Globalização tem disso. Podemos saber com muita facilidade e rapidez como se faz nos outros países qualquer coisa e a partir daí seguir os melhores exemplos, corrigir aquilo que não deu certo lá fora e implementar as melhores práticas. Tudo isto na teoria, é claro, pois como já escrevi por aqui as pessoas escolhem não se informar quando não querem. Ou pinçar apenas aquilo que lhes convém e apertar as teorias às suas próprias convicções.
Com a internet é tão fácil que chego a passar raiva quando vejo bobagens nos jornais ou nas redes sociais por falta de uso de arquivos e pesquisa. Lembro quando comecei na profissão e trabalhava em jornal impresso. Os coitados dos correspondentes a toda hora recebiam aquelas temíveis pautas: “E aí, como é que é?”. Isso acontecia toda vez que havia alguma novidade por estas bandas. Podia ser uma lei, sei lá, desarmamento. Como é o porte de armas nos outros países? Ou o dia sem carro — tem disso nos outros países? — e por aí vai. Era indefectível. Hoje nem precisa tanto assim do correspondente. Basta o Google e o jornalista que melhore as informações e consiga os exemplos de carne e osso para as entrevistas ou as aspas.
Ainda assim, confesso que me surpreendi com alguns dados que achei estes dias. Estou trabalhando num texto maior atendendo a um pedido de um leitor, mas a pesquisa é árdua e ainda levarei um tempinho. Então, centrarei foco em algo que me chamou a atenção.
Fala-se muito aqui no Brasil sobre o Dia Sem Automóvel em Paris e a política de incentivo às bicicletas da prefeita daquela cidade. Mas, como tudo, tem sempre mais de um lado. Então resolvi ir direto à fonte — essa é uma das vantagens de falar francês. A outra é ser melhor tratada quando estou naquele país. Mas principalmente aumenta muito a quantidade de fontes na hora de pesquisar e me permite ir direto às fontes primárias.
Em primeiro lugar, fiquei realmente surpresa com a quantidade de críticas a essas duas medidas entre os franceses e, especialmente entre os parisienses quando lia os comentários em diversas publicações. Poderia resumir em algo assim como que a senhora Hidalgo (prefeita de Paris) governa apenas para os ciclistas. Como tudo, claro, tem quem apoie. Mas há muitos, muitos, que discordam veementemente.
Em segundo lugar, ao fazer as contas parece-me (a ênclise da semana) que não é o paraíso que alguns ativistas tupiniquins querem nos fazer crer que é.
Como na França são necessários dois anos para compilar os dados, os mais recentes foram divulgados em janeiro de 2017 mas referem-se a 2014. Estes foram publicados na imprensa em geral, mas os quadros do Le Figaro são mais fáceis de acompanhar. Então vamos lá. A taxa de crescimento demográfico do país é de 0,5% anual, em média, desde 2009. Paris, ao contrário, viu sua população diminuir nesse período ainda que pouco, em 13.660 habitantes, o que significa menos 0,1% de habitantes ao ano. No entanto, desde 2010 a taxa de motorização da região metropolitana da cidade (Île-de-France) subiu ligeiramente – exatos 0,6%.
Apesar de uma diferença de um ano, dá para dizer que tanto a população quanto a taxa de motorização estão estáveis, certo? A pergunta óbvia então é: adiantaram as medidas de restrição ao uso do carro adotadas nos últimos anos? Baseada nestes dois índices diria que não, pois temos um pouco menos de pessoas e um pouco mais de carros por pessoa. Desnecessário dizer que Paris tem uma das melhores redes de transporte público do mundo, com seus 220 quilômetros de metrô, uma eficiente rede de bondes e ônibus urbanos, 23.000 bicicletas para aluguel (Vélib, e a primeira meia hora é gr[atis) — entre outras medidas.
Faço aqui uma ressalva com as enquetes feitas no Brasil. Normalmente a pergunta feita é: você deixaria seu carro em casa e usaria o transporte coletivo para ir ao trabalho? Só que nunca sabemos se a pessoa entrevistada tem realmente um carro para poder fazer a comparação de como seria sua vida com esse conforto. Mas, vá lá, vamos supor que sim. Geralmente a resposta é que sim, se houvesse transporte coletivo que atendesse à pessoa em questão.
