Na semana passada contei detalhes da Copa Peugeot de Rali na modalidade Regularidade. Agora você saberá um pouco mais dos bastidores do Velocidade.
A Peugeot é uma marca tradicional em participação no automobilismo em toda Europa e começou no Brasil no início dos anos 2000.
Sua chegada foi para disputar o Campeonato Brasileiro de Rali de Velocidade e o veículo escolhido para esta difícil tarefa foi o Peugeot 206, que acabava de iniciar sua produção nacional no começo de 2001 na nova fábrica da PSA (Peugeot e Citroën) em Porto Real (RJ). Eram carro e tecnologias de competição bem conhecidos dos engenheiros lá na França, de fácil transferência para o Brasil.
O primeiro lote de veículos de competição produzidos no Brasil, de 45 carros, foi concluído em meados de 2002 e seu lançamento ocorreu no Salão do Automóvel daquele ano. Todas as unidades produzidas na fábrica brasileira foram vendidas. Foi um excelente trabalho realizado pelo meu antecessor Paulo Beccardi, gerente da Peugeot Sport Brasil, departamento recém-criado à época.
Os carros deste lote foram produzidos na linha de produção normal, mas despojados de todos os materiais que em competições não são utilizados, como detalhes de acabamento, revestimentos antirruído, equipamentos como vidros elétricos, e outros.
A montagem dos carros foi terminada na sede da Peugeot no Brasil situada à época na rua Miguel Yunes, em Santo Amaro, próximo a Interlagos. Ali foi criado um espaço dedicado às atividades da Peugeot Sport.
Uma equipe uruguaia foi contratada para fazer a montagem final trazendo consigo as peças importadas da França e algumas produzidas no país vizinho como, por exemplo, o “santantônio” (arco de proteção montado no interior do veículo para proteger piloto e copiloto em caso de capotagem ou batida lateral) dentro das Prescrições de Segurança do Anexo J da FIA (Federação Internacional do Automóvel).
Os dados técnicos destes primeiros Peugeot 206 Rali podem ser vistos nesta ficha e dão a dimensão exata do grau de preparação e esmero deste autêntico carro de competição produzido pela Peugeot no Brasil:
Um dos principais trabalhos realizados pela Peugeot Sport Brasil foi providenciar a homologação do carro na Confederação Brasileira de Automobilismo (CBA) pelo seu Conselho Técnico-Desportivo Nacional (CTDN), sem a qual o veículo não poderia participar do campeonato nessa modalidade. A rigor tal homologação era desnecessária, pois o 206 1,6-L fabricado aqui era idêntico ao francês, que já era homologado no grupo A (carros de grande produção, mínimo 5.000 unidades em 12 meses consecutivos) da FIA.
Este processo, como não poderia ser diferente, teve um alto preço, absurdamente alto (a ética não me permite dizer quanto), mas necessário para poder colocar o carro em competições — taxas e mais taxas, estas foram as primeiras, depois viriam outras.
Os Peugeot começaram a participar do Campeonato Brasileiro em 2003 e a marca se utilizava da estrutura montada sob a responsabilidade das autoridades automobilísticas de cada Federação local e o clube organizador do evento. No grid, a maioria dos carros eram da marca Peugeot.
A participação da Marca no Campeonato Brasileiro de Rali foi muito boa, o regulamento técnico do Grupo A seguido à risca colocava nossos carros sempre em posições de pódio.
Com algumas “curiosidades” no regulamento identificadas pelos competidores, apesar da Peugeot ser o maior número de participantes, outra marca, com um só carro, aparecia sempre como o vencedor. Não concordando com estas condições favoráveis ao concorrente, a Peugeot Sport exigiu o cumprimento do regulamento conforme estabelecido pela FIA, mas como não foi atendida só havia uma saída: aproveitar a oportunidade e criar sua própria categoria, monomarca, com seu regulamento técnico particular.
Nascia, assim, a Copa Peugeot de Rali com o Peugeot 206 nacional, dotado de tecnologia trazida da França e movido a gasolina somente.
O primeiro ano da Copa Peugeot de Rali foi 2004. Como só passei a comandar a atividade em 2008, só posso descrever como foram os anos da Copa desse ano a 2013, portanto os cinco últimos anos dos dez da sua vida total.
