“Burro é quem acha que nasceu sabendo. Mais burro ainda é quem o segue.” — Arnaldo Keller
A frase provém do célebre pensador Arnaldo Keller, cuja vasta formação intelectual se baseou em clássicos pensadores, como Schopenhauer, Mazzaropi, Aristótoles e Cantinflas. Ele, após todo esse revirar de livros, fechou-os, e, tossindo com a nuvem de mofo que deles subiu, murmurou que pouco sabia sobre a vida. Poucas certezas tinha, não sabia bem o que era o certo, mas ao menos sabia o que era errado. Em seguida ele filosofa sobre o momento que o Brasil vive.
Ufa! A que se dizia Dona da Verdade se foi. Após muita luta veio a vitória e tomamos o castelo. A Burra Rabugenta, representando o Mal que dominava o castelo e dali irradiava cinzas e desânimo reino afora, esperneou e estertorou até o fim. Porém, decididos e unidos, empunhando flamantes archotes e pedaços de pau, nós, os servos, livramo-nos da estupidez que teimava nos dominar. Sobrou-nos o já velhote mordomo para nos guiar pelo complicado castelo. Munido de uma fraca e vacilante vela, ele mostra que conhece todos os meandros do castelo, pois lá vive há muito tempo. Apesar de sua sombria figura, o mordomo parece ser inteligente e talvez seja bonzinho. Talvez, pois nunca se deve vacilar com essa gente que vive em castelos, nunca, e essa é uma das tais certezas que o Arnaldo tem. Um pé atrás e olho vivo.
Quanto à anta rabugenta, basta esquecê-la. O diabo rouco que a colocou no castelo é quem mais a odeia e deve acabar de lascar com o couro dela, já que ele rodou junto com ela, perdendo a máscara de anjo com a qual enganava os súditos. Seus inevitáveis destinos é numa úmida masmorra curitibana. Esqueçamo-los, portanto. Eles que se mordam em raivosa e sanguinolenta fúria. Eles que se danem na danação. Eles que vivam seus piores pesadelos. Já, nós, que toquemos a nossa modesta vidinha, que é boa, e durmamos bem. O sol voltará a brilhar, os campos voltarão a verdejar. Fé e bola p’ra frente.
Um dos soturnos cômodos a serem iluminados pelo formal e comedido mordomo é o do nosso setor de combustíveis. Abrindo-se sua emperrada e rangente porta dele provém um cheiro insuportável. O mordomo não haverá de se incomodar com ele, pois há décadas que o frequenta, a ponto desse ar já lhe impregnar as narinas, mas para nós é irrespirável, sufocante, e o ambiente é confuso; reina a sujeira e a desordem. Bichos asquerosos, deformados, que disputavam nacos a dentadas, são surpreendidos pela luz da fraca vela. A pouca luz já os deixa ofuscados, já que viviam nas sombras, e nessa surpresa eles ficam fáceis de pegar. O empertigado mordomo os conhece um a um, e, se for bonzinho, apontando-os nos ajudará a botá-los para correr com poderosos chutes nos fundilhos.
O reino tem petróleo, mas não tem refinarias para refiná-lo, e muito menos dinheiro para construí-las. Teremos que chamar alguém de fora para fazê-lo. Isso demora. Mas, fazer o quê? Só resta fazer. Depois, sabe-se lá quando, com esse ambiente limpo e organizado, coisa que nunca o foi, o reino terá farta e barata energia, o que nos ajudará a ter desenvolvimento e bem estar. O sol voltará a brilhar, e os campos, livres dos monótonos canaviais que como um manto acobertaram por tanto tempo nossas terras com sua estéril monotonia, voltarão a verdejar um variado verde, como antes era. Homens e mulheres voltarão a povoá-los, e trabalhando criarão seus filhos e viverão suas modestas e boas vidas. Fé.
Talvez, se além de bonzinho o mordomo for justo, o que é ainda mais difícil, já que achar um homem justo não é moleza, segundo um tal de Diógenes — um sujeito esquisito que morava dentro de uma barrica e vivia só com o leite de uma cabra magra —, repito, se o mordomo for justo, ele haverá de iluminar o cômodo mais incômodo de ser iluminado, já que ele beneficia os serviçais do castelo em detrimento dos servos, que, trabalhando duro e enfrentando intempéries fora das muralhas, os sustentam. Não esqueçamos que o mordomo é um desses refestelados serviçais, portanto, olho ainda mais vivo nele aqui nesse cômodo, para que ele, dissimuladamente, não sopre a vela.
Talvez ele, num ímpeto de justiça, o ilumine, resolvendo deixar que o povo veja que os serviçais aposentados do castelo dão, per capita, um prejuízo 34 vezes maior ao Tesouro que os servos aposentados. Isso mesmo, a Previdência Social dos Servidores Públicos tem um déficit, por pensionista, trinta e quatro vezes maior que o déficit, por pensionista, do INSS. Talvez a Justiça, representada por alguns falantes e distraídos senhores de capa preta comedores de brioches, iluminada de surpresa, se veja obrigada a fazer o que lhe cabe. E lhe cabe resolver essa parada desapertando esse rolo da Previdência para cima de quem deve, ou seja, para cima dos obesos serviçais do castelo.
Talvez o estranho mordomo nos mostre o imenso portão de entrada do castelo. E talvez também nos mostre a minúscula porta de saída. Pelo escancarado portão de entrada entra mais de 40% de tudo o que o reino produz. Carroções com as mais variadas mercadorias, além de imensos tonéis do suor dos servos, por ali entram, dia e noite, noite e dia. Pela portinhola de saída, pouco sai para os servos, e o que sai lhes é dado como se esmola fosse. Pobres servos. Somos mansos servos, haveremos de constatar.
Mas eis que caminhando por um longo e profundo corredor, lá atrás da fila que seguia o mordomo uns moços abrem uma luxuosa porta. Mal veem lá dentro, mas deu para ver que é um aconchegante e acetinado quarto com uma deslumbrante moça escovando lindos e bem tratados cabelos loiros diante de uma cômoda com espelho. E zás!, inesperadamente, num ágil salto de lá de longe o mordomo barra a porta com os braços abertos.
— Epa! Aqui não! Aqui ninguém entra não! — esbraveja ele de olhos arregalados e pronto para luta de vida ou morte.
Cabisbaixos, os moços voltam para a fila, resmungando:
— Esse mordomo não é moleza, não. É cheio de truques.
Ele começou bem. Vem montando uma boa equipe econômica, talvez a melhor que já tivemos, e isso deve animar os empreendedores a empreender. O ânimo deve voltar e investimentos represados, tanto de origem interna quanto externa, provavelmente fluirão, o que deve trazer trabalho e bem-estar ao reino. E isso pode ser bem mais rápido do que se imagina. Parece que o mordomo tem uma ambição maior que só a fortuna e do poder. Parece que chegou a sua hora e a sua vez, tal qual chegou para o personagem Augusto Matraga, do livro de Guimarães Rosa. Talvez ele queira entrar para a história como um grande estadista. Torçamos por isso.
Por enquanto, é dar um voto de confiança ao mordomo, mas sem deixar de manter um pé fincado dentro do castelo, para que possamos levar a nossa modesta e boa vidinha cá fora.
AK