Lembranças do passado reforçam o presente e balizam o futuro. Lições apreendidas em erros e acertos embasam a melhoria contínua em todos os aspectos da vida. Particularmente no ramo automobilístico, o Brasil insiste em não valorizar a sua história, com raríssimas exceções infelizmente.
Um exemplo claro desta desunião histórica foi relativa à fabrica de caminhões da Ford no bairro do Ipiranga, em São Paulo, que já não reunia condições operacionais dentro das expectativas da companhia. O estudo inicial para sua desativação previa a demolição da fábrica, porém mantendo o “Prédio Um” intacto para futuramente abrigar um museu e um centro de excelência, reunindo carros, objetos e, principalmente, a história da Ford no Brasil, compartilhando-a com o público em geral e órgãos da imprensa especializada.
O “Prédio Um” era um clássico, com muito mármore revestindo suas paredes e muita madeira de lei em seus armários, mesas e cadeiras e no corrimão da linda escadaria que unia o saguão de entrada com o andar superior, mantendo o busto de Henry Ford, o “Velho Patrão”, bem em seu centro. Muito me entristeceu quando soube de sua demolição, acabando com o sonho de revitalização do prédio e da área circunvizinha para um lindo jardim. Eu sempre me imaginei como curador deste museu, após a minha aposentadoria, o que obviamente não aconteceu.
Do “Prédio Um”, além de algumas fotos, guardo com carinho apenas um antigo Oval Ford de número de patrimônio de um de seus equipamentos de escritório, na época. Consegui esta relíquia graças às minhas andanças aos domingos na feira de antiguidades no Bixiga, em São Paulo, provavelmente oriunda de algum ferro-velho…
Ao contrário do Brasil, os Estados Unidos preservam suas memórias com muito carinho e profissionalismo, tanto por parte da iniciativa privada quanto dos órgãos públicos. O Museu Henry Ford em Dearborn, vizinha a Detroit, é um exemplo dignificante de como a preservação da história pode ser feita de maneira inteligente. Carros, trens, aviões, máquinas e invenções podem ser vistos de uma maneira clara e didática para todos os visitantes.
Thomas Alva Edison, grande amigo de Henry Ford, teve sua sala de pesquisas preservada, mostrando os primórdios da invenção da lâmpada elétrica, entre outras. Crianças aprendem com o passado e dão valor àqueles que fizeram a história do país, criando o sentimento patriotismo tão importante para a valorização e o progresso da nação.
O Museu Henry Ford é um exemplo vivo de preservação e que pode ser traduzida com uma única frase, presente em todos os cantinhos do lugar, “Where American History comes to life.”
A interação do passado, presente e futuro é maneira inteligente para o projeto de novos automóveis e equipamentos, incentivando o desenvolvimento tecnológico tão importante ao progresso industrial. Quantos automóveis do passado continuam mantendo acesa esta imagem, tanto em estilo quanto em seus detalhes, para o deleite dos jovens técnicos e engenheiros que chegam ao mercado de trabalho.
Pensando em detalhes marcantes, quem não reconhece que o melhor formato para o pomo da alavanca de mudanças de marcha é o esférico? E logo me vem à mente o pomo do icônico VW Golf em sua primeira geração, de 1974, que tinha praticamente uma bola de golfe espetada na alavanca, ideia simples e inteligente que logo foi reconhecida pelo público em geral.
Particularmente, tive o prazer de dirigir um Golf GTI MK1 que estava preservado na fábrica da Volkswagen em São Bernardo do Campo durante a fase da Autolatina. Em rápida avaliação, no trajeto entre a fábrica e a estrada velha de Santos, fiquei impressionado com o seu desempenho e estabilidade. Parecia um kart, com a direção de respostas rápidas e precisas. O seu conforto de suspensões deixava um pouco a desejar, porém o seu comportamento fun to drive compensava toda a dureza do conjunto. Prazerosos eram os engates leves e precisos das marchas segurando o ergométrico pomo esférico da alavanca do câmbio.
