Com o recente anúncio de que o Palio Fire e o Clio se juntaram ao Uno Mille e ao Celta/Classic no panteão dos carros descontinuados, acaba definitivamente o carro popular brasileiro. Sem fanfarra ou notícia de jornal, voltamos sumariamente aos anos 80, uma época em que a maioria da população se contentava mesmo com carros usados, e o carro mais vendido era o Monza, algo que hoje estaria na classe do Corolla/Civic/Cruze.
Muita gente deve estar festejando. Não consigo entender o porquê, mas uma grande quantidade de entusiastas sempre nutriu desprezo por estes carros mais simples. Mais que isto na verdade; mais de um deles foi avistado tendo chiliquinhos histéricos (ai, que raiva!) ao saber que continuavam vendendo bem, mesmo depois da obrigatoriedade de bolsas infláveis e outras legislações que supostamente obrigariam o fim da produção de todos eles.
Não posso deixar de me espantar com este paradoxo do mundo moderno. Todo mundo sabe que políticos e burocratas estatais não podem nem ser confiados com nosso dinheiro sem que existam controles e auditorias diversas que garantam que, pasmem, eles apenas façam o seu trabalho. Mas no caso de leis de trânsito e legislações de emissão de poluentes e segurança passiva, aí sim, são autoridades inquestionáveis. Francamente…
Mas divago; voltando aos carros populares, se as legislações não conseguiram acabar com eles, a profunda crise econômica que enfrentamos se encarregou de fazê-lo. Como tudo ficou repentinamente bem mais caro, tanto o bem quanto seu financiamento (essencial para quem é assalariado), apenas uma parcela menor e mais bem de vida continuou comprando carros. E esta parcela do povo não compra nada básico.
Particularmente nunca tive problema com carro básico e simples. Na verdade, é justamente o contrário: acredito que há real virtude na simplicidade. Penso mesmo que na maioria das vezes, a versão básica de um carro é a mais cheia de virtudes.
Existe algo admirável em enxergar o essencial necessário para um dado objetivo. Talvez por minha formação de engenheiro, entendo o certo e o errado em automóveis tomando como base o resultado desejado, e em nenhum lugar ele é mais claro que nestes carros populares. Custo mais baixo possível, robustez e economia de manutenção e combustível, espaço interno mais que suficiente. Existe uma honestidade inerente nestes carros onde ar-condicionado é um luxo impensável, e janelas se levantam por manivelas. Uma simplicidade proposital, funcional, asceta, franciscana.
E minha experiência pessoal com estes carros simples e básicos sempre foi muito melhor do que o esperado, mesmo considerando características que nunca foram objetivo do programa original que os criou. Sempre achei carros básicos ótimos para dirigir, por incrível que pareça.
Se você pensar bem, faz todo sentido. Estes carros são mais leves, para começo de conversa. E carro mais leve é melhor, sempre, visto do banco do motorista. O câmbio é manual, com pedal de embreagem, algo cada vez mais raro hoje em dia. O número de marchas é contido; nada de sete marchas porque é mais bonito no papel quando só cinco resolvem. A massa contida faz com que, mesmo sem assistência, direção e embreagem sejam leves. O freio pode ser também menor e mais leve. Os revestimentos termoacústicos são mantidos ao mínimo, fazendo todos os barulhos que um carro faz serem audíveis. Um círculo virtuoso que, se desconfortável e barulhento para os mais sensíveis e delicados, faz algo muito legal para o entusiasta.
A Porsche, inclusive, sabe muito bem disso. O seu novo 911R, uma série especial de grande sucesso de crítica, nada mais é do que um 911 básico, tração traseira, com câmbio manual, depenado de revestimento termoacústico, com o motor e suspensão do GT3 RS. Só que para fazer isso, os espertos cidadãos de Estugarda cobram um preço mais caro que o do GT3! Se você pode, vai por mim: compre um 911 manual, básico, tire todos os revestimentos termoacústicos, jogue fora os bancos traseiros, coloque um escapamento aberto e voilá! Noventa por cento da diversão do R, por menos da metade do preço! Depois me paga um almoço pela dica!
