Dê uma olhada na foto que abre este texto. Com cuidado. É uma foto que recebi há algum tempo, recompartilhada e compartilhada novamente até o nome de seu autor ser perdido e seja impossível dar-lhe crédito, como se torna cada vez mais comum no mundo moderno cheio desse tipo de coisa. É uma foto incrível, o congelamento de um momento no tempo, na história de seu protagonista, que não falha de me deixar de boca aberta e forçar um suspiro sempre que a vejo. Uma imagem quase surreal, que mostra um mundo diferente demais do de hoje, e um que existia pouco tempo atrás. O retrato de uma era, condensado numa simples imagem de uma pessoa parando para comprar leite e biscoitos.
De cara, mesmo sem conhecer a pessoa e o carro em primeiro plano, podemos ver que se trata da Inglaterra, e na segunda metade dos anos 60. A língua de Shakespeare impressa nos cartazes, o volante de direção no lado direito, o Ford Cortina Mk1 ao fundo, o estilo das construções e, finalmente, o estilo do carro laranja em primeiro plano, datam a foto neste período e lugar.
O carro laranja em primeiro plano. Que visão! Que aparição improvável, incrível, inacreditável. Perdido numa vilazinha da Inglaterra, numa época em que os carros normais raramente eram capazes de superar 150 km/h, é impossivelmente baixo, longo, aerodinâmico e exótico. Rodas gigantes de puro magnésio sem pintura ou decoração, freios a disco visíveis através delas. Motorista sentado a milímetros do chão. Portas de movimento composto de abertura, para fora e para cima ao mesmo tempo. Uma carroceria extraordinariamente bela, lisa, voluptuosa, mas ao mesmo tempo intimidante por seu nervosismo latente, escondido sutilmente ali bem debaixo de suas linhas suaves, num misto de feminilidade e masculinidade que faz o queixo cair. É claramente, sem sombra de dúvida, algo feito para andar muito rápido. Mas muito mesmo, mais que qualquer mero mortal pudesse julgar possível, ontem e hoje. A vastidão do vidro traseiro faz quem conhece um pouco de carro já notar que o motor está ali atrás, certamente entre o piloto e o eixo traseiro, e que não deve ser nada pequeno.
Mas pequeno é o seu piloto. Sua baixa estatura, porém, não esconde um olhar penetrante, de alguém que sabe seu lugar no mundo e não tem medo de tomá-lo. Normalmente suas fotos mostram um sorriso, algo esperado de uma pessoa universalmente adorada por sua simpatia e abertura. Mas não aqui. Absorto em um milhão de coisas importantes que aconteciam na sua vida naquele momento, e obviamente pego desprevenido na foto, seu olhar é sério e pensativo. Envolto em pensamentos e responsabilidades mil, num dia qualquer, numa paradinha do caminho de casa para comprar leite e pão.
Se é impossível para mim determinar a origem e a data exata da foto, uma coisa é fácil de afirmar: que em pouco tempo depois dela, Bruce Leslie McLaren, o piloto baixinho e loiro na foto, e criador deste carro, estaria morto. Aos 32 anos de idade.
O carro coloca isto claramente. Trata-se do famoso McLaren M6GT placa OBH 500H, o primeiro protótipo de 1969, e o carro de uso diário de Bruce McLaren. Algum tempo depois dessa foto, na madrugada do dia 2 de junho de 1970, Bruce pararia este carro no estacionamento do circuito de Goodwood para mais uma sessão de testes do novo Mclaren M8D, um fabuloso carro de corrida para a categoria Can-Am — copa canadense-americana para carros esporte realizada de 1966 a 1987 — , com um enorme aerofólio alto na traseira e um monstruoso V-8 Chevrolet de bloco grande em alumínio, com quase oito litros e algo na casa dos 700 cv, em um carro cujo peso total faria um Uno parecer pesado.
Depois de parar no box para algumas regulagens às 11h50, Bruce sairia de novo pouco depois do meio-dia para mais algumas voltas antes do almoço. Contornou a curva de St. Mary, uma curva de alta velocidade à esquerda, de pé embaixo, e entrou na maior reta do circuito. Do meio para o fim da reta, a uma velocidade estimada de 270 km/h, o aerofólio traseiro se desprende do carro, seguido pela carroceria de compósito de fibra de vidro. O carro sai da pista, capota na mureta, e o piloto é jogado para fora, para sua morte. Era o fim de um dos mais amados e queridos pilotos da era de ouro dos anos 60.
