Muitas vezes me perguntam, já que a fama e a fortuna se mostram elusivas aos que seguem a profissão de escriba automobilístico, o porquê de continuar escrevendo depois de tanto tempo. Respondo sempre de maneira pragmática, com um par de motivos bem simples. Afinal de contas, “Escrevo para salvar a minha pobre alma atormentada” soaria pedante e shakespeariano demais, e não ia ajudar as almas menos atormentadas a entender nada.
O primeiro motivo é que se você quer realmente aprender algo, escreva sobre o assunto. Você pode ter todo ele na cabeça e acreditar que conhece bem o tema, mas quando você coloca no papel… tudo muda. Detalhes passam a ter uma importância antes inexistente, a cronologia exata dos eventos se torna essencial, e você se espanta em descobrir o quanto não sabia sobre um assunto extremamente familiar. Escrever ensina mais do que ler. Fixa qualquer tema no seu cérebro indelevelmente, e o organiza definitivamente em sua cabeça.
O outro motivo, bem mais pessoal, é que, uma vez escrito tudo que penso sobre um carro, tiro ele da minha cabeça. É quase um exorcismo de engenheiro: tiro da cabeça, coloco no papel, e assim aplaco a ansiedade, a vontade de comprar, de dirigir, de fuçar mais sobre o veículo em questão. Aquela vontade incômoda de sair com o dito veículo em direção ao pôr do sol e nunca mais voltar, some. Existe uma palavra para isto: catarse.
O dicionário define “catarse” da seguinte forma: ”1 Purgação. 2 Purificação. 3 Método de purificação mental que consiste em revocar à consciência os estados afetivos recalcados, para aliviar o doente dos desarranjos físicos e mentais oriundos do recalcamento. ” Uma perfeita definição deste meu processo, principalmente na parte do recalque. Mas qualquer coisa que isto revele sobre este que vos escreve, empalidece em frente à excelente eficiência financeira do método: um Audi RS 7 custa seiscentos e trinta mil reais, mas escrever uma ode a ele que me libera da necessidade quase física de andar em um todo santo dia me custa só um par de horinhas em frente a um editor de texto. Coisa que é extremamente barata se medida em reais, acreditem…
Pois bem, dito isto, como justificar o tema de hoje? Supostamente bastaria um texto sobre o Aston Martin V-8 Vantage para que nunca mais precisasse falar dele, ou mesmo pensar nele. Mas se você olhar a listinha de textos ao final desta matéria, verá que isto está longe da verdade. E por quê? Bem, como vocês podem perceber, porque meu método totalmente infalível falha miseravelmente neste caso. O Aston Martin V-8 Vantage continua a povoar meus sonhos, e ser um desejo que quase dói fisicamente, mesmo tentando exorcizá-lo repetidas vezes. E listar os motivos disso é o que vim fazer aqui hoje.
Primeiro tem a empresa que o criou. Como vocês podem ver quando escrevi sobre a história financeira da Aston Martin (veja aqui), a Aston, além de centenária e de ter uma infinidade de donos durante sua história, mudou muito. Pode-se distinguir três eras distintas na sua história: na primeira, que cronologicamente é de seu início até à Segunda Guerra Mundial, a Aston Martin era um construtor de carros de competição de 1,5 litro e baixíssimo volume. A segunda Aston Martin, que é a que fez o V-8 Vantage, é uma pequena indústria inglesa que produzia cupês de luxo, alto desempenho e qualidade, total e realmente à mão, a um custo impossivelmente grande em homens-hora, mas praticamente sem ferramental. Cronologicamente, vai de 1945 até 1987.
Depois veio compra da empresa pela Ford em naquele ano. Na nova situação, a Aston Martin continuou produzindo cupês chiquérrimos de alto desempenho, preço e qualidade, mas em quantidades maiores, e com métodos modernos industriais, com linhas de montagem, robôs e ferramentais nada diferentes de uma fábrica do ABC paulista. E chegamos à fase atual, depois que a Ford vendeu a empresa em 2007 para um grupo de investidores entre ingleses, americanos e kwaitianos por US$ 848M, que a renomeou Aston Martin Lagonda Limited. A Ford, todavia ficou com 8,2% do capital e em 2013 a Aston Martin fechou acordo com a Daimler AG para esta fornecer motores Mercedes-AMG para modelos futuros, no negócio o grupo alemão ficando com 5% da Aston Martin.