Este 911 básico depenado, na verdade, é uma velha tara minha: não vejo como as mais caras e potentes versões podem ser mais divertidas. Todo mundo que andou no 911R diz que o mais legal é que o seis contraposto lá atrás soa como um velho 911 arrefecido a ar; uma barulheira danada de comandos, correntes, injetores, engrenagens, uma cacofonia deliciosa e que traz intimidade entre o piloto e o carro. Estes barulhos fazem o carro parecer vivo como um carro clássico, menos estéril, menos inerte, menos isolado. E no caso do 911R, tudo isso veio de graça apenas retirando-se algumas mantas termoacústicas. De graça para a Porsche, claro…
Hoje até os barulhos de escape são tunados à minúcia em carros esporte; o som que emana deles é estudado e afinado com cuidado, em laboratórios, por anos a fio, antes do carro ser colocado à venda. As vezes é ajudado por alto-falantes do sistema de som. Às vezes alguma frequência é cancelada por uma onda contrária emitida eletronicamente. Nunca antes na história da humanidade tanto esforço foi gasto em prol da frescura. Carros esporte deviam ser sobre intimidade entre homem e máquina, não em sensações artificiais criadas em laboratório. Barulho é barulho, não música.
Vejam por exemplo o Caterham Seven. Este fugitivo dos anos 50 é o mais puro dos carros esporte, a mais visceral e direta experiência de direção esportiva que existe. E assim ele é quase que exclusivamente por levar a simplicidade até o máximo possível. É um chassi tubular sem portas ou teto e revestido por uma fina folha de alumínio e um cone de plástico na frente. Para-lamas mínimos, para-brisa, um quatro-cilindros qualquer na frente. Barulhento de todas as formas possíveis, duro, desconfortável. Mas uma delícia para se andar à moda.
O escapamento do Seven não é tunado acusticamente em laboratório. Um Seven soa como ele é, e isto é uma de suas coisas mais legais. Um carro honesto, real, em que a simplicidade e a completa falta de qualquer conforto moderno são as maiores armas na busca do prazer ao volante.
E mesmo no caso do Seven, onde toda versão é simples pacas, a versão básica é a mais pura: a levíssima e a barata versão “160” tem um minúsculo (660 cm³) tricilíndrico turbo Suzuki de 80 cv, rodas e pneus aro 14 finíssimos para os padrões atuais, e pesa menos de 500 kg. Na minha opinião, uma verdadeira ode ao modelo, um carro que destila a toda a história dos Seven até a sua mais pura essência.
Mas esta simplicidade não faz bem apenas a carros esporte como o 911 e o Seven. O Uno Mille, por exemplo, foi um carro cujo objetivo era apenas transporte básico. Por isso, tinha grande espaço interno, mas era pequeno por fora e muito leve. Mas seu motor, pequeno para ser econômico, era entusiasmado e levava bem o carrinho. Suas simples suspensões, lidando com pouco peso, era impecável em estabilidade. A direção não tinha assistência, algo raríssimo hoje. O câmbio e embreagem, por lidarem com pouca potência, eram leves tanto em massa como em esforço no uso. Os freios pequenos iam em rodas pequenas, e pneus pequenos, mas ajustados ao carro e seu desempenho. Barulhento e sem refinamento? Sim, claro. Mas um coeso veículo que era uma delícia de dirigir. Na última vez que dirigi um Mille, escrevi o seguinte:
“E que surpresa foi aquilo. Colocar o carrinho em movimento foi como tomar um tapa na cara para me lembrar de algo óbvio: como é bom de dirigir! Lembrei imediatamente, em segundos, de meu Palio, cuja história já contei aqui. O mesmo motor alegre, que carrega o levíssimo carro com muita folga. A mesma direção sem vida e imprecisa a baixíssimas velocidades, mas que se torna alegre e leve assim que o carro entra em movimento. O mesmo câmbio delicioso de usar, rápido, instintivo, preciso. A mesma sensação de leveza que permeia toda a experiência.