A Copa crescia a cada ano, tivemos o recorde de participantes, 42 duplas na etapa de Brasília em 2013. Como rali monomarca este número era muito significativo. E a pergunta que se fazia era: por que este sucesso?
Organização, seriedade, segurança, premiação, baixo custo para o competidor e muitos benefícios.
Os benefícios eram muitos, a começar com a possibilidade de financiamento pelo próprio Banco Peugeot, pois não havia instituição financeira no Brasil que financiasse veículos de competição, os riscos eram muito grandes. O carro com toda essa preparação, criteriosa e pronto para competir, custava o dobro da versão básica 1-litro, o que era bem razoável.
As peças eram vendidas a preços subvencionados, podendo ser adquiridas na prova ou direto na Peugeot Sport.
O transporte era oferecido gratuitamente pela Peugeot Sport através da grande parceira Brazul. Retiravam o carro em endereço indicado pelo competidor e o transportavam até o local da prova, e depois o retorno para casa. Este era um dos maiores benefícios para os pilotos, que só precisavam se deslocar, e sua equipe, em carros de apoio próprios.
Havia um consultor técnico da Peugeot Sport presente em todas as etapas para apoio técnico aos competidores, premiação em dinheiro do primeiro ao quinto colocado e ainda troféus e champagne. Fazia parte deste pacote da compra do carro dois macacões à prova de fogo Sparco, um para o piloto e outro para o copiloto.
No capítulo seriedade coloco em destaque a produção dos motores especiais com potência de 140 cv e lacrados de fábrica. Não era permitido alterar qualquer item do veículo e tudo isto era acompanhado pelo consultor técnico da Peugeot Sport e pelos comissários técnicos da CBA que, como já disse, acompanhavam todas as etapas.
Como muitos utilizavam os carros da Copa nos ralis de velocidade, cuidávamos de recolher os módulos de gerenciamento eletrônico do motor e fornecer os nossos para manter o princípio de motores iguais. No final dos ralis os concorrentes recebiam seus módulos de volta, claro.
Após a prova, uma severa vistoria por escolha aleatória era realizada e até algumas desclassificações ocorreram. O combustível dos três primeiros era analisado no local por uma equipe da Petrobrás, nossa parceira. A gasolina era a Podium (depois álcool) e cada prova elegíamos um posto BR na cidade, onde todos os competidores deviam abastecer. Este trabalho dava credibilidade à organização da competição.
Realmente, descrever mais detalhes sobre a Copa Peugeot de Rali Velocidade precisaria escrever um livro. Mas uma coisa é importante frisar, foram cinco anos de muita emoção, muitas alegrias, nenhum acidente de maiores proporções.
Havia também parceria com fabricantes de pneus e nesses meus cinco anos à testa da Peugeot Sport tivemos Goodyear, Yokohama e Pirelli. A regras da Copa estabeleciam que só poderiam ser comprados seis pneus por etapa (os carros levavam dois estepes) e estes parceiros se incumbiam de montagem e balanceamento de rodas nos locais dos eventos. Outra parceira, a lubrificantes Total, prestava assistência nas provas com venda de óleos e fluidos.
É lógico que também dependíamos da participação, parcerias das autoridades locais para permitirem a realização da Copa em sua cidade. Muitos protestos de moradores aconteceram, não entendiam o que era o rali e ameaçavam atravessar tratores para impedir a largada. Falavam em cercear os direitos do cidadão o direito de ir e vir. Era um trabalho exaustivo convencer às pessoas de que a estrada estaria fechada por um determinado período no fim de semana previamente informado. Alguns não se conformavam, mas ao final, depois de muita conversa tudo se arranjava. Era uma preocupação constante.
A Copa Peugeot de Rali também conseguiu junto a algumas prefeituras o benefício de “arrumar” as estradas de terra (passar uma scraper, motoniveladora) para tornar a competição mais segura e quem ganhava com isto eram também os moradores da região, que ficavam com uma estrada em condições bem melhores.
Contatos e autorizações prévias eram necessárias, Prefeitura, Secretaria dos Esportes, Corpo de Bombeiros, Polícia Civil, Departamento de Trânsito, todos eram envolvidos, mas mesmo assim ainda tínhamos aqueles que protestavam — nervos à flor da pele eram uma constante, a tranquilidade vinha somente após o término da prova, o pódio e as despedidas. Eu ia para o hotel e dormia das 19h00 até o dia seguinte, desligava até o telefone.
