MacBeth, aquele nobre escocês criado por Shakespeare para mostrar a tragédia da busca insana pelo poder, diz quando encara a sua esposa morta: “A vida é uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria, significando nada.” Sendo eu mesmo facilmente qualificável como o contador de MacBeth, pensei em tentar fazer como ele e contar a tal da história cheia de som e fúria que significa nada.
Isto porque, se você me perdoar a risível tentativa de elevar o nível da narrativa de um evento corriqueiro usando esta frase famosa do bardo, as 18 voltas que dei em Interlagos sábado passado são claramente para mim uma perfeita metáfora da vida.
E como não pensar assim? Você entra na pista pela primeira vez cheio de entusiasmo. De cara não entende nada e não sabe muito bem o que está acontecendo, e tudo parece emocionante, diferente, e também apavorante. Começamos errando muito, mas aprendendo ao mesmo tempo, exponencial e rapidamente. Depois competimos com um monte de gente, tentando se manter no jogo sem se humilhar muito. Percebe-se no meio de gente com desvantagens e vantagens em relação a você, gente de Ferrari e gente de Fusca, mas logo nota que isso nada importa para o resultado final. Passamos sustos imensos e inesperados, muito medo, vence-se o medo, para logo depois termos momentos incrivelmente legais.
Tudo acontece rápido e com uma intensidade que faz o mundo em volta desaparecer, e nem se percebe o tempo passar, concentrado que está na tarefa em questão. Mas o tempo todo, querendo ou não, percebe-se a torcida. Tem gente querendo sua ruína, torcendo para você errar feio e entrar na parede apenas pelo prazer de ver a dor alheia, ao mesmo tempo que muitos torcem por você e se sentem felizes quando você vai bem. Logo encontra-se seu ritmo, e tudo fica bem mais legal, na sua velocidade, seguro. Um ritmo que ainda é veloz, mas mais tranquilo. Sustos aparecem menos, mas você anda melhor que andava no começo, sua experiência compensando o cansaço que começa a aparecer. Você começa a se importar menos com a concorrência e a plateia.
E aí você começa a se cansar fisicamente de verdade. Você olha o relógio e, apesar de cansado, fica triste porque o seu tempo ali está chegando ao fim, no exato momento que o ritmo ficou legal. Você até se esforça mais, esquece o cansaço, porque sabe que tem que aproveitar cada minuto desta experiência única e maravilhosa. Então, rápido demais, sem aviso, antes do que você gostaria, tudo acaba. Uma vida, condensada em 1 hora.
E ainda por cima, no meu caso, depois disso tudo ainda tive uma volta para casa tão boa que podia muito bem ser comparada a um nirvana indiano, um céu católico, um Valhalla nórdico. Um paraíso muçulmano de 40 virgens. Uma vida inteira de emoções, condensada em um dia somente.
Que me perdoem o ataque de sensibilidade quase feminina falando de um evento tão cheio de testosterona, mas não pude evitar. Tudo começou com um convite do nosso destemido líder Paulo Keller para andar na Etapa Crispim do Torneio Interlagos de Regularidade, no dia 14 de maio, um sábado. O torneio, para quem não sabe, é organizado pelo piloto Jan Balder, e é uma oportunidade de andar em Interlagos com carros de passeio normais. O objetivo é chegar o mais próximo possível de um tempo “ideal” em quaisquer seis voltas das dezoito no total. Regularidade, não velocidade, é o objetivo.
Já tinha participado do torneio como copiloto do maravilhoso Chevette do Paulo Levi, junto com o piloto Milton Rubinho. Como contei aqui, é um evento muito legal, mesmo que você não entre na pista. Um dia compartilhado com categorias diversas, amadoras e semiprofissionais, um ambiente incrivelmente aconchegante e gostoso para quem realmente gosta de carro. E uma oportunidade de colocar a minha velha perua BMW 328i 1996 de uso diário em Interlagos, algo bom demais para recusar.
Tinha uma semana para o evento, e uma semana meio cheia de compromissos. Pensei que tudo bem, pois a lista de coisas a fazer no carro era pequena. Lavar, alinhar, montar de alguma forma o farol de neblina direito, que paradoxalmente teve suas fixações quebradas na última vez que estive em Interlagos, quando voltava pela rodovia dos Bandeirantes, por uma tábua que caiu de uma Ford Pampa. Cheguei em casa com um farol de neblina com a lente trincada, e o outro pendurado pelo chicote. O Paulo ainda me pediu para colocar adesivos grandes do AE nas portas da perua, para divulgação e propaganda, algo que achei totalmente possível ali. Ledo engano…
Logo na terça-feira já começaram os problemas. Minha esposa me liga de casa dizendo que o carro não pegava. Bateria, que nunca troquei em quatro anos com o carro, veio a falecer. Parei o que estava fazendo, fui até em casa, desmontei a bateria, comprei uma nova (quase R$ 500, barrabás, como tudo está caro!), montei e voltei ao trabalho. De noite a esposa tem outra novidade: o freio está fazendo um barulho estranho na roda dianteira direita.
