No início, se quiséssemos ir a algum lugar, simplesmente nos levantávamos e íamos andando. Éramos na verdade uma raça nômade, se locomovendo para onde estava a melhor caça, pesca e colheita incessantemente, por dezenas de milhares de anos, até que aprendemos a cultivar o solo, e por consequência firmar residência, coisa de dez mil anos atrás. Com a residência vieram os vizinhos e as famílias, o que foi suficiente para fazer aparecer também a cachaça.
Mas andar para onde queríamos ainda permanecia a maior das liberdades, e algo preservado por costume, leis e religiões desde a aurora da humanidade. Ou pelo menos deveria ser, como concordaria qualquer sírio na fronteira com a Hungria. Até hoje, sair de casa a pé e ir a algum lugar sozinho é um prazer primal, básico, para todos nós.
Mas é limitado. A velocidade é baixa, e por consequência o alcance é pequeno. Ande por mais de quinze minutos e você já começa a se cansar, e a suar. Sim, exercício é bom, principalmente para o homem moderno que nunca faz trabalho braçal. Encher uma laje, carpir um terreno ou esfregar o chão do banheiro também cansam o suficiente para tirar qualquer um do sedentarismo, mas o homem moderno prefere trabalhos mais civilizados em ambientes com ar-condicionado, e com eles consegue dinheiro suficiente para pagar formas mais socialmente aceitáveis de se cansar até à exaustão, como academias, maratonas de bicicleta e coisas do gênero. Mas divago; o fato é que o andar é limitado como forma de libertar o homem de suas amarras geográficas. O espírito humano quer ir mais longe, quer se libertar de suas limitações, queria ser maior e mais forte do que era.
Domesticamos cavalos, então. Foi um grande e maravilhoso progresso. São animais magníficos, os cavalos, e aprenderam a nos levar em seu dorso, muito mais rápido e mais longe do que antes conseguíamos com as nossas pernas. Não eram asas ainda, mas nos colocando bem acima do chão, a velocidades incríveis, a sensação era parecida com um voo rasante. Os cavalos elevaram nosso prazer de se locomover, e as distâncias possíveis, a outro patamar. Por milhares de anos, foram uma mágica extensão para nossas pernas.
Mas como meio de transporte, também eram limitados. Como o homem andando, o cavalo também se cansa. E o homem em cima dele, também, tinha tolerância limitada de tempo em sela. Além disso, os cavalos são seres vivos de personalidade forte, e portanto, por mais que nos fossem maravilhosamente servis, nunca teríamos o completo domínio sobre eles. Se conseguíamos, eram por raros momentos de sinergia, que vinham da longa exposição de um ao outro, até que fosse atingido um nirvana especial descrito pelos arqueiros montados japoneses como “Jinba ittai”: ser uno com seu cavalo. Mas a realidade diária era de milhares de pessoas que não tinham afinidade nenhuma com o animal, e os usavam de maneira irresponsável, inepta, e muitas vezes cruel. Um convívio marcado pela recalcitrância, raiva mútua e muitos tombos.
E existia o problema dos excrementos. Se você acha que carros poluem, pare para imaginar todos eles substituídos por cavalos, exímios praticantes da arte de defecar e andar ao mesmo tempo, sem respeito algum para lugar ou circunstância. A rainha está sendo coroada? Se a vontade vier para os puxadores de sua carruagem, vai ver fezes do mesmo jeito… Cidades como Londres no século XIX eram uma verdadeira latrina a céu aberto, com milhares de toneladas de bosta de cavalo depositadas por milhares de animais diariamente em suas ruas e avenidas. Se chovia tudo se tornava uma enorme poça de lama esverdeada, pestilenta e pegajosa, se fazia sol secava tudo e virava uma poeira que ia para todo lugar, permeando tudo na cidade, levantada pelo tráfego. Moscas e doenças estavam por toda parte. Uma situação incrivelmente inaceitável para o homem moderno, mas encarada com relativa normalidade pelos cidadãos londrinos de 1800.
