“Campo” tem vários significados, como vasta área descampada do interior, palco de atuação de veículos num mercado e local onde se realizam testes de veículos, para citar alguns. É a esse último que me refiro e do qual me ocorreu falar, o Campo de Provas da Ford, em Tatuí (SP), a 145 quilômetros a oeste da capital do estado.
Considerado um dos mais modernos do mundo, esse campo de provas funciona desde 1978 com instalações completas para o desenvolvimento e teste de automóveis, utilitários e caminhões. Sua área de 4,66 milhões de metros quadrados inclui instalações administrativas, laboratórios, oficinas para a construção e montagem de protótipos, testes especiais e 50 quilômetros de pistas das mais variadas configurações. Conta com um seleto time seleto de engenharia responsável pelo desenvolvimento veicular e realiza em média 10 milhões de quilômetros de testes por ano, ajudando a garantir a durabilidade, a segurança, o conforto, a estabilidade direcional e a qualidade geral dos veículos Ford.
Entre os principais testes destacam-se os de durabilidade acelerada, desempenho e consumo de combustível, dinâmica veicular, freios, impacto frontal, penetração de água e poeira, partida a frio em câmara frigorífica, corrosão em câmara de névoa salina, arrefecimento do motor, nível sonoro interno e externo, emissões pelo escapamento e evaporativas, calibração e dirigibilidade.
Em suas instalações é possível simular as mais variadas condições de piso e carga, por exemplo, rampas de várias inclinações, pista de asfalto com curvas sem superelevação (planas), estradas de cascalho e de terra, piso de paralelepípedos, pedras desencontradas, ondulações, buracos e rota especial para veículos 4×4 incluindo lama, alagados e areia, entre outros.
O seu laboratório de análise de emissões de gases é certificado conforme a norma internacional de qualidade ISO 17025, que lhe permite, inclusive, validar veículos para exportação, sendo capacitado para fazer ensaios de todos os tipos de veículos, com motores a gasolina, a álcool, diesel e flex, de acordo com as normas brasileiras e também americanas e europeias.
Conta também com um Simulador de Rodagem (four posters) composto por quatro colunas com atuadores hidráulicos independentes que simulam em laboratório as rotas de durabilidade. Com vasto arquivo digital, é possível a reprodução de várias situações pelas quais o veículo passa no seu dia a dia e inclui correlação entre todos os Campos de Prova da Ford no mundo.
É sempre bom destacar que a Ford sempre valorizou a segurança do campo de provas, mantendo treinamento constante aos seus engenheiros e técnicos de modo que tudo aconteça racionalmente e com responsabilidade.
E muitos fatos interessantes se passaram nas dependências do TPG desde a sua fundação…
Lembrança 1
O TPG mantém uma área de floresta nativa intocada onde vivem as mais variadas espécies de animais, lagartos, gambás, pequenos cervos, porcos-do-mato e outros, mais perigosos, como cobras, aranhas e escorpiões. Mesmo com telas aramadas, protegendo a parte florestal das instalações operacionais, era comum ver pequenos animais atravessarem as pistas de teste, requerendo muita atenção por parte dos técnicos-motoristas, principalmente em horário noturno. Eu mesmo me deparei com lagartos e gambás atravessando as pistas. Algumas vezes os animais eram atropelados, pois os motoristas não se colocavam em risco com manobras evasivas por meio de desvios bruscos de direção.
Veja o leitor que a própria Ford recomendava aos motoristas que evitassem manobras radicais que pudessem por em risco a segurança. Mesmo com dor no coração, tenho que reconhecer a boa lição aprendida e filosófica também, a “antes eles do que eu”. Obviamente, a ação de desviar dos animais, desde que com segurança, seria sempre a primeira alternativa.
Para a proteção contra animais peçonhentos, todas as instalações do TPG, escritórios, laboratórios, oficina e almoxarifados eram dedetizadas e diariamente inspecionadas com rigor pelos bombeiros e pela guarda. E mesmo assim, às vezes, aparecia um aracnídeo curioso onde não deveria estar…
Lembrança 2
Eventos de marketing eram comuns no TPG. Vira e mexe havia uma avaliação dos veículos Ford comparativamente com a concorrência. Muitas vezes os eventos contavam com a presença de alto executivos da empresa em âmbito local e mundial, envolvendo também a engenharia e a manufatura.
E em um destes importantes eventos, estava o poderoso Robert “Bob” A. Lutz, presidente da Ford Europa e vice-presidente executivo de operações internacionais da empresa.
Imagine todos os cuidados para que o evento com mais de dez veículos sendo avaliados simultaneamente nas pistas ocorresse com total segurança. Placas indicando as velocidades máximas nas curvas, carro-madrinha para o conhecimento da rota, ambulância, observadores/bandeirinhas em pontos estratégicos, entre outros.
E tudo corria às mil maravilhas, com os veículos sendo avaliados objetivamente em seus parâmetros, até que veio o susto: Bob Lutz, dirigindo uma VW Parati tombou em uma curva. Correria para todos os lados, mas felizmente não houve nenhuma outra consequência a não ser o veículo com a lateral amassada. Indagado sobre o que causou o acidente, Bob Lutz não poupou palavras denegrindo o comportamento dinâmico da Parati, isentando-se totalmente de culpa. E a fatídica curva foi batizada com o seu nome, eternizando-se no TPG.