Tinha que viajar a trabalho na quarta-feira, então não tinha opção a não ser deixar para outro dia. Chegando em casa na quarta à noite, desmontei a roda em questão e para minha surpresa, estava com as pastilhas em fim de vida, apesar de apenas seis meses no carro. Outra surpresa foi ver que os pneus traseiros, trocados na mesma época que as pastilhas, também já estão bem gastos. Estou comendo pneus e freio feito moleque com um saco de bala Juquinha…
Mas gelei, porque pastilhas de freio de qualidade não são fáceis de achar assim de um dia para outro. Passei a manhã de quinta no telefone desesperadamente na captura das tais pastilhas. Acabei conseguindo um jogo Zimmermann, alemão, mesma marca que os discos, entregue por um motoboy em casa as 17h. A um custo que não publicarei para não chorar de desgosto. De novo.
Mas isto não foi tudo. Desmontando a roda às 21h, descobri que minha chave hexagonal interna de 7 mm, necessária para desmontar a pinça, sumiu. Frustrado, resolvi somente fazer o rodízio, prender o farol de neblina no lugar, limpar o filtro de ar K&N, e mais umas bobagens, e ir dormir. O plano era de manhã cedo no dia seguinte, antes do expediente, levar num alinhador qualquer para trocar as pastilhas e alinhar o carro.
Assim fiz na sexta de manhã, e na hora do almoço fui ainda comprar mais um item que faltava: o capacete. Consegui achar um capacete como queria a um preço justo, e fabricado pela EBF aqui mesmo em Indaiatuba. De noite retirei as viseiras e adesivos que vieram nele, e coloquei dois adesivos com o logo do AE. Também dei uma lavada rápida no carro para que não parecesse muito desleixado, visto que os carros do Torneio são muitíssimo bem cuidados, e normalmente brilham mais que cristal belga ao sol. E fui dormir.
No sábado de manhã calibrei os pneus com o carro frio, assim que saí de casa, depois enchi o tanque de Podium, e fui para São Paulo. Minha primeira parada era na casa do Paulo Keller para pegá-lo. Chegando lá, depois de um café e um bom papo como sempre, fomos sair e para minha surpresa, o computador de bordo avisa: problema na luz de freio. Quase tive uma síncope, porque luz de freio é um item de segurança que impediria meu carro de ir à pista. Mas como o briefing era às 11h e já passava das dez, e tínhamos que pegar o capacete do Paulo, que estava em outro endereço, decidimos tentar resolver isso só lá no autódromo. Aí no meio do caminho o Paulo descobriu que estava sem a chave do lugar onde estava o capacete…
Para resumir uma história confusa pacas, a luz de freio voltou a funcionar milagrosamente na vistoria técnica, mas Paulo ficou de fora, membro da trupe dos sem-capacete, e fui para pista sozinho. Tinha um monte de amigo meu lá, e ninguém lembrou de trazer um também. Nota mental a todos: se vai ao Torneio de Regularidade, para assistir que seja, leve seu capacete se tiver um. Nunca se sabe o que pode acontecer…
Meu amigo e fotógrafo eventual do AE, o RT, estava lá com seu M5 1990, nosso amigo Costela de copiloto, ambos também estreando na pista. Como eu, vestindo com orgulho a camisa do AE, e com adesivos “save the manuals” no carro, formamos ali mesmo uma equipe informal, obviamente totalmente de brincadeira; algo como o time AE de BMWs clássicos. O Costelinha, muito mais jovem que nós todos, mas sempre animadíssimo e falando num dialeto “mano” às vezes ininteligível, estava visivelmente, claramente, feliz pacas. Acho demais compartilhar momentos assim com uma geração mais nova que a minha, porque me dá a certeza que nosso entusiasmo não vai morrer como falam por aí. Às 12h45, entramos os três na pista do autódromos Interlagos, eu e o RT dirigindo e o Costelinha de passageiro, todos pela primeira vez.
E como foi? No começo, cheio de ansiedade e com mais adrenalina do que sangue nas veias, já fiz o que seria o meu melhor tempo de volta. Alguns sustos depois, tinha assentado num ritmo confortável, seguro, e ao mesmo tempo me divertindo muito mais. Todo mundo já tinha me dito que as primeiras voltas de eventos assim é onde acontecem acidentes, justamente por novatos como eu, ansiosos e adrenados. Eu tinha prometido a mim mesmo não agir assim, antes de entrar na pista, mas falhei miseravelmente. Serei uma pessoa melhor na próxima vez, prometo.
