Por Portuga Tavares
Estou longe de ser um sujeito considerado elegante, todos os dias uso camiseta branca, calça jeans e o mesmo e único par de tênis, que só troco quando está em petição de miséria, só assim compro um novo. Também sou do tipo que fala de boca cheia, me alimento rápido e uso o garfo na mão esquerda, mas não por questão de etiqueta, mas sim porque sou canhoto. Agora, a elegância que eu entendo é outra: a dos concursos de carros antigos. E posso garantir, o Car Day Brasil realizado em São Paulo, a terra da garoa, no sábado 7 de outubro, fez bonito até debaixo d’água — literalmente, já que choveu!
Há 30 anos que não havia um Concurso de Elegância em nosso país. Temos uma série de eventos de carros antigos, onde há uma comissão julgadora que, seguindo os critérios do eventos, elegem os veículos de destaque. Em alguns os critérios são as customizações, em outros a originalidade e, em alguns ainda, a premiação é feita conforme os dois critérios em categorias distintas. Alguns desses eventos são feitos de forma independente por entusiastas apaixonados que “arregaçam as mangas” de forma independente, ou por clubes.
No Concurso de Elegância de São Paulo, em 2017, o Car Day Brasil, os títulos máximos ficaram para, no quesito testemunho de época um Buick 1927 nunca restaurado. Segundo o presidente da FIVA (Fédération Internationale dés Véhicules Anciens), “…um carro só é autêntico uma vez, quando mantém suas marcas de tempo e isso não afeta sua aparência e funcionamento…”. Aos olhos de um leigo pode ser “deselegante” ver um cromo cansado, uma pintura opaca e alguns arranhões, mas é importante lembrar que aquele veículo tem — provavelmente — a idade dos nossos avós e nada mais natural há do que rugas.
Já o troféu “The Best of Show” ficou com o Packard 1931 com carroceria Saoutchik. Imagine só, um carro americano, que foi levado para Jacques Saoutchik, na França, para ser encarroçado, depois trazido para o Brasil — sim essa máquina não é importação de época, mas desses carros que chegaram depois de aprovada a lei de importação de antigos. Trata-se de “coisa da época”, como dizem.
Os avaliadores até levantaram dúvidas, mas sabe-se que a empresa sediada na França era conhecida pela extravagância e teve entre clientes admiradores de carros feitos nos Estados Unidos. O “xeque-mate” foi quando notaram os faróis, da marca francesa Marchal e modelos exclusivos feitos entre 1929 e 1931, logo mais raros e cobiçados do que a mecânica do carro, por exemplo, e atestam a época da fabricação.
Outro elemento em acordo com as carrocerias francesas da época? O filete pintado à mão imitando a palha de estofado dos assentos de poltronas. Não se sabe o motivo, mas esse tipo de filetamento era febre na época para carros alemães e franceses. Esteve estampado desde carros pequenos e baratos como o Peugeot 172, até carros caros e cobiçados, mas ficou fora de moda rapidamente, conforme as pinturas se desgastaram a maioria não resgatou essa história.
Num Concurso de Elegância, além da “originalidade de época” (que não é necessariamente a de fábrica), leva-se em conta a relevância histórica de um modelo. Por exemplo, um veículo que tenha sido de um artista, grande celebridade ou empresário de renome poderá sobressair diante de um automóvel idêntico, mas sem comprovação de quem foram os donos anteriores.
Quer exemplo de um diferenciador e tanto na história de um veículo? Imagine ter um esportivo dos mais desejados e que tenha sido de um homem que fez — e faz — a história do automobilismo nacional. Pois bem, o Mercedes-Benz 300 SL, mais conhecido como “Asa de Gaivota”, foi de ninguém mais, ninguém menos do que Bird Clemente, o homem que podemos dizer que é o primeiro piloto “de profissão” em nosso país, remunerado para tal que foi pela Willys-Overland do Brasil. Além da história nas pistas, Bird ainda foi presidente do Veteran Car Club de São Paulo e, durante sua gestão, trouxe para São Paulo os Concursos de Elegância.
Os veículos, para serem avaliados, precisam chegar rodando e em pleno funcionamento de suas funções, logo os que possuem iluminação devem pô-las em funcionamento, o automóvel deve andar um metro para frente e um metro para trás, apresentar funcionamento regular, ligar, desligar e religar sem qualquer problema. Depois dessa pequena série de “exercícios” o automóvel segue rodando até seu lugar de exposição. Aí está, concordo que nada é mais elegante do que um carro chegar ao seu destino sem o empurrão do “…pois é…”.
