Era dezembro, não me lembro se de 1974 ou 1975, mas a contagem regressiva para o Natal e Ano Novo — e as férias coletivas — era uma certeza.
Escritório Regional da Volkswagen do Brasil no Rio de Janeiro, na rua Dona Mariana, em Botafogo. Todo o pessoal de campo — os representantes, aqueles que viajavam visitando as 77 concessionárias da região, eu inclusive, estavam no escritório entregando suas pendências, fechando seus relatórios, prestando contas antes de saírem de férias.
Em dado momento a recepcionista, que era também a telefonista, me liga dizendo estar com ela um senhor, motorista de uma concessionária, que estava trazendo uma lembrança da diretoria desta para os funcionários do escritório regional e a instrução era entregá-la a mim. “Peça para aguardar um instante que já vou descer”, disse-lhe.
Desci — era uma casa de dois andares que antes da guerra fora a residência do presidente do Banco Alemão — e ao me apresentar àquele senhor ele disse que precisava entrar com o carro para descarregar. Fui com ele até o portão de entrada de veículos da casa e lá estava estacionada uma Kombi Pick-Up carregada com umas caixas na caçamba. Autorizei o segurança da casa a permitir a entrada daquele carro e orientei o motorista a estacionar no pátio nos fundos da casa.
Pensei na manobra que ele precisaria fazer para sair depois de descarregar, e como o corredor era estreito, sair de frente seria o ideal. No pátio havia uma frondosa mangueira e o local permitia manobrar com facilidade. Pedi a ajuda de um colega para auxiliar a descarregar a Pick-Up.
Quando cheguei ao pátio ela já estava estacionada e o motorista, sr. João, já desamarrava as caixas, que eram engradados, quando me dei conta do que era a lembrança enviada pelo concessionário para todos os funcionários do escritório regional.
Dentro daqueles engradados havia nada mais nada menos do que trinta perus. Isso mesmo, trinta — vivos!
E agora, o que fazer e como fazer com aquelas aves? Eu não tinha a menor ideia. Vamos parar e pensar antes de soltá-los no quintal da casa, seria seguro mas impraticável, pensei.
A casa, um verdadeiro casarão antigo daqueles que até hoje resistem à era moderna, seria palco de uma invasão de perus, o que seria cômico para não dizer tragicômico.
Como toda casa da época, ela tinha um porão onde guardávamos alguns pneus e outros materiais da casa como tijolos, azulejos, cimento, areia etc., e o acesso ao porão era por uma área contígua à cozinha, onde havia uma espécie de alçapão composto por duas abas que abriam para cima. Levantadas, tinha-se acesso a uma pequena escada que levava ao porão.
Solução encontrada: vamos colocar todos os perus no porão da casa e assim poderemos desembarcar os coitadinhos que já tinham viajado mais de 650 quilômetros da cidade de Linhares, no Espírito Santo, ao Rio de Janeiro.
Os engradados foram cuidadosamente retirados da Pick-Up e levados um a um até o topo da escada e, com muito mais cuidado, baixados até o porão, onde os perus foram soltos, para sua alegria. Todos “acomodados”, com água e alimentos trazidos a bordo da Pick-Up, os perus lentamente iam se acalmando.
E agora, o que fazer? Bem, o dia já estava acabando e as decisões do que fazer e como fazer seriam tomadas na manhã do dia seguinte. Deixei meu telefone de casa com os vigias noturnos para o caso de precisarem de algo — não tenho a menor ideia do que poderia fazer se algo tivesse acontecido.
Na manhã seguinte me reuni com a chefia e definimos que cada beneficiado teria que pegar o seu peru e levá-lo para casa. Como, era problema de cada um, e foi dado um prazo de cinco dias para retirá-los, uma vez que a sujeira que faziam não era fácil, além do seu conhecido e costumeiro grugulejar que poderia incomodar nossos vizinhos.
O que facilitou a limpeza do porão foi o fato de lá já ter areia e com isto ficou mais fácil retirar as fezes dos perus que viriam a ser a ceia da noite de Natal.
E assim foi, em poucos dias os 30 perus foram para os seus destinos; se foram abatidos, se foram levados para sítios, não sei, só posso falar do meu que levei para casa.
Pés amarrados para evitar a fuga, entreguei-o à nossa empregada, a Maria, que sabia muito bem o que fazer com ele, tinha experiência de fazenda e era boa cozinheira. O bichinho ficou na área de serviço do apartamento aguardando o seu momento.
No dia seguinte, quando cheguei do trabalho, o chamado “peru do Ronaldo” estava cambaleando na área de serviço devidamente bêbado — a Maria tinha-lhe dado uma dose de cachaça que tinha como finalidade amaciar a carne — e estava chegando também o momento do sacrifício, que nem eu nem minha mulher quisemos assistir.
A ceia de Natal estava próxima e o bichinho já tomava forma de prato maravilhoso com todos os enfeites a que tinha direito, frutas, fios d’ovos etc…
E o Natal chegou, foi na casa da minha sogra onde também estavam meu cunhado, concunhada, sobrinhas e a mesa superbonita que tinha bem ao centro o trabalhoso e apelidado “peru do Ronaldo”.
Foi uma noite inesquecível, agradecimentos à diretoria da concessionária que nos proporcionou momentos emocionantes e depois deliciosos haveriam de ser dados.
Este mesmo ritual se repetiu por alguns anos, mas a cada um a logística se tornava mais fácil e a experiência falava mais alto. Hoje em dia a coisa é diferente, o peru não morre mais na véspera, não vêm em engradados e compram-se em supermercados no setor de congelados.
Todo o episódio foi um momento especial numa época inesquecível da minha vida!
RB