Quando lançado no Brasil, o Peugeot 207 foi produzido na versão flex e por isso decidimos criar duas categorias novas: 207 Master e 207 Super, com diferença nos motores, a primeira com 140 cv e a segunda, com 150 cv, diferença esta obtida por aumento da taxa de compressão para 13:1 na Super e novo mapeamento da gestão eletrônica do motor. Para esse trabalho tivemos o concurso do engenheiros do Instituto Mauá de Tecnologia, de São Caetano do Sul. A categoria 206 ficou para os estreantes, a 207 Master para os mais experientes e a 207 Super exclusiva para pilotos que já tivessem em seu currículo o título de campeão em alguma categoria de rali disputado no Brasil.
O pódio e as premiações eram feitas por cada categoria, do 1º ao 5º colocado.
Não poderia deixar de mencionar e homenagear aqueles que comigo fizeram a Copa ser o sucesso que foi por estes cinco anos. Diretores de prova Alberto Fadigatti e Paulo Leite; equipe de segurança dirigida por Paulo Amato; equipe de radiocomunicação sob o comando do Fernando Silva; equipe de Cronometragem, a alma da prova, conduzida por Ulisses Wichowski; e tão importante quanto qualquer um destes citados, o diretor de Eventos da Montarte Eventos, Richard Espírito Santo, grande parceiro e colaborador responsável por toda parte gráfica do evento (planilhas, etc.), montagem de toda estrutura como sala dos pilotos, sala da secretaria de prova, sala dos Comissários, sala da cronometragem, banheiros químicos e, principalmente, a montagem da carreta para a recepção das autoridades locais e patrocinadores, com sempre muitos produtos para degustação.
A chegada da Copa Peugeot de Rali era uma verdadeira “chegada do circo” nas cidades, agitava, suscitava grande interesse da população local, marcava indelevelmente a presença da marca.
A equipe da Peugeot Sport era composta por Marcus Brier, diretor de Assuntos Corporativos da Peugeot do Brasil e da Peugeot Sport Brasil; Maísa Salmi e Rodrigo Tramontina, assessoria de imprensa da Peugeot; Katia Malgueiro, depois Karen Orsi e nos últimos anos a grande colaboração do incansável Gilberto “Giba” Pace. Tratando de assuntos internos e secretaria de prova, Fábio Martins, laborioso e profundo conhecedor de peças de reposição e pessoa que acompanhou a montagem de muitos carros.
Tínhamos também um diferenciador em nosso evento, um 207 Super especialmente preparado para jornalistas experimentarem as emoções de participar de um verdadeiro rali. Depois desta experiência, saíam matérias sensacionais onde o jornalista fazia comentários sobre sua experiência — e medos — pelos quais passou.
Além dessas matérias periódicas tínhamos também um horário na grade de programação esportiva TV Bandeirantes, no qual o competente jornalista Celso Miranda falava meia hora sobre a Copa Peugeot e vídeos compactos das provas, entrevistas com pilotos, etc, eram exibidos.
Depois de lhe ter contado os vários aspectos mais importantes da Copa Peugeot de Rali, vem a parte triste da matéria: no final de 2014 o departamento seria desmontado. A Copa Peugeot de Rali não estava mais na programação de marketing da empresa, mesmo tendo o sucesso que foi e com mais de 100 Peugeot 206 e 207 especiais de competição produzidos e vendidos em 10 anos, algo jamais feito antes e que nunca repetiu — e provavelmente nunca se repetirá — na indústria automobilística brasileira.
Meu desligamento se deu logo em seguida. Até hoje não sei ao certo de quem foi a decisão de acabar com a Copa Peugeot de Rali, se foi ordem da PSA na França ou da PSA local, mas uma coisa é certa, como já comentado, uma decisão errada, na minha opinião.
Fui feliz, com a sensação de tarefa cumprida. Logo depois fui trabalhar na Harley-Davidson do Brasil onde pude por um bom tempo atuar na área de relacionamento com clientes e concessionários e ao final da minha passagem por esta empresa ainda participar de treinamento específico de pilotagem de Harley-Davidson nos Estados Unidos e introduzir a Riding Academy no Brasil.
Hoje quase aos 70 sinto-me feliz em poder compartilhar com você uma das minhas mais importantes experiências profissionais.
RB