Têm pontuação acima da média carros com carrocerias únicas; se tiver configurações extravagantes, melhor ainda. Hoje pode parecer fora de moda, mas no passado ostentar joias no carro era um sinal de proprietário de elegância acima da média. Um francês chamado René Lalique ficou famoso por esculpir tampas de radiador em cristal e com formatos de mascote. Sua peça mais famosa é a cabeça de águia e um “Lalique” desses vale uma pequena fortuna, capaz de comprar um carro popular novo… e sobrar um dinheirinho!
Quer outro exemplo? Então que tal o Isotta-Fraschini de 1927? Esse aqui tem uma carroceria desenhada pelo Studio Castagna, com carroceria de aço no lado externo e madeira de lei no interior, além de requintes de acabamento, como as maçanetas com detalhes em marfim. Naqueles tempos usar elementos naturais era elegância, tanto quanto atualmente participar com um evento deste porte na Sociedade Hípica Paulista, mais conhecida como “Hípica São Paulo”.
Lembra-se que citei o Bird Clemente quatro parágrafos antes? Pois então, ele foi o presidente que estava à frente do clube que trouxe os Concursos de Elegância para o solo nacional. Na década de 1980 foram algumas edições, a presidência do Bird passou, mas sua herança com o concurso resistiu, sendo o último em 1987. O ambiente do Concurso era o campo de polo, mas o cenário era a Hípica Santo Amaro, também na zona sul de São Paulo. A edição que marca a volta — depois de 30 anos — teve organização da FBVA, a Federação Brasileira de Veículos Antigos, atualmente presidida pelo sempre elegante Roberto Suga, instituição que também comemora três décadas de existência.
Relembrando o passado, é bem verdade que os colecionadores das edições anteriores estavam sempre trajados com roupas de época, esse é um costume e faz parte da tradição dos grandes concursos pelo mundo. Assim acontece em Pebble Beach e Amelia Island nos Estados Unidos e em Villa D´Este, na Itália. Na edição paulistana deste ano — eu, por exemplo — lá estava com uma de minhas camisetas brancas e peço desculpas por estar “desajambrado”, como diria minha avó. Mas é que como não estava representando carro algum, de época alguma, achei por bem me dar o direito de ser neutro.
Quem estava a caráter eram os avaliadores, três distintos senhores devidamente trajados e vindos dos Estados Unidos, Argentina e França, neste país onde se encontra a sede da FIVA. A entidade é sediada do prédio da FIA (Fédération Internationale de L’Automobile), em Paris e que tem como meta promover a cultura do antigomobilismo no mundo. Este ano foi conseguido o reconhecimento da Unesco (United Nations Educational,Scientific and Cultural Organization) de que o automóvel antigo é uma forma de cultura, já que a preservação dos automóveis serve às gerações futuras como elemento histórico de pesquisa e conhecimento a respeito das gerações passadas.
Mais um feito com chancela e mérito da FIVA: o de lutar e conseguir autorização para que carros históricos e devidamente certificados possam rodar nos Centros de cidades europeias onde o trânsito é proibido para máquinas com motores a combustão. No centro de Londres, carros feitos antes de 2006 não podiam rodar; no centro histórico de Lisboa e Porto nenhum veículo podia rodar e em Paris se a data de fabricação fosse igual ou anterior a 1996, nem pensar em passear com a Torre Eiffel de fundo. A instituição internacional conseguiu convencer os governos de que “carro antigo não é carro velho”, e acabou que o trânsito aos automóveis devidamente certificados foi liberado na área central de todas essas cidades.
Trazendo, num paralelo nacional, em cidades tornando-se cada vez mais proibitivas ao ir e vir dos automóveis, a provável forma de veículos mais antigos rodar talvez seja a Certificação, seja ela a atual placa preta ou uma forma diferente inventada no futuro. Mas provavelmente a única forma de sairmos dessa sinuca de bico que estão nos armando para os próximos anos seja a de nos unirmos com toda a elegância, para que nossos automóveis tenham dos governantes o reconhecimento que a Unesco já nos confere.
Como admirador de máquinas históricas — e nada elegante que sou — espero que esta volta seja o embrião de muitos outros Concursos de Elegância, e que os colecionadores, entusiastas, admiradores e antigomobilistas descubram que elegante de verdade é se unir, sem preconceitos, sem remoer o passado, apenas relembrando o que serve de ensinamento para acertar no futuro. Cabe a nós nos unirmos, estejamos de terno ou de camiseta.
Portuga Tavares
São Paulo