Bruce Mclaren
Num mundo onde pilotos Fórmula 1 ganham cifras milionárias e vivem isolados desde a mais tenra idade em motorhomes gigantescos, atendidos por chefs franceses dedicados e aviões particulares, é fácil de ver que Bruce Mclaren vinha de uma cepa diferente.
Sua mão estava sempre na massa; desde o primeiro dia na Cooper, ele e Jack Brabham, seu mentor, eram praticamente os projetistas e mecânicos de seus carros, fazendo com que ambos acabassem dando o passo à frente, criando suas próprias marcas. Foi durante 40 anos o mais jovem piloto a ganhar um Grande Prêmio de Fórmula 1, mas isto não o impedia de ser ativo em todo tipo de competição, de Fórmula 1 a Can-Am, passado por Fórmula 2, carros de turismo, e Le Mans. Pilotos desta época precisavam trabalhar muito para se manter. De novo, uma época muito diferente.
Bruce é natural de Auckland, na Nova Zelândia, aquele paraíso perdido no fim do mundo que tem um número de pilotos de sucesso desproporcional à sua população. Filho de um mecânico conhecido na região, incrivelmente chamado de “Pops” Mclaren (lembram do Speed Racer?), depois de vários sucessos em competição em seu país natal, ganha a passagem para a Inglaterra num concurso chamado “Driver to Europe” promovido pelo campeão australiano Jack Brabham, em 1958.
Ganha somente passagem mesmo, e tem que batalhar uma nova vida na Inglaterra. Mas logo seu talento é percebido por John Cooper, e após uma série de vitórias na Fórmula 2, é promovido para a fórmula 1, onde anos de grande sucesso se seguem.
Mas não seria o bastante: acaba fundando a sua própria marca em 1963. Seu primeiro carro de Fórmula 1 estreou em 1966, o primeiro de um legado que hoje soma 722 grandes prêmios, oito campeonatos de construtores e 12 títulos de pilotos, 155 pole-positions, 151 voltas mais rápidas e 182 corridas — a mais alta taxa de vitórias de qualquer equipe. Maior até que a Scuderia Ferrari, apesar desta ter nascido 16 anos antes.
Bruce Mclaren também foi o piloto que, junto com seu conterrâneo Chris Amon, fez a Ford finalmente vencer Le Mans com o GT40, na famosa e épica corrida de 1966. Seu grande sucesso em competições enquanto vivo, porém, foi na categoria Can-Am de carros esporte, onde seus carros laranja dominaram completamente a categoria, a ponto de em 1969, ganharem todas as corridas da temporada.
Mas uma vida de sucessos profissionais é uma coisa; a pessoa é outra. Maior que os feitos de Bruce na pista é a alegria, a generosidade e a simpatia com que sempre tratou qualquer pessoa, independentemente de cor, estatura, idade ou posição social. Uma pessoa universalmente adorada, tinha a humildade e a empatia com seus semelhantes que marcam um homem realmente grande.
Mas o mais incrível ainda é saber que a vida não deu nada fácil para nosso herói. Podia ser uma pessoa amarga e triste, que entenderíamos. Se vivesse hoje, por exemplo, poderia conseguir uma pensão do governo, e estacionar na vaga especial. Sim, Bruce McLaren era um deficiente físico.
“A doença de Perthes é uma rara condição infantil que afeta o quadril. Ocorre quando o fornecimento de sangue para a cabeça arredondada do fêmur (coxa) é temporariamente interrompido. Sem um suprimento sanguíneo adequado, as células ósseas morrem, um processo chamado necrose avascular. À medida que a condição progride, o osso enfraquecido da cabeça do fêmur (a “bola” da articulação “bola-soquete” do quadril) gradualmente começa a se separar. Ao longo do tempo, o fornecimento de sangue para a cabeça do fêmur retorna e o osso começa a crescer de volta.” – Assim é descrita a rara doença que afligiu Bruce aos 10 anos de idade. Uma série de operações foram necessárias, e o jovem Bruce efetivamente permaneceu em um hospital-sanatório longe da família (que o visitava uma vez por semana) preso a um leito, engessado da cintura para baixo, por três longos anos. Se recuperou muito bem, como sabemos, mas não sem sequelas: uma perna ficou 4 cm mais curta que a outra, fazendo com que ele mancasse nitidamente por toda sua vida.
