Depois de alguns anos ouvindo “nunca antes na história desse (sic) país”, assim, de uma forma vaga e sem precisar prazo, já que o “nunca” no Brasil é muito subjetivo, e sem especificar sequer a qual país se refere, já que “esse” é algum outro que não “este” em que estamos e ao qual nos referimos, agora vivemos a euforia das estatísticas. Furadas, já adianto.
É como se ao citar números absolutos e porcentagens as teorias ganhassem subitamente ares de seriedade. Mas, será que eles foram coletados corretamente? Será que os períodos comparados são os mesmos ou pelo menos guardam algum motivo que permita isso? Não raro comparam-se maçãs com peras e safras de inverno com as de verão.
Anos atrás uma pesquisa feita com usuários de ônibus na cidade de São Paulo perguntava se eles preferiam “ar frio” ou “temperatura ambiente”. A maioria não entendeu a capciosa pergunta e respondeu “temperatura ambiente”. Pronto, a Secretaria Municipal de Transportes usou isso como desculpa para não exigir ar-condicionado nos veículos. E alegava que era assim que a população queria. Quando foi refeita a pesquisa perguntando “ar-condicionado” ou “sem ar-condicionado” a primeira opção ganhou de lavada. Até porque ar-condicionado permite gradações, inclusive de ar quente. E, obviamente, pode ser ligado ou desligado segundo o dia ou o horário. Apenas mais um exemplo de que números sob tortura confessam qualquer coisa.
Pois é. Parece que agora nos vemos novamente nessa triste situação. Somente um mês após implementada a lei que obriga os veículos a circularem com farol baixo ligado nas estradas estaduais e federais as autoridades divulgaram estatísticas que comprovariam o sucesso da medida. Independentemente de ela ser fator de segurança ou não, por óbvio, um mês não é suficiente para estatística nenhuma. Nem dá para fazer uma curva de tendência com isso.
De 8 de julho a 8 de agosto, a Polícia Rodoviária Federal (PRF) diz que foram registrados 124.180 autos de infração de veículos dirigindo com faróis desligados nas rodovias federais de todo o País. Segundo a PRF nesse período foram registradas 117 colisões frontais em pistas simples em todo o País que deixaram 39 mortos e 67 feridos graves. O número de colisões foi 36% menor do que aquele registrado no mesmo período do ano passado, quando foram registradas 183 colisões frontais que deixaram 88 mortos e 113 feridos graves. O número de atropelamentos também caiu, segundo a PRF, de 131 nas BRs para 88 e o número de óbitos passou de 16 para 10. Os feridos graves passaram de 63 para 43 na comparação dos dois períodos.
Até aí, aleluia. É sempre bom ver que há redução de acidentes e de mortos ou feridos. O problema é que não há clareza se foram registrados apenas de dia – apenas um site deu essa informação e a própria PRF não faz essa distinção. Ou seja, não se sabe se o volume caiu realmente por causa do uso do farol durante o dia ou não. Ou se isso se deveu ao menor volume de veículos em circulação em todo o País, como é fato demonstrado pela queda na venda de todos os combustíveis veiculares, redução na produção de veículos, redução no volume de emplacamentos e diversos outros indicadores.
Também foram divulgados números por Estado. O recordista em flagrantes pelo não uso do farol foi São Paulo, com 25.250 multas (18.634 veículos foram autuados por infringir a lei em estradas estaduais). Se considerarmos apenas as multas em rodovias federais o estado recordista é Goiás, com 14.683, seguido do Paraná com 12.976 multas, Minas Gerais, com 12.660, Rio de Janeiro, com 11.100, Santa Catarina, com 10.720. O quê isso significa? Absolutamente nada — justamente porque não números absolutos. Se a frota de São Paulo fosse de 25.250 veículos significaria que, teoricamente, todos eles cometeram a infração. Se fosse de 2 bilhões de veículos seria totalmente irrelevante. E ainda que eu fornecesse o número, que consta das estatísticas oficiais que, sabemos, estão superestimadas pois não se dá baixa na maioria dos veículos, não há números sobre quais veículos estavam de passagem pelo estado mas cá foram multados.
