóveis antigos tendem a ter a base real desprezada e redirecionada para o romântico caminho a transformá-las em histórias sobre etéreos fundamentos. Usualmente se abandonam as razões fáticas, econômicas, jurídicas, trocando-as por soluções e decisões apenas emocionais. Todo carro antigo tem uma história única, particular, exclusiva. Quando em grupo, então, a coisa desanda e o volume a propele transformar-se em lenda.
É o caso deste resgate iniciado pela Jaguar Land Rover, união das marcas inglesas ora comandadas pelo capital indiano da abonada família Tata. Quando adquiriram a Jaguar e a Land Rover, unindo-as, mantiveram o Jaguar Heritage, espécie de centro de memória da marca, minimuseu com aconselhamentos, venda de livros, miniaturas, camisetas, coisas do gênero. Operação trêfega, distante de marca com tal portfólio de imagem e corridas.
Um projeto de marketing, para valorizar a história e a marca fomentou atividades no Heritage, logo anunciando iniciativa: reunir especialistas aposentados, estoques originais — as famosas NOS, New Old Stock — , os artífices em manutenção da mecânica, e os lanterneiros altamente especializados em moldar chapas, e propuseram reedição de seis unidades do E-Type Lightweight, versão do famoso XKE com carroceria em alumínio. Logo as fizeram, vendendo a surpreendentes US$ 1,5M cada. A iniciativa cumpriu o objetivo, dar caminho à junção de equipamentos e talentos, aqueceu motores, afinou a equipe, fez lucro e mostrou, o caminho de cultivar a história é atividade rentável em pecúnia e ganhos institucionais. Com bons resultados o Heritage evoluiu para departamento com mais fôlego, o Jaguar Classic, ampliou espectro operacional, vendendo peças, aconselhamento e aceitando carros para restauração, reforma, reerguimento.
Curiosamente, com todo o apelo de fazê-los chocar nas cinzas de Browns Lane, não chamou a iniciativa de Phoenix, como a mitológica ave grega. Operação economicamente encadeada, construir as nove unidades do XKSS está longe de ser rompante emocional, romântico passeio pelo resgate da história, mas atividade econômica rentável, com resultado paralelo em estruturar-se para auxiliar aos preservadores da marca.
Classificação
Será classificado como Réplica?
Questão a ser debatida, mas o bom senso diz serão carros originais, pois refeitos sobre os desenhos, com metodologia original, pela mesma marca, 59 anos após ter-se encerrado, sob teto e com nota fiscal do mesmo fabricante.
Se motores evoluíram internamente, manterão o mesmo layout externo dos seis cilindros em linha, com a tampa de válvulas em alumínio polido, os carburadores novos – ainda fabricados pela italiana Weber e pelos chineses copiadores. Visualmente única diferença gritante será o pequeno marcador de combustível, não existente no painel de instrumentos fornecido pela Smiths ao XKSS original, terá que ser alojado em algum lugar à vista do condutor.
O projeto do XKSS se enquadra neste gabarito de lucro com história. Em vez dos seis Lightweight, serão nove unidades, como anunciado no Salão de Nova York na semana passada. E, susto, mesmo com o preço fixado em um milhão de libras esterlinas, US$ 1,4M, cinco unidades foram vendidas no ato: duas para clientes dos EUA; dois para gentleman drivers ingleses; outro para a Nova Zelândia. Restam quatro. Afim? Avie-se. Como disse alguém, ora olvidado, aparentemente inspirado neste desagradável pedaço de realidade que nos foi imposto: a vida é curta e incerta – coma logo a sobremesa.
O XKSS
Bom produto, selecionador de usuários. É quase esperto como um esportivo atual, tem linhas de mito, o meio ambiente transmite as sensações de parte móvel da história, e comportamento dinâmico como um carro dos anos 1960: suspensão dura, direção sem nenhuma assistência, freios ainda bons apesar de nenhum ajutório como ABS.
Espera-se, no refazimento, permitam desenvolver adequações ao uso de ruas e estradas. O carro original, um automóvel para corrida em época preeletrônica para injeção de combustível e ignição, sem comandos variáveis para as válvulas, tinha marcha-lenta tropicante, falha, irregular a 2.500 rpm por conta da angulação dos ressaltos dos comandos de válvulas. A combinação com relações de câmbio extralongas, para corridas, e a primeira marcha sem sincronização, coisa desconhecida por motoristas com menos de 50 anos, torna a condução operação dedicada. Arrancar com um automóvel destes exige acelerar muito, impondo desgaste maior, fritando a embreagem. Em tais termos, subida de garagem, nem pensar.
A Jaguar não mais produz os motores com seis cilindros em linha, nem o câmbio manual com 4 marchas à frente. Para refazer o XKSS em originalidade aparente, sem empregar os atuais motores L-4 e V-6 turbo, possivelmente se valerá de peças novas ainda remanescentes em revendedores da marca para manutenção da frota usada.
RN