A empresa, aquela que em todos os seus 100 anos nunca fez realmente dinheiro (dizem que agora vai bem; espero que sim, mas ainda cético por motivos óbvios), já é um motivo de gostar do carro. Uma empresa que nunca fez dinheiro em 100 anos, mas permanece viva financiada por entusiastas que se revezam a cada par de anos para pagar as contas, é algo incrível. Incrível porque subverte o sistema, porque nesta época de hoje onde tudo se mede pela baliza da eficiência e lucratividade, ainda é uma prova de que fazemos coisas por vocação. Por amor, por vontade interior. Criamos coisas porque sabemos como, só por isso. Que o mais importante, como dizia Steve Jobs, não é o quanto uma pessoa tem, mas o que ela fez ou é capaz de fazer.
E este carro foi feito pela melhor fase da Aston. Diferente de hoje, eram criados de uma maneira fantástica, e inexistente em 2016. Realmente, totalmente à mão. Sem linha de montagem e prensas de estampagem gigantes, marcos básicos da indústria automobilística de massa. Os carros eram feitos um a um cuidadosamente, feito joias, artesanalmente. Escrevi isto sobre este método certa vez:
“Até ali, os Aston eram feitos por um grupelho de apenas 160 pessoas, numa vilazinha chamada Newport Pagnell, perdida lá no meio da Inglaterra. A “fábrica” era pequenininha, portanto, um casebre daqueles do interior inglês. Dentro dele, não havia linha de montagem, mas ficava um sujeito velhinho num canto (invariavelmente com seu aprendiz a tiracolo) gastando o dia inteiro para transformar umas folhas de alumínio em uma porta. Em uma FOLHA EXTERNA de porta, nem ela inteira. Na mão, sem molde, no martelinho. Em outro lado, um cara montava a magnífica ponte traseira De Dion, com discos inboard. E assim por diante, sem pressa, artisticamente, e não industrialmente.
Em outro canto, havia um engenheiro. Esse engenheiro era o responsável pelo motor. Só ele fazia motor na Aston. Este cara recebia forjados e fundidos, e começava a usiná-los para transformá-los em virabrequins, comandos, mancais, blocos. Recebia os pistões e bielas de fornecedores, mas igualava pacientemente seus pesos, segundo tabelinhas que ele mesmo redigira a lápis e pregou na bancada de madeira em, sei lá, 1976.
Depois montava tudo pacientemente, fazia a rotina básica de testes. Depois, autorizando o motor a ir ao carro, afixava sua plaquinha, que dava seu nome e assinatura. Assim, se o carro voltasse a fábrica para manutenção, saberiam quem o montou e o mesmo cara o consertaria.
Todo mundo adorava isso, portanto o que aconteceu depois? A prática de realmente se fazer um motor à mão sumiu, mas hoje as tais plaquinha abundam. Tem em Mercedes-Benz, tem em Ford, Corvette… Mas o cara na verdade só recebeu as peças e montou tudo, ao ritmo de, sei lá, 325 ao dia. Mostra como a civilização moderna tem a capacidade de abandonar uma coisa fantástica apenas pela IDEIA da coisa fantástica. Em transformar ouro em estrume de vaca.”
Mas os Rolls-Royces do passado também eram feitos desta forma (fora plaquinha no motor), então é claro que não só isso faz o V-8 Vantage ser algo impossível de se tirar da cabeça. Existem mais motivos.
O carro é na verdade uma forma de automóvel perdida para sempre. É de uma época em que a tecnologia dominante em sua construção era a mecânica. Eletrônica era algo alienígena, e todos os sistemas principais do veículo eram completa e totalmente mecânicos. Os freios eram acionados hidraulicamente sem uma central de ABS no meio. A direção era hidráulica, com assistência invariável. Nada magneto-reológico ainda tinha sido inventado, e, portanto, as constantes de mola e carga dos amortecedores eram fixas. O motor era alimentado por um aparelho de medição e alimentação de mistura ar-combustível, totalmente mecânico, mas de incrível precisão e complexidade, chamado “carburador”.
Mas tudo isso seria apenas um anacronismo, bom apenas para saudosistas incorrigíveis, se estivéssemos falando de um Ford Corcel, que também é completamente mecânico. Mas não é o caso. Apesar de usar apenas sistemas mecânicos, o Aston Martin V-8 Vantage era extremamente sofisticado em todos os sistemas. Ele era o ápice deste tipo de veículo. O ápice do automóvel controlado mecanicamente.
