Voltei no tempo, fui ao fundo do meu baú e me lembrei de uma viagem cheia de emoções que por pouco não foi uma tragédia.
O ano, 1972; onde, via Dutra.
A história começa no escritório regional da Volkswagen do Rio de Janeiro. Meus pais, que moravam em São Paulo, sempre davam notícias das coisas que aconteciam por lá.
Em um telefonema daqueles normais que uma mãe saudosa dá para seu filho, ela me contou que meu pai havia comentado que gostaria de trocar o seu Karmann-Ghia 1968 por um mais novo.
Comentei com ela que no escritório tínhamos um gerente que usava um Karmann-Ghia como carro de serviço, vermelho ano 1972, portanto quatro anos mais novo e com baixíssima quilometragem, e eu acreditava estar chegando a hora da troca. Naquela época trocava-se de carro de 6 em 6 meses e se o gerente não fosse comprá-lo para ele seria uma oportunidade muito rara, comprar um carro “usado” do ano e tão novo.
Segui em frente com nosso plano, eu de olho no carro e batendo papo com meu colega de serviço, e em São Paulo minha mãe conversando com meu pai de forma especulativa para chegar à conclusão que a única cor de carro que ela não queria era vermelho. Tínhamos um problema e não poderíamos perder a oportunidade, e o Natal estava chegando.
Boa notícia, meu colega não iria ficar com o carro, embora a preferência para a compra fosse dele, assim era o regime na VW e, creio, em outros fabricantes. Se ele não comprasse o carro este iria para o leilão da fábrica.
Tive uma ideia que deu muito certo, perguntei a ele se seria possível ele comprar o carro para mim, mesmo ficando em seu nome por seis meses, o que era a norma da empresa à época.
Fechamos negócio com a compra, mas tínhamos um problema a resolver: a cor do carro.
Ainda de forma especulativa, minha mãe conseguiu descobrir que o amarelo era a cor preferida do meu pai e a VW tinha naquele tempo um amarelo de sucesso, o amarelo Colonial.
O meu relacionamento com as concessionárias sempre foi muito bom e tínhamos no Rio uma concessionária-modelo para pintura de automóveis, a Besouro Veículos, que ficava no centro da cidade. Conversei com o gerente de serviço e traçamos um plano para a mudança de cor do carro, de vermelho para amarelo Colonial e, logicamente, a forma de pagamento.
Início de dezembro e o carro desmontado, a nova cor sendo aplicada. Tudo precisaria ficar pronto até o dia 22, quando eu iria a São Paulo, como combinado, passar o Natal com meus pais, levando o presente de Papai Noel para o papai da casa.
Como planejado, carro pronto, documentação pronta, mala feita e pé na estrada, ou melhor, Karmann-Ghia novinho na estrada.
Nota: a foto do carro, alemão, é meramente ilustrativa.
Saí do Rio de Janeiro por volta das 17h00, direto da concessionária para a estrada. Que delícia, carro perfeito, tudo novinho e aquele cheirinho inconfundível de pintura recém-terminada.
Via Dutra, conhecidíssima por mim, praticamente metro a metro porque ia muito a São Paulo para passar fim de semana com meus pais. Naquele época foi que conheci minha esposa, estávamos namorando não há mais de um mês.
A Baixada Fluminense já tinha ficado para trás, a subida da Serra das Araras tinha sido muito divertida, o Karmann-Ghia era um carro fantástico.
Parada para lanche e a viagem continuaria já com céu escuro. Minha experiência em estradas me ensinou que o lusco-fusco do anoitecer é o momento em que o sono “pega”. Por esta razão, antes de escurecer eu parava e depois já com uso dos faróis continuava a viagem.
Volta Redonda já tinha ficado para trás quando começou a chover. Pensei que pena vai sujar o carro. Resende estava por chegar.
Foi aí que tudo aconteceu. Uma carreta carregada com vergalhões de ferro que seguia no sentido Rio de Janeiro derrapou na curva ali existente e o cavalo-mecânico e o semirreboque formaram o chamado e temido “L”, depois tombando sobre o canteiro central e ocupando a pista sentido São Paulo, por onde eu vinha a uns 100 km/h. Quando meus faróis iluminaram aquele paredão de ferro à minha frente — o tombamento acabara de acontecer — eu era o primeiro carro a ficar de frente com aquele monte de ferro voltado em minha direção.
