Só uma coisa me entristece
O beijo de amor que eu não roubei
A jura secreta que eu não fiz
A briga de amor que eu não causei
Nada do que posso me alucina
Tanto quanto o que não fiz
Nada do que quero me suprime
Do que por não saber que ainda não quis
Jura Secreta – Fagner
Arrepender do que não se fez é doloroso. Ficar por anos especulando o que poderia ter acontecido, o que teria sido vivido se tivéssemos dito “sim”. Às vezes dá pra fazer depois, mas muitas vezes as mesmas portas não se abrem ao mesmo tempo novamente, os planetas não mais se alinham corretamente, as circunstâncias jamais serão favoráveis como foram um dia. Haverá outras oportunidades para algo que não foi feito? É possível, mas aquela oportunidade perdida jamais volta. Ao ler esse relato posso dizer que vivi um dia como queria ter vivido.
Foi apenas um simples passeio de carro, algumas horas sozinho comigo mesmo, o carro e a estrada. Obra em casa ainda por terminar, alguns estudos para concluir e um feriado de 12 de outubro com tempo livre disponível. Mas tudo aquilo poderia esperar mais um dia. Enforcar uma oportunidade dessas seria como deixar de ir ao último dia de uma exposição ou evento para cortar as unhas ou fazer a barba.
Muitos de vocês já me conhecem nos comentários, e alguns possivelmente já leram minhas duas postagens no espaço do leitor aqui no AE. Na última delas, “A primeira vez com duas a gente nunca esquece“, sobre meu primeiro contato com o universo das motos, mencionei uma estradinha sinuosa à qual devo muito das minhas modestas habilidades de pilotagem e possivelmente minha integridade física nesses dois anos de motocicleta. Mas dessa vez o plano foi ir de carro e fazer uma filmagem à altura do prazer que esse pedaço de asfalto me proporciona. Infelizmente o resultado da filmagem foi um pouco decepcionante tecnicamente falando, mas o dia em si foi inesquecível, e rendeu muita reflexão. Deixará saudade e vontade de repetir.
A tal estradinha de que falo, MG-262, fica entre Sabará, uma cidade histórica encostada em Belo Horizonte e Caeté, também muito próxima. Faz parte do roteiro turístico Estrada Real, e passa por uma região tipicamente mineira: montanhosa, com vegetação de cerrado e uma paisagem conhecida por aqui como mar mineiro por razões óbvias. No cardápio curvas predominantes de baixa velocidade, mas sem muitos hairpins nem insossos cotovelos. Curvas, mesmo. Daquelas que têm personalidade, conversam com o carro e com o motorista. Exigem algum grau de negociação para entregarem todo seu potencial de diversão.
Algumas retas curtas e curvas de média velocidade, muitas delas com visão plena da estrada à frente, permitindo avistar quem vem na direção oposta e com isso realizar um traçado mais elaborado com segurança. Velocidades relativamente baixas em todo o traçado, e pavimentação excelente. Palco perfeito para guiar por guiar. Pra completar é muito pouco movimentada, pois o trânsito pesado de caminhões e ônibus prefere uma rodovia quase paralela, mais adequada ao tráfego intenso e engarrafamentos.
Já falei do meu carro aqui. Linea T-Jet 2011, dos últimos. Comprado em 2013, hoje com 156 mil km. Meu companheiro de estrada, cerca de 3 mil km todos os meses. Nunca fiquei na mão. Um carro que me causou estranheza no início, pois vinha de um Marea 2,4 com torque absurdo em baixas rotações. Agora um turbo downsized que apagava facilmente em saídas de sinal (minha esposa o deixou morrer oito vezes na primeira volta, e ela dirige bem), mas depois de 1.500 giros deixaria o antigo Marea para trás com um delicioso assobio da turbina. Punta-tacco telepático, como todo Fiat. Suspensão irrepreensível, mais dura que a do Linea “civil”.
Aprender a lidar com o pequeno lag da turbina se mostrou divertido. Um motor que parece te repreender em altas rotações, meio que perguntando: “Ei, pra que me fazer girar tanto? Troca logo essas marchas”. Enfim, outra forma de dirigir. Já pensei em trocar, mas sempre a vontade acaba indo embora. Ainda mais com a ausência de opções com três pedais em sedãs. Me perdoem o anacronismo, mas me sentiria castrado sem minha alavanca de marchas e meu pedal da embreagem. Pronto, falei.
Entro no carro, câmera fotográfica, celular, fita isolante, pedaços de isopor para pequenos calços, alguns testes com a câmera no lugar do encosto do passageiro e o celular colado no assento do banco do motorista e rua. Melhor dizendo, estrada. Mas já era por volta de 14h00, sol a pino e barriga começando a roncar. Um almoço no caminho, na até então desconhecida Pompéu, distrito de Sabará. Comida mineira saborosa, sobremesa idem. Tudo plantado ali mesmo, no “jardim” do restaurante.
Barriga cheia, hora de acelerar. Mas um foco de incêndio fez com que os bombeiros interditassem a estrada. Um balde de água gelada, imaginando que eu perderia a viagem. Mas logo liberariam a estrada. Fato curioso é que o incêndio havia crescido em proporções porque o primeiro caminhão chamado acabou batendo em outro carro em uma curva mais fechada do caminho.
Mais meia-hora de espera, ajustando as câmeras e boa. Acabou sendo bom, porque fui o primeiro a ser liberado pelos bombeiros, pegando pista quase livre de trânsito. Um presente.
Seguem os dois vídeos. O primeiro da ida, apresentando a estrada. Peço desculpas pelo foco, porque na tela da câmera não dava pra perceber.
Vídeo 1: Boa parte da ida e início da volta:
O segundo vídeo foi uma experiência interessante: tentei sincronizar uma câmera nos pedais e outra na estrada. Apenas no final perdi a sincronia entre os dois vídeos. Confesso que dá um pouco de vergonha colocar um vídeo da minha forma de guiar aqui, no meio de tantos apaixonados e conhecedores. Agradeço humildemente qualquer crítica e repreensão.
Vídeo 2: Perdoem os erros e indecisões nas trocas de marchas. Qualquer semelhança com um cara de meias brancas e mocassim marrom num Honda NSX em Suzuka tratar-se-á de mera coincidência:
Agora fico pensando como seria um desperdício silencioso de vida, de tempo de existência ter renunciado um dia como esse. Há tempos queria um dia para fazer esse passeio, mas sempre obrigações e compromissos me fizeram adiar. Não seria diferente se eu não fizesse acontecer. Mas a vontade foi mais forte. Imaginem quantos momentos como esse não perdemos por coisas irrelevantes, desnecessárias, eletivas, almoços enfadonhos em ambientes e com companhias igualmente enfadonhas. Fica um apelo para que esses momentos sejam vividos sempre e que muitas histórias como essa sejam ainda contadas aqui.
M.A.
Artigo dedicado à minha primogênita Beatriz. Feliz dia das crianças, minha filha linda!