Outro exemplo de como um simples detalhe pode se tornar uma obra de arte foi o relógio analógico oval aplicado no painel do Ford Ka em sua primeira geração, de 1996. Na realidade todo o painel de instrumentos era um conjunto admirável e o relógio, a cereja do bolo. Veículos que marcaram época em estilo, em particularidades mecânicas e detalhes funcionais, foram e continuam sendo referências importantes para os novos projetos, como foi o Ford Ka em sua essência de estilo e dinâmica veicular.
Outro veículo marcante em estilo e em dinâmica foi o Ford Focus. Apresentado no Salão de Genebra em março de 1998 e no Brasil em 2000, revelou as suas linhas arrojadas New Edge Design, com destaque as lanternas traseiras altas junto ao vidro. Seu interior era impecável com o painel dos instrumentos acompanhando as linhas modernas do veículo, com todos os controles à mão e uma iluminação noturna excelente.
Com posição de dirigir perfeita, o Focus se destacava pelo seu compromisso de estabilidade e conforto de rodagem graças ao trabalho liderado por Richard Parry-Jones, vice-presidente mundial de Desenvolvimento do Produto da Ford que se valeu da consultoria do escocês Jackie Stewart, tricampeão de Fórmula 1. Direção precisa e comportamento levemente subesterçante, tinha a suspensão traseira multibraço que fazia toda a diferença. A variação dos valores dos ângulos de trabalho com o curso de suspensão era mínima, garantindo um controle incrível do automóvel com as quatro rodas trabalhando independentemente e com total precisão.
Na lista dos inúmeros veículos inspiradores ao longo dos anos, incluo também o “quadradinho” Fiat 131, pouco lembrado pelo público de maneira geral, mas que tinha detalhes marcantes em seu projeto. Sedã de porte médio produzido pela Fiat entre 1974 e 1984, foi sucessor direto do Fiat 124 e comercializado nos Estados Unidos com o pomposo nome de Fiat Brava em versões duas e quatro portas, também denominadas de Mirafiori e Super Mirafiori. Tinha notória topologia em sua carroceria muito bem estruturada e leve, com rigidezes de torção e flexão invejáveis para a época, com baixo nível de ruído interno e uma sensação de robustez apreciada pelo consumidor.
Tanto é que a Fiat reconhecendo seu potencial de veículo durável e confiável investiu nesta imagem, participando de provas de rali com um projeto da Abarth, construtora de veículos de competição de sua propriedade. E assim nasceu o Fiat Brava Abarth Rally, com tração traseira e suspensãoindependente nas quatro rodas, sendo a dianteira MacPherson com barra estabilizadora e a traseira também McPherson com grandes braços arrastados e molas helicoidais. O conjunto mantinha pouca variação de geometria em relação ao curso, além de permitir fácil regulagem da convergência das rodas traseiras, tão críticas para a estabilidade direcional e em curva do veículo.
Veículo leve, com apenas 950 kg em ordem de marcha, era equipado com um moderno e potente motor 2-litros (1.995 cm³), quatro cilindros, 230 cv a 7.500 rpm, taxa de compressão 11:1, com duplo comando de válvulas no cabeçote, quatro válvulas por cilindro e injeção mecânica de combustível Kugelfischer.
Com câmbio de cinco marchas com relações próximas, alcançava velocidade máxima de 182 km/h em quinta a 7.500 rpm, pico de máxima potência; acerto típico para carro de rali, onde a economia de combustível tem caráter secundário.
O Fiat 131 Abarth Rally ganhou por três vezes o Campeonato Mundial de Rali, em 1977, 1978 e 1980, além de outras boas colocações intermediárias ao longo de sua existência. Produzido até 1984, o Fiat 131 continuou a manter sempre a sua forte reputação de solidez de carroceria, característica marcante de todas as suas versões.
Até os dias de hoje a Fiat mantém a robustez e a simplicidade como marca registrada na maioria de seus projetos, certamente a herança de seu passado.
E nessa linha, hoje a homenagem vai para o Fiat Uno em sua primeira geração, o saudoso “botinha ortopédica”. Veículo simples, durável e de fácil manutenção, fez história com seu projeto arrojado e inovador.
CM
Créditos: Acervo do autor, Google images, Autoevolution