Não havia guardrail naquela época, tentei o freio, mas nada do carro parar, o piso estava liso e os ferros, chegando. Meu reflexo foi rápido, ao perceber que não daria para parar a tempo desviei abruptamente para a esquerda, com o que subi no canteiro central, o Karmann-Ghia decolou e não vi mais nada até ouvir um forte impacto do lado direito do meu carro e parar no acostamento do outro lado. Fiquei atordoado com a batida e levou alguns segundos até tirar o cinto de segurança e sair do carro.
Neste momento vieram na minha direção dois senhores com a cara toda furadinha por vidros e sangrando um pouco. Perguntaram-me se eu estava bem. “Sim,” respondi, lembro-me muito bem de eles dizendo que eu havia “voado” da pista de lá (apontando o sentido Rio-São Paulo) e caído sobre o capô e para-brisa do seu carro em que estavam, um Fusca, no momento em que eles contornavam a carroceria do semirreboque tombado que ocupava ¾ da pista sentido Rio e ¾ no sentido São Paulo.
Primeira providência, em conjunto, foi sinalizar a pista, mas não a tempo de evitar o impacto de dois carros com o caminhão e a carga tombada e ainda um ônibus da Cometa que também seguia para São Paulo e bateu na traseira do último carro. Ninguém graças a Deus se feriu gravemente, mas a estrada ficou interditada até a chegada da Polícia Rodoviária Federal que, diga-se, foi muito rápida e eficiente ao sinalizar toda a pista, evitando assim novas batidas.
Situação sob controle, fui ver meu carro de perto e verifiquei que todo o lado direito estava semidestruído. Para-lama traseiro, lateral, porta direita, vidro da porta e uma parte do para-lama dianteiro. A mecânica estava a salvo, danos somente de carroceria.
Perguntei a um dos policiais se poderia seguir viagem, ele autorizou e com a confusão generalizada deve ter ficado satisfeito com um carro a menos para fazer B.O. Conversei com o dono do Fusca e ele me disse que eu não me preocupasse, ele tinha seguro do carro e anotou os meus dados.
Manobrando meu carro percebi que a mecânica estava intacta. Amarrei a porta com uma corda e segui viagem — a 50 km/h!
No primeiro posto parei para ver o estado do carro debaixo de luz e vi que poderia seguir viagem sem problema.
Liguei para casa, falei com a minha mãe e disse que o carro estava falhando muito e que de tempos em tempos o motor chegava a apagar e que talvez ficasse em algum hotel na estrada para continuar a viagem pela manhã, mas nada falei sobre o acidente, apenas que não tinha certeza sobre o horário da minha chegada em casa. Viajei a noite toda e cheguei a São Paulo às 6h30 da manhã do sábado.
Acordei meus pais e aí a grande surpresa, grande mesmo, em minutos contei o que havia acontecido, mas o mais importante é que eu estava bem, mas a surpresa para meu pai foi bem maior do que a que imaginávamos proporcionar.
Com aquele sorriso amarelo e o humor que lhe era peculiar, ele disse: “Gostei, depois de consertado vai ficar bonito.”
Naquele mesmo sábado levei o carro até a transportadora Brazul que o levou de volta ao Rio de Janeiro, entregando-o na mesma concessionária de onde tinha saído 24 horas atrás.
E no mesmo sábado vi que havia ganho um belo hematoma na região pélvica causado pelo cinto de segurança apenas subabdominal, que mostrou seu valor e porque jamais se deve andar num carro sem atar cinto, ou as consequências seriam imprevisíveis. O hematoma me acompanhou por quase um mês…
Um detalhe importante: o Karmann-Ghia não tinha seguro, eu não havia providenciado e o conserto foi pago por mim e a concessionária, como antes, uma grande parceira.
Passei o ano de 1973 pagando o conserto e aprendi uma grande lição: não retiro nada, seja carro ou moto da concessionária, sem o famigerado seguro total.
RB