O M6GT
Ao redor de 1968, depois do grande sucesso do M6A nas competições da série Can-Am, Bruce Mclaren vira sua atenção novamente as competições de carro esporte da FIA, especialmente o Grupo 4, com visão de competir em Le Mans em 1969. Ganhar em Le Mans (o que já tinha feito para a Ford) era ambição de qualquer fabricante, a mais glamorosa das corridas. Significava também fazer um carro que andasse legalmente em ruas, emplacado, um desafio para a pequena empresa.
Como tudo em sua vida, Bruce atacou este novo projeto com dedicação e altíssima expectativa. Seu carro de rua seria o mais veloz e rápido do mundo, levando a velocidade dos seus monstros da Can-Am diretamente para as ruas. E mais que uma mera homologação para a FIA, o plano era fazer da Mclaren uma marca de carros esporte de rua, como a Ferrari. O objetivo: 250 carros por ano.
O carro em si era baseado no M6 de competição. Assim, era um monobloco de alumínio e aço, com uma carroceria em plástico reforçado com fibra de vidro. Freios Girling de competição, a disco nas quatro rodas, rodas de magnésio de competição, e suspensão por triângulos superpostos nos quatro cantos. Era um cupê fechado, com muito pouco espaço interno ou porta-malas, e até o estepe era pequeno, apenas para emergência, uma raridade então. Efetivamente um carro de corrida para as ruas.
O motor era um Chevrolet V-8 bloco-pequeno, mas um dos melhores já criados: baseado no excelente LT1 de 5,7 litros e 370 cv, este era cuidadosamente preparado pelo lendário Al Bartz, e contava com quatro carburadores Weber de duplo corpo, para algo bem acima dos 400 cv. Num carro que pesava não mais que um Uno Mille (ao redor de 800 kg), e acoplado a um transeixo ZF de cinco marchas, o resultado era devastador: 290 km/h de máxima, e aceleração de 0-100 mph (0-160 km/h) em oito segundos.
O primeiro protótipo, criado na própria Mclaren, recebeu as placas inglesas OBH 500H, e imediatamente entrou em uso como carro pessoal de Bruce Mclaren. Ele andou para todo lado com ele, como se faz com um carro de rua, e usou-o como protótipo de desenvolvimento, resolvendo problemas quando apareciam e incorporando as soluções nos carros subsequentes. Como curiosidade, este primeiro carro tinha faróis escamoteáveis manuais: Bruce tinha que sair do carro, enfiar o dedo numa abertura e levantar os dois faróis manualmente…
A produção seria contratada à firma Trojan, que produziu talvez mais cinco carros. Com a morte de Bruce em 1970, o projeto perde o ímpeto e morre, para que a abalada empresa se concentrasse em seu métier, as competições.
O legado
É tentador, para alguém não familiarizado com o mundo das competições dos anos 60, dizer que a morte de Mclaren é algo estúpido e sem sentido. Um jovem promissor de 32 anos perdendo a vida assim é realmente triste. Mas certamente ele não gostaria que nos sentíssemos assim. Certa vez, escreveu:
“Fazer algo bem tem tanto valor, que morrer tentando fazê-lo melhor não pode ser considerado temerário. Seria um desperdício de vida não fazer nada com a sua capacidade inata, pois sinto que a vida é medida em realização, e não somente em anos”
Seu legado permanece no sucesso incrível em competições de sua empresa desde então, e em mais: 22 anos depois de sua morte, o engenheiro sul-africano Gordon Murray lança a Mclaren F1, o mais incrível, veloz e rápido carro de rua a seu tempo. Hoje, os carros de rua da McLaren são tão desejados e especiais quanto qualquer Ferrari. Até mais, conhecendo-se o legado de seu fundador.
Mais que um jovem e simpático piloto, mais que o engenheiro brilhante e empresário de sucesso, Bruce Mclaren mediu sua vida em realizações, e não anos. E superou incríveis dificuldades na vida para se tornar imortal em seus carros, que continuam a levar adiante seu ideal de excelência. Um exemplo para quem, hoje, reclama que a vida é difícil.
MAO