Qual a etiqueta de boa educação quando se pega de alguém, um carro emprestado? Aprendi com meus pais que a norma de boas maneiras quando se pega de alguém, um carro emprestado é devolvê-lo sempre com o tanque cheio, independentemente de se você pegou o carro igualmente com o combustível saindo pelo ladrão ou com apenas vapor e eco no tanque. Minha conduta sempre foi seguir esse protocolo de boas maneiras, além de uma lavagem, nem que seja uma ducha rápida.
Nos idos de 1996/1997 tínhamos quatro carros em nossa garagem: o lindo Vectra GLS 1994 de meu pai, o Suzuki Vitara 1993 de minha mãe (ambos azuis perolizados) e eu, que andava de Marajó SL 1986 e tinha também o meu Fusca 1983, que naquele tempo só tinha lataria e interior, a mecânica ainda era carecia de uma extensa reforma.
E como era bonito o Vectra A! Embora o modelo subsequente tivesse marcado época pelo arrojo, sempre gostei mais do “A”. Esse carro me dá saudades até hoje!
Como em casa sempre fomos “autoentusiastas”, cada um tinha o seu carro, ninguém pegava o veículo do outro sem prévio aviso ou autorização. Dessa maneira, era vedado, para mim, pegar tanto o Vitara quanto o Vectra sem a devida permissão, assim como meus pais não pegavam a Marajó sem minha autorização. E quando pegávamos o carro um do outro, minha mãe e eu usávamos a praxe da boa educação de devolver lavado e com tanque cheio, afinal, era uma gentileza que um fazia pelo outro.
Meu pai por outro lado, sempre gostou que fizéssemos isso, mas ele mesmo sempre “esquecia” de pôr em prática a norma de boa educação, embora fosse um ardoroso defensor do costume e crítico dos meus tios, irmãos dele, que nos tempos de juventude deixavam os Fuscas, Corcéis e Kombi de meu avô sem gasolina.
Naquele ano de 1997 o verão foi bastante forte e eu, que diariamente andava e enfrentava o horário de pico da capital paulista, sofria os efeitos do isolamento térmico deficiente de nossa Marajó (até hoje não consigo compreender o porquê desse defeito – só a nossa tinha) e chegar aos lugares com a camisa molhada de suor era algo corriqueiro, ocorria até no inverno. Assim, meu pai fazia a “gentileza” de me emprestar o Vectra, normalmente às sextas-feiras, para que pudesse ir ao Curso Anglo da rua Sergipe.
O que ele não contava e eu, ingênuo, não percebia, era o fato de o “empréstimo” incorrer em “juros”: sempre que funcionava o Vectra pela manha, após a partida, todas as luzes do painel se apagavam menos aquela que representa uma bomba de combustível, ao lado do marcador. E assim, o “coió” que aqui vos escreve abastecia o carro no posto da esquina, pegava o vale-lavagem e no final do dia encostava o carro para a ducha com direito a glicerina nos pneus e tudo mais.
Um belo dia, no jantar, meu pai chega e começa a reclamar comigo, dizendo que não sabia se eu estudava ou fazia frete, que onde já se viu, minha despesa com posto de combustível era alta demais, afinal “nem ele que ia para o escritório, e ainda tinha que ir ver a obra de Valinhos gastava tanto combustível”. Tentei contra argumentar dizendo que a Marajó gastava demais (e gastava mesmo, fazia 5 km/l) e que abastecia o carro dele mas foi em vão, o sermão continuou. Fazer o quê, ouvi e fiquei quieto, não adiantava prolongar a conversa. Isso foi numa quarta-feira.
No dia seguinte, à noite, já estava deitado, quase dormindo, entra meu pai no quarto, deixa a chave do Vectra no criado-mudo, e diz “Amanhã vá de Vectra. É mais confortável”. Agradeci, e no dia seguinte, lá estava eu, 6h10 da manhã funcionando o Vectra e olhando a luz do tanque acesa. Nem teria me incomodado com o fato se o carro tivesse chegado ao posto: já na primeira centena de metros o motor começou a engasgar e, para minha sorte, o posto de combustível da esquina da casa de meus pais (não era o que eu abastecia), excepcionalmente estava abrindo mais cedo naquele dia e assim pude encostar o carro e abastecer.
Na hora, mandei encher o tanque e logo que o frentista começou a colocar os primeiros litros, num impulso mandei parar. Deixar o carro andando no “cheiro” era o fim e estava na hora de dar o troco. Havia dado R$ 4,50, cerca de 5 litros de gasolina. Era mais que o suficiente. E foi com esse combustível que fui para o meu curso.
Na hora do almoço, necessitando de dois livros para estudar, saí do curso e me dirigi até a sede da Editora Ática na rua Barão de Iguape, no bairro da Liberdade. Coloquei mais 5 litros de gasolina e fui, ar-condicionado ligado no máximo para sobreviver ao trânsito da avenida 23 de Maio. Voltei ao curso, onde deixei o carro embaixo de um sol escaldante, ótimo para evaporar combustível (minha sombra no estacionamento já estava ocupada) e fiquei nos estudos até umas 16h00, quando ai fui embora para casa.
Já quase chegando em casa, avisto o posto onde normalmente abastecia e lavava os carros. Vendo-o vazio, resolvi entrar e me dirigi ao frentista:
— Quanto é a lavagem completa?
— R$ 20,00 — responde o funcionário — mas encher o tanque e colocar mais de 20 litros, é por conta da casa.
— Tudo bem, quero só lavar — respondi.
A resposta teria passado incólume se no ato do funcionário pegar o carro a luz do combustível na reserva não tivesse brilhado no painel. Consigo ver, até hoje, a casa de espanto e incompreensão do frentista.
Seja com espanto ou com incompreensão, o pessoal do posto lavou magistralmente o Vectra. Mandei caprichar na glicerina nas rodas e colocar aquelas “jet-ceras” que não servem para muita coisa mas dá um brilhozinho por algumas horas. E de Vectra azul perolizado brilhando cheguei em casa e guardei-o de ré na vaga lateral, com os pneus virados para enfatizar ainda mais a beleza do carro e realçar a limpeza, ficando nessa posição até segunda-feira, dia de recomeçar a rotina quebrada pelo final de semana.
Na segunda, meu pai sai com o Vectra e antes que chegasse no posto da esquina (aquele onde abasteci os 5 litros na sexta-feira), o carro havia simplesmente apagado por falta de combustível, obrigando-o a chegar no embalo na bomba de abastecimento, azedando seu humor logo pela manhã.
Avisado por minha mãe de que viria bronca (ela me disse que ele estava uma fera), logo que encontrei meu pai já fui falando “Pai, você estava certo, preciso economizar combustível. A primeira coisa que comecei a fazer é parar de encher o tanque do carro dos outros…”. E como já dizia o ditado, o “bom cabrito não berra” (a pessoa culpada não se entrega e nem aos companheiros), meu pai proferiu um sonoro palavrão e fomos todos jantar em plena harmonia.
DA