Sem navegador, decidi que a melhor maneira de ser constante (o objetivo da prova) era achar o meu ritmo mais rápido onde estava confortável. Logo senti que meu carro, ótimo nas ruas e estradas, tinha pouco pneu para o autódromo. E no final das retas dos boxes e oposta, o freio também assustava por sua falta de potência. Decidi tirar o pé nas retas, frear gradativamente no fim delas, e caprichar no miolo. Não era competição, então sem necessidade de arriscar freadas no último momento a quase 200 km/h. E tive medo de estragar meu carro, principalmente o freio. Afinal de contas, minha casa estava a 120 quilômetros dali, e ele tinha que me levar de volta para lá.
Mas me diverti horrores. Muito, mas muito mesmo. Tomei uns sustos e errei feio algumas vezes. Fiz o S do Senna direitinho umas duas vezes, uma felicidade incrível. Adorei a curva da junção, que fiz sempre em segunda acelerando. Andei junto com um Uno Turbo, que tinha um intercooler gigante na frente e um rollcage dentro, que conseguia fugir fácil de mim nas retas, até que ele se distanciou. Depois andei sozinho, sem gente por perto, por umas duas voltas, e adorei. Depois andei junto com um Fusca verde oliva que andava muito mais forte do que sua aparência simples levaria qualquer um a acreditar.
Olhando os tempos depois, eu, o M5 de meu amigo RT e este Fusca verde oliva fizemos tempos parecidos. Uma lição para quem dá resultado de corrida olhando ficha técnica. Eu ia mencionar que minha melhor volta foi dois segundos melhor que a melhor do RT, e que apenas o Uno foi mais veloz que nós dois, mas velocidade não era o objetivo da prova, então não vou.
Depois de tudo, ainda por cima encontramos vários amigos, e fomos fazer um almoço tardio, quase 16h já. No almoço a adrenalina baixou, enchi a pança, e me deu uma leseira tão repentina que, apesar do papo animado e gostoso, quase dormi na mesa. Mas consegui debelar essa sensação antes de entrar na perua e ir para casa.
Tardinha, sol ainda claro, mas bem baixo. Temperatura agradabilíssima, ventinho gelado, mas ainda quente do sol. Como estava cansado, deixei as janelas abertas, o ar-condicionado desligado e o teto aberto, coloquei uma seleção do REO Speedwagon no Spotify, liguei o Waze para me informar os radares, e fui, tranquilo, para casa.
Na marginal subi os vidros, mas mantive o teto aberto, e com aquele ventinho gostoso, a luz passando levemente para dentro do carro pelo teto aberto, e o pouco movimento nas ruas, comecei uma das mais gostosas viagens que já fiz. O motor da BMW, alimentado por gasolina Podium, estava tão liso que parecia seda macia. Uma suave apertada no acelerador subia a velocidade o que precisava, tirando o pé diminuía, e quase nunca precisei tocar no freio. Um rimo tranquilo, allegro ma non troppo, suave, delicioso.
Me peguei pensando nas voltas que fiz junto daquele Fusca verde. Pensei o quanto somos bobos desejando cada vez mais coisas mais caras e chiques. Um Fusca bem acertado como aquele conseguiu acompanhar meu tempo e o de um M5 facilmente. Pensei como as pessoas não tem ideia desta realidade tão interessante. Pensei também em como meu carro, com 20 anos de idade, ainda consegue transportar a família para todo lado, e ainda assim fazer uma imitação bem convincente de um carro de corrida. Me peguei pensando na diferença de ter e ser, na diferença de algo que serve uma função e algo que é um troféu. Pensei de novo, como sempre faço, como é maravilhosa esta máquina chamada automóvel, e quantas coisas diferentes ela pode fazer para mim no mesmo dia. Pensei como seria legal arrumar rodas aro 17 pol de M3 para meu carro. As rodas grandes permitiriam freios de M3 também, matando os dois problemas que encontrei na pista. Mas aí lembrei que sou um duro e resolvi pensar em outra coisa qualquer. Pensei em um monte de coisas desconexas e sem nenhuma conclusão, mas que embalaram minha cabeça enquanto o seis-em-linha ronronava macio e suave, e o ventinho gostoso refrescava minha cuca.
A marginal e a rodovia dos Bandeirantes se desenrolaram suavemente, o motor fazendo um rrrrrr suave de fundo, embalando as melhores baladas dos anos ’80. Na estrada era como um tapete mágico, que mantinha velocidades altas com uma tranquilidade e reserva de potência que me fez sorrir espontaneamente por todo o caminho.
Nada de adrenalina, somente um passeio longo e tranquilo ao pôr do sol. Quando cheguei em casa, ainda com claridade mas quase no fim dela, tinha terminado um dia simplesmente perfeito, cheio de som e fúria, mas também cheio de tranquilidade e felicidade. Um dia para não se esquecer.
A vida, definitivamente, não fica melhor que isso.
MAO
Fotos e vídeo: PK ( a menos quando indicado)