Como curiosidade, a maioria das curvas da pista do TPG tem um nome identificando-as: “curva do céu”, “pé do pinguim”, “curva da ponte”, “mergulho” etc. A curva do céu, por exemplo, é bem significativa onde após uma forte subida somente se enxergando o céu, vem uma difícil curva cega 90° para a esquerda. Creio ser esta a mais complicada curva da pista.
Complementando, em 2010 Bob Lutz se aposentou na GM, para onde voltara em 2001 como vice-presidente. Foram 47 anos de carreira na indústria automobilística global, que incluiu cargos de liderança na BMW, Ford e Chrysler.
Lembrança 3
O comportamento dinâmico dos veículos Ford pode ser definido como antes e depois de Richard Parry-Jones.
Parry-Jones começou a fazer parte do time Ford de desenvolvimento do produto em 1969 como estagiário e somente assumiu sua posição de funcionário registrado em 1973. Com brilhante carreira, em 1982 foi nomeado gerente de programas de carros de entrada, que incluía o desenvolvimento do Escort. Entre 1994 e 1998, Parry-Jones foi vice-presidente do grupo de desenvolvimento de produtos, com liderança nos veículos Ka, Fiesta, Puma, Mondeo e Focus.
Parry-Jones tinha uma sensibilidade natural para avaliar veículos e sempre deu muito valor à segurança relacionada à dinâmica e particularmente a estabilidade direcional. Ele comentava brincando, mas falava sério, que um veículo poderia ser avaliado em um simples percurso de 50 metros, suficiente para identificar suas fraquezas e virtudes. Insistia que o engenheiro poderia aprender mais desta maneira do que andando no limite, em altas velocidades. Tinha como seu “guru” o piloto escocês Sir Jackie Stewart, que o ajudou em sua maneira de extrair informações detalhadas do veículo e traduzi-las em um bom projeto de suspensões freios e direção, com um real DNA que ficasse indelevelmente associado à marca Ford.
Eu conheci Richard Parry-Jones em um evento de apresentação do Fiesta BE91 no TPG. Tive o prazer de ouvi-lo contar suas experiências no desenvolvimento de veículos e seu orgulho ao falar do Mondeo e do Focus, dois de seus melhores trabalhos.
Richard Parry-Jones se aposentou em 2007 deixando em seu legado o DNA Ford de dinâmica veicular, traduzido em facilidade, conforto e segurança ao dirigir.
Lembrança 4
Estava eu no TPG avaliando um Ford Mondeo na pista de asfalto, quando em uma curva a traseira escapou e no contraesterço o veículo ameaçou a pendular. Para não capotar, soquei o pé no freio e entrei pela área gramada no acostamento até colidir com a lateral traseira esquerda em um coqueiro, que não sei porque estava lá… Na realidade o freio ABS prejudicou a manobra evasiva, pois não travando as rodas evitou o escorregamento dos pneus, condição necessária para “matar” o pêndulo.
E vem a pergunta do leitor, a de como eu, engenheiro experiente e com vários cursos de direção defensiva, pôde passar por este susto. Eu tenho como premissa nunca culpar o carro pelo acidente. O piloto deve ter sensibilidade suficiente para avaliar o comportamento do veículo, antecipando-se à falha com discernimento e técnica. Fiquei envergonhado perante nosso time de engenharia e este fato ainda está presente em minha memória, indelevelmente como lição apreendida. Ainda bem que não aconteceu nada de mais sério além da destruição da lateral e da traseira do veículo. E lá se vão vinte anos…
Lembrança 5
No início da Autolatina, nos idos de 1987 a Volkswagen tinha plena convicção de que o TPG era desnecessário. Diziam eles que as rodagens de durabilidade externa, complementadas pelos testes em laboratório, seriam mais do que suficientes para certificar os veículos.
Lembro-me bem nas reuniões de ocorrências de durabilidade veicular, rodava sempre uma “saia justa”, quando eram apontadas falhas de consumo de óleo elevado dos motores AP, desgaste prematuro de pneus e trincas na carroceria principalmente no túnel da transmissão na Família BX.
Com muita paciência, o time de engenharia Ford foi pouco a pouco convencendo o time da VW que os testes no TPG eram mais controlados e tinham nível de confiança suficiente para identificar e antecipar possíveis falhas em campo. Para encurtar a história, pouco a pouco a VW acabou liderando correlações laboratoriais e de rodagem externa de seus veículos no TPG, antecipando falhas e incrementando ainda mais a qualidade de seus produtos. Muito interessante ver os veículos VW rodando em rotas de durabilidade comuns, definidas basicamente pela Ford , inclusive certificando veículos para exportação como foi o caso do Fox (Voyage).
Hoje o homenageado é Sir Richard Parry-Jones, que com seu conhecimento e perseverança conseguiu dar uma identidade aos veículos Ford em termos de dinâmica, estabilidade direcional e segurança como um todo. Um bom exemplo deste DNA é o Focus desde a sua primeira geração
CM
Nota: sou eu quem está na foto de abertura