Sair com um cavalo para algum lugar também não era tão fácil como andar. Não se deve desprezar a facilidade para iniciar a viagem; não existe nada mais frustrante do que precisar ir a algum lugar rápido e ter que passar um tempão preparando selas e arreios. E os cavalos, como eram animais vivos, tinham que ser presos e cuidados em estábulos, e alimentados diariamente, para não fugirem ou simplesmente morrerem de frio, calor ou inanição. Nada de deixar seu veículo três dias estacionado, porque na volta ia encontrar apenas um festim de urubus. Ou na melhor das hipóteses, um cavalo extremamente mal-humorado, que nunca mais te perdoaria…
Foi quando apareceu a bicicleta. A bicicleta “de segurança” de 1876 foi uma das grandes invenções da humanidade. Leve, prática e pessoal, tornava o transporte individual bem mais fácil e sem maiores preparações; era só montar na bicicleta e sair pedalando até seu destino. Nada de arreios, selas e estábulos: a bicicleta estava sempre pronta, mesmo depois de semanas sem uso, e podia ser guardada em qualquer canto da casa. E o seu motor era muito menos propenso a depositar seu resíduo por toda via carroçável.
Mas algumas limitações permaneciam. Bicicletas cansavam mais que cavalos, e a velocidade e o alcance permaneciam limitados. E, como em cavalos, quando chovia você se molhava, quando fazia sol você suava mais. Apenas em carruagens fechadas puxadas por vários cavalos podia se viajar protegido do tempo. Se você não fosse o cocheiro, claro…
Mas para ir mais longe, agora as pessoas tinham o trem a vapor, a máquina de transporte mais veloz e de maior alcance criada pelo homem até então. Trens revolucionaram tudo, pois pessoas que nunca tinham saído de sua cidade natal agora podia ir num fim de semana a lugares que nunca poderia ir antes dos trilhos. Mas transporte coletivo não é sobre o que falamos aqui; seus horários inflexíveis, suas rotas imutáveis sobre as quais não temos controle, seu conforto limitado, sua privacidade nula e sua fria personalidade robótica não fazem nada para elevar o espírito humano.
Na verdade, é algo opressor e sombrio, uma triste pausa na vida para chegar a algum lugar que queremos ir. Dentro dele, as pessoas agem como drones descerebrados, desligando o cérebro e olhando desoladamente para o vazio, seja ele se desenrolando pela janela ou em telinhas eletrônicas diversas. Ele tira as rédeas da vida da gente pelo tempo em que estamos lá, e somos apenas gado ali, descerebradas entidades baseadas em carbono sendo deslocadas de cá para lá. O transporte público é extremamente útil, mas também extremamente triste.
Então aconteceu uma maravilhosa revolução. A invenção do motor de combustão abriu um oceano de possibilidades. De uma hora para outra, velocidades incríveis eram possíveis, em máquinas que não cansavam nunca. Bem, não imediatamente, os primeiros automóveis eram pouco confiáveis, mas mesmo assim, muito melhores que os cavalos e bicicletas que os substituíram. Em pouco tempo, mudaram o mundo completamente, dando ao homem uma liberdade antes só possível em sonho.
O avião apareceu logo em seguida, teoricamente a definitiva forma de liberdade mecanizada do homem. Mas com o tempo, seu alto preço, a necessidade de campos específicos para que levantasse voo e pousasse, e a dificuldade e o custo de operação, o relegaram para todos os efeitos práticos à mesma função que antes fora do trem: a de transporte coletivo. Um tubão de alumínio que nos leva de um lugar a outro. Uma ínfima parcela da população mundial consegue manter aviões particulares, e mesmo eles são limitados em sua praticidade: um avião precisa de um aeroporto, e portanto colocar as malas e a família dentro do carro e ir até a porta de seu destino final ainda é algo reservado ao automóvel.
O automóvel, em sua forma totalmente evoluída, é algo muito melhor. Deixe-o um mês parado na rua, debaixo de sol, de neve, de chuva, o que seja, não importa: ele vai pegar imediatamente assim que você o comande a fazê-lo, e te levar obedientemente até onde você quiser. Da sua garagem até a garagem de sua namorada, a 200, 300, 500 km que seja. Do seu trabalho até o seu compromisso do outro lado da cidade, depois para pegar as crianças na escola, para casa, e de novo para o cinema com a esposa de noite.
Fiel, imediato, sem reclamar, te protegendo do tempo e barulho lá de fora, na velocidade que você escolher, pelo caminho que você escolher, no momento que você escolher. Anda facilmente 500 km em um tanque, em 5 horas ou menos, e acabado o tanque, em 5 minutos de parada pode se conseguir mais 500 km. Ele é a própria personificação da liberdade de movimento, a carruagem dourada divina que nos obedece como mágica, e está sempre de prontidão nos esperando. Só por esquecer o passado se deixa de maravilhar com algo tão bom. Só não conhecendo um mundo sem ele.