Nesta época, uma pequena empresa num barracão no interior da Inglaterra podia, se entendesse de mecânica e de automóvel realmente, estar no topo da tecnologia. Não havia então muita legislação de emissões, segurança passiva, e tantas outras, que exigem um sem-fim de protótipos para serem destruídos em testes, que inviabilizam o investimento destas empresas pequenas focadas não em lucro, mas em dar uma vida honesta para artistas do metal, e criar coisas fantásticas no processo. A Aston mantinha apenas um ou dois protótipos, que no fim de sua vida, atualizados, eram vendidos como carros usados. Não existiam calibrações eletrônicas extensas, programadas por batalhões de indianos em um complexo gigantesco em Mumbai. Já pensaram nisso? Os caras que fizeram o Aston V-8 só conhecem Mumbai pelos livros de Rudyard Kipling que leram na infância, quando ainda se chamava Bombaim…
Mas mesmo sendo antigo olhando para processo, o carro era extremamente sofisticado em especificação. Seu motor era uma obra de arte, um V-8 todo em alumínio desenhado para competição, que acabou na rua. Uma versão mais brava do V-8 normal, o motor do Vantage tinha o mesmo tamanho, com diâmetro dos cilindros 100 mm e curso dos pistões 85 mm, bem superquadrado, e que somava generosos 5.340 cm³. Tinha duplo comando de válvulas no cabeçote, acionados por correntes duplex, câmara de combustão hemisférica, mas apenas duas válvulas por cilindro. A alimentação era por um quarteto de Webers duplos 48 IDF/3, algo extremamente exótico, pornográfico até, visto nos dias de hoje. Um cabo acionava uma série de alavancas com articulações esféricas e semiesféricas para fazer todas as oito borboletas dos carburadores italianos abrirem a um só tempo. Definir movimentos teoricamente perfeitos para estes acionamentos era uma arte neste tipo de carro, que era levada a sério: nada de economizar juntas esféricas caras, nada de comprometer o perfeito e livre movimento por uns centavos a menos no custo. Perfeição mecânica era o objetivo, custasse o que fosse.
A suspensão seguia a mesma linha, com triângulos superpostos na frente, e uma direção de pinhão e cremalheira Adwest, com assistência hidráulica. Como a assistência não é variável, a baixa velocidade é pesada, mas ficava perfeita andando e nas altas velocidades de que o carro era capaz. Na traseira, outra coisa que não existe mais a não ser no smart: uma suspensão DeDion, com freios inboard, internos, junto do diferencial suspenso. Este tipo de suspensão dá um comportamento excelente, com todas as vantagens de um eixo rígido e de uma suspensão independente combinadas, mas exorcizando os vícios do eixo rígido tradicional. De novo, uma geometria de movimento e funcionamento elegante e eficiente era o objetivo principal. O diferencial traseiro era um Salisbury autobloqueante, o máximo da sofisticação antes do controle de tração e do torque vectoring eletrônicos.
Os pneus sempre foram enormes, mas de qualidade e com perfil alto para a realidade atual: primeiro Avon ou Pirelli (CN12) na medida 255/60 R15, depois Pirelli P7 na medida 275/55 R16. O câmbio era ZF alemão, manual, de cinco marchas com a primeira embaixo da ré (dog-leg); a embreagem tinha acionamento hidráulico, mas ainda assim era pesada.
Era um carro de outro tempo, então. Feito para homem macho de verdade, tinha comandos pesados, que exigiam decisão e força, mas que recompensavam o esforço com um tipo de satisfação inexistente hoje em dia. A satisfação de um acionamento mecânico cheio de precisão e feedback, daqueles que nos fazem quase sentir as engrenagens se encontrando, os pneus mudando de direção, a embreagem desacoplando, as pastilhas encontrando os imensos discos. Do tipo que cria um vínculo intenso e completo, sublime até, com a máquina.
E é exatamente isso o que perdemos. Todo o engenheiro sabe que não há almoço de graça; ganha-se algo em detrimento de outra coisa, sempre. O carro moderno é muito melhor que este Aston Martin. Hoje existem VW Golfs (mais de uma versão!) que podem dar voltas ao redor dele numa pista. A excelência do carro moderno permitiu que hoje 500, 700 cv sejam corriqueiros e que possam ser facilmente colocados ao solo com toda segurança. O Vantage representava o limite do possível em desempenho naqueles dias (tinha entre 390 e 425 cv, dependendo da versão), mas hoje seria considerado apenas mediano, algo corriqueiro, em velocidade e aceleração. O que perdemos em troca disso, o compromisso em questão, na verdade não é mensurável. O que perdemos foi este vínculo intenso, esta intensa ligação metafísica entre o homem e a máquina, que só um brutal mas dócil carro como este , carregado de intensa carga emocional das pessoas que o fizeram, pode trazer.