Leveza. Não há outra palavra que defina melhor o carro. Sair do moderno Sonic para ele me fez sentir como se fosse uma pessoa que, num passe de mágica, perdeu 100 kg de peso. Que saiu da letargia da obesidade mórbida para correr uma maratona em tempo de atleta. Onde havia antes isolamento do exterior, agora há envolvimento com o ambiente lá fora. Onde havia movimentos deliberados, agora havia agilidade. Onde havia apenas transporte, agora havia prazer ao volante.”
Muita gente torcia pelo fim dele, porém. Bem como o fim da Kombi, e de todo e qualquer carro que, por ser criado sem a preocupação neurótica do mundo moderno com a segurança passiva, era “inseguro”. Segundo estas pessoas, éramos atrasados por não termos carros que em testes independentes dão cinco estrelas, mesmo que não entendamos exatamente o que significa isso. Sinceramente nunca entendi essa birra; ter mais opção não é melhor? Não somos adultos e sabemos escolher por nós mesmos? Por que algumas pessoas ficavam revoltadas com as escolhas de OUTRAS pessoas?
Mas a realidade é que estas pessoas venceram. Hoje estes carros simples, leves, básicos, acabaram. Mas também com eles acabaram carros de 30 mil reais ou menos. A população que os comprava ficou sem opção. Sim, é isso mesmo, não se pode nem ser pobre em paz mais hoje em dia. Você não pode escolher algo mais barato e simples. Tem que ser protegido de acidentes, tem emitir cada vez menos. Você é um idiota que não pode escolher nada, e por isso o governo vai ditar o que você pode ou não pode comprar. Se não temos a grana, nos restam os carros usados e as motocicletas e, Deus nos livre desta triste sina (batam três vezes na madeira, deem três voltinhas, e gritem “Ajuda Jesus”), o transporte público. Estes dois últimos métodos de transporte, é bom lembrar, são totalmente isentos dessa necessidade de serem seguros quando batem em algo rígido a 64 km/h. Não me perguntem por quê…
Opala SL 1988: básico
Mas voltando aos carros básicos: já falei aqui sobre as vantagens do Cruze básico de primeira geração em relação às versões mais caras, e a recém-lançada segunda geração, então não vou me repetir. Lembrei-me outro dia também de um Opala que meu pai comprou em 1988. Naquela época, Opalas básicos não se encontravam em concessionária para pronta entrega; eram carros destinados basicamente a frotistas. Meu pai não se fez de rogado: encomendou o seu e esperou a entrega. O carro dele tinha uma configuração que nunca vi igual desde então. Básico, quatro portas, mas com o motor de seis cilindros a álcool, caixa de câmbio manual, e pintura verde metálico. O carro acabou vindo com ar-condicionado e direção com assistência hidráulica, não sabemos por quê, mas ninguém reclamou: estamos falando do Rio de Janeiro afinal de contas, onde o calor as vezes faz a Nigéria parecer Gstaad. O carro não tinha travas elétricas e os 4 vidros subiam por manivelas. Nenhum Comodoro ou Diplomata dos que vieram depois me traz lembranças tão carinhosas quanto as daquele carro, que veio a falecer tragicamente contra um poste numa noite de 1989 em Niterói que gostaria de poder esquecer. Um carro realmente especial.
Opalas são um exemplo bom de como a versão mais simples tem vantagens: durante toda sua história, o motor mais potente era disponível em todas as versões, e assim a mais simples delas, mais leve, com o seis cilindros, era a mais veloz. Não era o SS, nem o Diplomata.
Hoje as versões mais potentes sempre estão atrelados a carros mais cheios de equipamentos e mais caros e pesados, mas nem sempre foi assim. Os americanos antes dos anos 70 costumavam oferecer variações quase infinitas de opcionais; você podia facilmente especificar um Dodge Charger básico, com freios a tambor nas quatro rodas, sem servofreio, sem direção assistida, sem ar, sem absolutamente nada, mas com um enorme V-8 de alto desempenho como o 440 Six-Pack, de 7,2 litros e mais de 400 cv. Os pilotos de arrancada com certeza o faziam.
O fato é que, se dirigir é o seu prazer, a simplicidade é sua amiga. Não se iluda com conforto e sofisticados brinquedos modernos; isso é coisa para quem usa carro como módulo de transporte, e está torcendo para que o carro autônomo venha logo. E quem quer ser esse cara?
MAO