Quem já passou muito tempo pegando ônibus e metrô para se locomover sabe do que estou falando. Olhando parado no ponto aquelas pessoas indo a algum lugar com seus carros, sem ter que esperar no ponto, sem ter que dividir parco espaço de pé com gente suada, sem banho, fedida, sem andar mais devagar, indo de porta a porta, era ser um preso olhando para o mundo lá fora através das grades de sua cela. Num automóvel, o motorista é senhor de seu destino, capitão de seu navio. Pode ir para onde desejar, agora, sem espera nenhuma. Basta querer.
Eu vejo muitos amigos hoje se esquecerem disso, principalmente os que moram em cidades grandes. Não é para menos. A explosão demográfica dos grandes centros urbanos os tornaram lugares onde o automóvel se torna uma maneira ruim de se locomover. E esta situação é muito pior no Brasil, onde a falta de planejamento e investimento em de transporte público urbano tornou o automóvel particular a única opção viável para o povo. A inviabilidade deste conceito por sua vez criou forte revolta contra o automóvel pessoal, pelo simples fato da existência de muitos deles congestionar tudo. Algo que é, vamos combinar, ridículo, porque é consequência, não causa-raiz. Revolta deveria haver com a falta de opção: metrô é pequeno e lotado, ônibus lerdos e lotados, táxis baratos rodando esperando você fazer sinal para parar inexistentes.
Táxi… proibiram o Uber em São Paulo porque os taxistas reclamaram. Táxi? Tem táxi em São Paulo? Ah, aquele povo que faz fila no aeroporto para extorquir grana de coitados que viajam regularmente a trabalho, lembrei. Toda cidade grande do mundo, Buenos Aires subdesenvolvida incluída, tem táxi barato de monte rodando, mas aqui é diferente.
Transporte aqui é tratado de forma irresponsável e esquizofrênica, dependente do carro particular, mas negando-o de todas as formas possíveis, e tornando a vida da população que o usa (todo mundo) um inferno. Quem pegou ônibus e trem no Brasil regularmente sabe que melhor enfrentar o inferno do carro pessoal que esse outro círculo mais interno de sofrimento eterno chamado “transporte público”.
E existe agora uma ênfase na bicicleta em São Paulo como opção de transporte. Nada contra o uso dela para quem assim deseja e tenha inclinação física para tal, mas defendê-la como uma opção viável a todos é algo que não consigo entender. Na verdade, consigo sim, se pensar bem.
Bicicletas nas ruas nos dão um ar de civilizados, de artistas europeus, de gente fina elegante e sincera com habilidade p’ra dizer mais sim do que não. Viajando pela Europa e Nova York, os tupiniquins ficam maravilhados com esse povo bonito e suas bicicletas, e acabam se achando atrasados por não ser bicicletudos também… ah, a consciência ecológica! Ah, a tranquilidade de andar pedalando pelas pradarias da Holanda! De ir pedalando comprar um Bagel no Soho!
Nossa realidade urbana é bem diferente. Vivemos no calor no meio do lixo, ônibus fumacentos, bandidos com facas, e caminhões fabricados em 1983 com motoristas em sono REM. Eu acho um despropósito estarmos hoje em dia falando de bicicletas. Difícil aceitar a redução das vias em toda parte, vias estas já lotadas e congestionadas, para inclusão de ciclovias. Mas não porque seja antagônico às magrelas, muito pelo contrário, mas porque é totalmente irrelevante ao grande esquema das coisas. Continua só piorando a vida de quem é obrigado a usar o carro em cidades como São Paulo. Ou seja, da maioria da população (7 milhões de carros para 11 milhões de habitantes, ou 1,57 habitantes por carro).
É por isto que aflora o sentimento anticarro atual. Não porque o carro seja ruim, mas sim porque o governo, incapaz de dar solução pública boa para a movimentação urbana de sua população, coloca a culpa de tudo no automóvel pessoal, querendo dizer que a população é a culpada por “escolhê-lo” em detrimento do transporte urbano. Em países civilizados este tipo de campanha pode fazer algum sentido, mas aqui? Francamente… Como consequência, os paulistanos e cariocas (e outros urbanóides brazucas) esperam ansiosamente o carro autônomo, esse triste táxi cibernético e bestificante, para que no seu trajeto diário fatalmente demorado e enfadonho, possa aproveitar o tempo no mundo virtual. Ou trabalhando, essa nova droga moderna da qual ninguém pode escapar sem ser um pária. Falei o que penso do carro autônomo aqui, e, portanto, não vou me repetir.