Brutal e dócil. Estas eram suas principais, e mais marcantes características. É o que me faz amá-lo como carro, como conceito intelectual, como símbolo de uma era perdida. Não é sua extrema raridade (apenas 310 foram feitos), não é seu interior com madeiras, couros e lãs que fariam inveja a um Rolls-Royce. É sua personalidade, sua pureza em passar esta imagem, esta missão que é óbvia só de olhar para ele. Seu estilo já dá este recado, recatado, discreto, mas ao mesmo tempo musculoso, com rodas e pneus grandes e para-lamas alargados. Brutal, mas dócil e recatado.
Brutal em seu desempenho. Não importa o que o mundo moderno ache disso, fazer o 0-a-100 km/h em 5,2 segundos, o 0-160 em 12 segundos, o quarto de milha em 13, e chegar aos 280 km/h é um desempenho brutal na minha cartilha. No seu lançamento em 1977, era o carro mais veloz do mundo, batendo Lamborghini Countach e o Ferrari Berlinetta Boxer. E números dizem pouco de como era acelerar este leviatã de 4,8 metros de comprimento e 1.820 kg com a vontade necessária para registrar esses números.
Mas não acreditem em mim, que nunca dirigi um carro desses. Vejam algumas avaliações de época:
Angus Mckenzie, CAR Australia, 1986:
“Sim, o motor tem mais de duas décadas de idade, mas o V-8 de quatro comandos ainda é algo profundamente impressionante. Abstém-se de eletrônicas modernas em favor de anos de experiência com comandos e carburadores Weber múltiplos. É algo maravilhosamente suave e flexível, alegre rodando calmamente a 2.000 rpm, ou trovejando furiosamente além de 6.000.
O motor na verdade tem tanto torque em todas as rotações que não existe necessidade de reduzir, na vasta maioria do tempo. Mas reduza para terceira, porém, e o Vantage explode. O enorme carro abaixa as ancas por um momento, antes de disparar para frente furiosamente, numa taxa de aceleração de cair o queixo. A 210 km/h em quarta, aquele longo, longo, realmente longo capô ainda está apontando para cima, os seus ombros ainda são pressionados contra o banco, e você ainda tem 20 km/h até que seja a hora de jogar a quinta marcha…”
Revista inglesa “The Motor”, 1981:
“O que é realmente impressionante no Vantage é que suas incríveis velocidades à carga máxima são atingidas sem denegrir o refinamento e o desempenho a baixas e médias rotações. O motor é um poço sem fundo de torque, potência e flexibilidade. (…) Velocidades de até 240 km/h são possíveis em incrivelmente pequenas retas, e apesar de não conseguirmos nenhum lugar para testar a sua velocidade máxima, podemos atestar que 260 km/h são relativamente fáceis de alcançar, e que a esta velocidade o carro está seguro e impassível.
Talvez existam carros de aparência mais moderna, e carros aparentemente mais sofisticados que o Vantage, mas não existe um carro no mundo com melhor estabilidade. Talvez existam carros com maior aderência, e talvez outros com pneus ainda maiores que os enormes Pirelli CN12 do Vantage, mas nenhum oferece mais sensibilidade, mais previsibilidade em comportamento, ou melhor controle. No seco ou no molhado, em alta ou baixa velocidade, o Vantage se comporta de uma maneira tão previsível e sem vícios, que enorme confiança se cria em seu condutor.”
Steve Cropley, Car magazine, 1982:
“Quando você se aproxima do Vantage, admirando a frente sem nonsense, com a grade fechada, os imensos faróis auxiliares de longo alcance Lucas, e o baixo spoiler dianteiro, é difícil deixar de notar a aparência antiquada do carro. Será que esta coisa grande e antiga pode competir com os modernos?
Claro que pode, pudemos constatar. Os amortecedores e molas estão acertados à perfeição, e com os Pirelli P7, tem uma aderência incrível. Duas coisas são esmagadoramente impressionantes sobre este monstro. A primeira é a maneira que o carro entra nas curvas, infalivelmente e totalmente seguindo a linha desejada, com a aderência na dianteira mais confiável que já vi em um carro de motor dianteiro. A segunda é como a firmeza da suspensão, que permite rolagem mínima, fazem as mudanças de direção rápidas, imediatas, e sem esforço. Um carro deste tamanho e peso não deveria ter o direito de ser tão ágil.”