Mas além disso, deveríamos levar em conta o efetivo da Polícia Rodoviária para multar condutores. Se São Paulo tiver, sei lá, 22 agentes, seria uma produtividade altíssima. Mas se tiver 1,5 milhão de agentes isso significaria que poucos condutores foram flagrados com os faróis desligados nas estradas federais durante o dia.
Mas, por que alguém divulgaria uma estatística assim tão açodadamente, com somente um mês? Bem, como jornalista e eterna repórter, sempre me pergunto isso. Ou, como dizem os advogados, cui bono? Quem se beneficia? E não é difícil chegar a uma resposta. O senador José Medeiros (PSD-MT) foi o relator da proposta ao Senado que com a redação de Lei 13.290 modificou o Artigo 40 do Código de Trânsito Brasileiro e que agora obriga motoristas a acenderem os faróis nas estradas durante o dia. A profissão dele? Ex-policial rodoviário federal. Diga-se de passagem isso, em si, não significa necessariamente algo errado, mas costuma ser um indício de motivos — bons ou ruins. Tem ainda outra variável. Como a lei só se aplica a rodovias federais e estaduais o volume também guarda proporção com a extensão deste tipo de rodovia em cada estado. Em Fernando de Noronha, por exemplo, a única estrada existente é uma BR, a 363, de 7 km de extensão que corta a ilha principal do arquipélago de ponta a ponta e ocupa boa parte do território.
No Estado de São Paulo, a Polícia Militar Rodoviária estima que no último mês houve queda de 9% em relação ao mesmo período de 2015 no total do número de acidentes e de 6% no número de atropelamentos. Significa algo? Também não por não distinguir noite e dia. Aliás, o que certamente diminuiria em muito o volume de acidentes é se realmente fosse fiscalizado o uso de faróis durante a noite, especialmente motos. Parece que nenhuma tem luz na traseira! Isso sem falar em faróis desregulados, caolhos, azul vela de macumba e outras excentricidades que em nada atendem ao Código de Trânsito Brasileiro e são comuns à maioria dos veículos em circulação.
Especialistas em trânsito também fazem ressalvas à lei. O chefe do departamento de Medicina de Tráfego da Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (Abramet), Dirceu Rodrigues Alves Júnior, diz que “O principal elemento num deslocamento é a iluminação. Na rodovia, de longe você já vê que é um veículo que está à frente, seja um dia de sol, neblina ou chuva”. Há muitos que dizem que outro problema é que faltam estudos que comprovem a eficiência da lei em países tropicais. É fato, já que tudo o que se cita no Brasil é baseado em estudos no Hemisfério Norte – especialmente Canadá e Escandinávia. Por mais que adore aquele país, como diz o Jean-François, meu amigo canadense, lá o inverno dura 8 meses, o outono 3 e o verão apenas 1. Não dá para emular coisas, não?
E tem mais. Se a velocidade ultrassônica das marginais e das principais avenidas em São Paulo reduziu em 37,5% o volume de acidentes, como alega a Prefeitura, se os acidentes nas estradas estaduais e federais caíram 9% por causa dos faróis ligados, se a velocidade de 30 km/h reduz em 50% o risco de morte em caso de atropelamento comparado com 40 km/h entre outras fórmulas matemáticas e estatísticas citadas pelas autoridades já deveríamos ter um número negativo de acidentes. Poderíamos começar a colidir uns com os outros que só chegaríamos a aparecer nas estatísticas lá por 2023 – isso para quem acredita piamente sem questionar e analisar melhor cada dado que é divulgado.
Mudando de assunto: Não quero deixar de mencionar o exemplo montessoriano que se extrai da lorota dos nadadores americanos. Mentira tem perna curta e é para profissionais. Dá muito trabalho, exige coordenação, coerência e, claro, combinar com os russos — no caso, os frentistas, o motorista de táxi, os guardas da Vila Olímpica… Especialmente em tempos de Big Brother, com câmeras de segurança em todo lugar.
NG