Estou aqui escrevendo tudo isso não para propor algum a solução milagrosa para o trânsito urbano brasileiro. Não, mesmo porque qualquer cidade grande do mundo não é o melhor lugar para se aproveitar o automóvel. Nem em trajetos diários e constantes, apesar dele ser capaz de fazer esta missão muitas vezes melhor que o transporte público. A beleza do carro, como já disse, é outra. É quando se precisa chegar rápido, de repente, em algum lugar. É quando sabemos que alguém querido precisa de nós à noite. É quando queremos de repente fazer um jantar romântico com a patroa a 100 km de distância, na beira da praia. É quando, no fim de semana, o seu dono o usa para sair de seu mundinho diário e pegar a estrada. Quando se colocam as malas nele e se resolve sair por aí. Quando passamos o mundo por nossas rodas para ver algo que está lá longe. Quando exercitamos de forma plena, completa, inegável, o nosso sagrado (e constitucional) direito de ir e vir.
Não é o destino que importa, mas sim o caminho que escolhemos. O automóvel transcende a condição de mero meio de transporte, como já repeti várias vezes. Não existe para apenas nos transportar, mas sim por nos dar a liberdade de fazê-lo da forma que quisermos, na velocidade que quisermos, na companhia que desejamos, indo aonde desejamos, pelo caminho que escolhemos. Um amplificador do espírito indomável do ser humano, e o melhor veículo para exercitar a liberdade pessoal.
A gente se esquece disso preso ao trânsito da metrópole todo dia. A tristeza desta condição não-natural permeia tudo que se fala de automóveis hoje em dia. Mas a gente não pode se esquecer disso, deste chamado à liberdade que o automóvel responde tão eloquentemente. Somente exercitando esta liberdade, usando nossos carros de maneiras legais, na estrada, longe dos centros urbanos, é que lembraremos o porquê nos sentimos atraídos por esta máquina.
E eu tenho uma dica para fazer você se lembrar disso, para dar um tranco nessa falta de entusiasmo. Eu me lembro de tudo isso que disse aqui simplesmente ao ouvir a música “Running on Empty”, do americano Jackson Browne. Isto porque a ouvi pela primeira vez em 1995, na minha cena preferida do filme “Forrest Gump”. Existem muitos motivos para que você, se nunca parou para ver este filme, fazê-lo assim que puder. É uma verdadeira fábula moderna que nos faz pensar sobre o poder do destino e do acaso em nossas vidas, e uma alfinetada em quem acha que consegue controlar tudo. Como a pena ao vento do início e do final, o filme é uma grande metáfora maravilhosamente bem costurada e executada. Um clássico.
Esta tal cena preferida começa quando o protagonista, sentado no banco da praça, conta a uma senhora o seguinte:
“Naquele dia, sem nenhuma razão particular, eu decidi sair para uma pequena corrida. Então eu corri até o fim da estrada. E quando eu cheguei lá, eu pensei que talvez eu devia correr até o fim da cidade. E quando eu cheguei lá, eu pensei que talvez eu devia ir adiante e atravessar o condado de Greenbow. E eu pensei, já que eu andei isso tudo, talvez eu eu devesse ir adiante e atravessar o grande estado do Alabama. E é isso que eu fiz. Atravessei o Alabama. Por nenhuma razão em particular eu apenas continuei indo. Corri até o oceano. E quando eu cheguei lá, eu pensei, já que andei isso tudo, eu poderia muito bem me virar, e continuar andando. Quando cheguei ao outro oceano, pensei que, já que andei isso tudo, eu poderia muito bem me virar agora para trás, e ainda continuar andando.
Quando estava cansado, eu dormia. Quando estava com fome, comia. Quando eu tinha que ir, você sabe como é, eu simplesmente ia.
– Então, você apenas correu?
Sim. Eu corri!”
O que se segue, ao som de Jackson Browne, é uma maravilhosa sequência de imagens maravilhosas, visitadas pelo corredor Forrest. É um trecho em que nós, os espectadores, sentem maravilhados exatamente o mesmo sentimento de liberdade sentido pelo personagem. Estradas em montanhas, lagos e desertos passam pelos pés dele, sem pressa e sem compromisso algum a não ser com ela mesmo. Ouço nesta cena, claro como o dia, o chamado da estrada.
Browne nos diz na música que “olhando a estrada correndo debaixo de minhas rodas, eu não sei como lhe dizer o quão doida esta vida me parece” e naquele exato momento aparece uma vontade imensa de me levantar, ir até a garagem, pegar o carro, e sem nenhum motivo particular, apenas correr. Para aonde a estrada me levar.
MAO