O “Veredito” ao fim do teste da “What Car?” Inglesa, em 1984:
“Racionalidade clama que este carro é ridiculamente tolo. Muito grande, muito beberrão, rápido demais para o tráfego moderno. Não é nada moderno como um Lotus Esprit Turbo. Mas enquanto o Lotus tem todo o pedigree de carro de corrida moderno (aerodinâmico, turbo, motor central, ultraeficiente), o Aston nos lembra de carros de corrida do passado: maiores, mais pesados, menos sofisticados, mais previsíveis em comportamento. Mas não menos velozes.
E este é o segredo da atração que o Vantage exerce sobre nós: é um clássico atemporal. Ele vai continuar a ser um prazer para dirigir, seja hoje ou daqui a dez ou vinte anos, porque ele tem apelo irresistível para o entusiasta de sangue quente, pessoas que tem apreço pelo seu desempenho fenomenal, e pelo prazer de seu comportamento completamente sem vícios. É o máximo prazer que se pode ter hoje em quatro rodas, a expressão máxima do carro para entusiasta.”
Difícil de tirar da cabeça algo tão sublime, não acham? Mais que um carro, é um símbolo de um passado que embora não tão distante assim, parece cada vez mais longe, a cada dia que passa. Uma época em que os carros eram regulados na fábrica com um compromisso que ela acreditava ser o melhor para aquele tipo de coisa: neste caso algo Brutal, mas dócil ao andar rápido. Hoje, um carro deste tipo, como controla absolutamente tudo com seu potente computador central, pode ter 3,4,7, 20 carros diferentes programados ali, e deixa a escolha ao dono na forma de vários modos selecionáveis individualmente ou em grupo, através de telas coloridas sensíveis ao toque. Parece lógico, e num mundo onde se procura agradar a todos sempre, é o lógico. Mas algo que em minha opinião dilui sobremaneira a personalidade, a alma, o motivo daquele particular carro existir.
Antigamente, quem criava carros o fazia da maneira que achava que aquele particular carro devia ser. Se você não gostasse desta visão do criador, bem, o carro simplesmente não era para você. Mas na maioria das vezes carros criados desta forma encontravam gente que não só gostava dele, mas se apaixonava perdidamente feito um Romeu tresloucado. As pessoas percebiam o humano na criação, e todos os compromissos de engenharia se tornavam não problemas, mas sim algo chamado personalidade. Não falhas, mas escolhas conscientes tomadas por um motivo. Pareciam máquinas quase vivas, humanas até, e menos robóticos e perfeitos, ajustáveis a todo e qualquer desejo bobo e irrelevante de gente menor, como parece ser a norma hoje em dia.
Já vi avaliadores americanos explicando que a maneira certa de ir à pista com certo carro é deixar a suspensão em modo “Comfort” e o motor, direção e escape em modo “Track”, para conseguir os melhores resultados. Mas na rua o modo certo é o Y em conjunto com o x, mas se tiver muito buraco melhor usar… e já esqueci do resto. Sinceramente, sou da época em que isso era trabalho para os engenheiros de fábrica. Ficar ajustando isso, descobrindo como o carro fica bom? Dificulta até avaliar um carro: é confortável e silencioso ou esportivo barulhento ao toque de botão.
E o que isto diz dos criadores deste carro? Que são almas fracas, incapazes de decidir eles mesmos o compromisso ideal para a proposta que colocam para o mundo. Intelectualmente, é como concordar com todos, nunca enfrentar opiniões contrárias, viver sem nunca ter brigado por nada. Uma vida vazia, sem significado. Uma tristeza.
No Vantage não existe um ajuste sequer a fazer fora os de banco e espelhos. Uma vez ajustado isso, você era obrigado a andar na visão de como um supercarro deveria ser, segundo 160 ingleses orgulhosos de Newport Pagnell. Amando ou odiando, pelo menos respeitávamos a honestidade de tal coisa. Algo com significado. Humano.
Eu particularmente sou completamente fisgado por essa criação em particular. Um V-8 brutal, cheio de torque em baixa rotação, mas com pulmões para uma viagem à 6.000 rpm inesquecível. Um chassi de comandos pesados, mas deliciosamente mecânicos e perfeitos, e uma suspensão firme, mas confortável, e extremamente dócil a altas velocidades. Carro de macho, mas obediente como um filhote de vira-lata dos bons. Um buldogue britânico que apesar de nobre estirpe, é fácil de conviver.
E um carro que não consigo tirar da cabeça, por mais que escreva sobre ele.
MAO
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