E aí é que eu sinto falta dos meus tempos de repórter de rua. Minha pergunta seguinte seria: então tá, quais são as linhas de ônibus/metrô que passam na sua casa e no seu trabalho? Mas, curiosa como sou, ia querer o número e nome da linha. Aposto que não fazem a menor ideia porque nunca pesquisaram. A resposta dada é essa apenas porque é isso que se espera. Afinal, na teoria, quem não quer ficar bem na televisão e posar de protetor do meio ambiente, engajado socialmente, etc, etc.. Afinal, a patrulha dos ativistas de várias coisas é cruel. Hoje é muito difícil defender pontos de vista que não são os que eles defendem.
Qual o problema disto? O resultado da enquete é totalmente distorcido, pois conclui-se que se houver mais linhas de metrô ou de ônibus as pessoas deixarão o carro em casa e usarão o transporte coletivo. Será? Pelos números que vi de Paris e que tenho certeza seriam apurados em quase todas as cidades do Brasil diria que não. Novamente, acho que uma pergunta malfeita e a uma amostra de pública malselecionada leva a conclusões erradas e, por consequência medidas adotadas também erradas.
Interessante é que a própria Prefeitura fez um levantamento sobre os hábitos dos parisienses que acabam com vários mitos que os próprios franceses tinham a respeito deste tema. Divulgada em setembro deste ano, a pesquisa tem vários números que chamam a atenção.
– 80% dos veículos transportam uma única pessoa. Logo, a história de carona solidária e outras coisas parece que não tem muita adesão por lá também.
– mais da metade dos carros rodam exclusivamente dentro da cidade. Ou seja, cai por terra o mito de que as pessoas usam o carro porque moram longe. Usam porque querem usar, mesmo.
– 80% dos carros que circulam dentro da cidade são de particulares. Apenas 20% são de profissionais, aqueles que precisam do veículo para carregar material, por exemplo. Dá para supor que o parisiense realmente é um autoentusiasta, não?
– 42% dos deslocamentos feitos de carro ou moto são de menos de 10 quilômetros e 12% menos de 5 quilômetros.
– 65% dos motoristas de carros e de duas rodas motorizados disseram que preferem o carro porque ele é mais rápido e 25% porque é mais confortável. Apenas 22% reconheceram que realmente precisam do carro para seus deslocamentos diários. Ou seja, alegar que o transporte coletivo é mais rápido do que o individual, ainda que numa cidade onde ele é extremamente eficiente, ou não é verdade ou não é percebido pelos usuários — mas supor que todos eles não saibam fazer conta me parece muito idiota.
Se 65% dizem que chegam mais rápido ao trabalho ou a suas casas, acredito que a maioria realmente leve menos tempo. Não pode ser que todos eles se confundam ao olhar um relógio, não? Já a percepção de conforto é realmente subjetiva, mas 25% deles disseram que preferem o próprio veículo. E, novamente, isso numa cidade na qual o transporte coletivo é todo interligado e não há necessidade de se andar muito para fazer a conexão entre uma linha de metrô e outra ou entre o metrô e o trem ou metrô e ônibus.
Ainda assim, há números que muito provavelmente não se repetiriam na maioria das cidades do Brasil — São Paulo, Rio e Brasília com certeza não. Segundo dados que achei do início do ano também no Le Figaro, entre os habitantes da Île-de-France, a região metropolitana de Paris, a caminhada é o método mais utilizada para os deslocamentos e respondia em 2010 por 39% do total — não encontrei números mais recentes. Em média, é incrível, mas o deslocamento é de somente 430 metros. Juro. Conferi várias vezes e confesso que fiquei com uma certa inveja. Se eu andar essa distância acho que não chego em nenhum lugar além do posto de gasolina e a padaria… Em Brasília acho que isso nem é suficiente para atravessar o Eixo Monumental!
Mais ainda: 52% andam menos de 1 quilômetro a pé por dia e 25% andam mais de 2 quilômetros por dia a pé. Certamente, um privilégio morar tão perto do trabalho e do local de compras, mas uma realidade muito, muito longe da brasileira.
E se bem que os deslocamentos em bicicleta dobraram entre 2001 e 2010 eles respondem por somente 1,6% das viagens dos moradores da Île-de-France. Me conta de novo aquela história de que Paris é ideal para ciclistas porque é plana? Porque é fácil andar de bicicleta? Porque a bicicleta é ótima para percursos curtos? Ainda assim, parece que pouca gente se empolga com as duas rodas. E enquanto um lar francês tem em média 1,5 carro apesar de todos os entraves, um lar dentro da Île-de-France tem 1,1 carro — em Paris como um todo 36,8% dos lares tem um carro (números do Insee de 2014, mas publicados em junho de 2017, só para bagunçar meus dados) e na Île-de-France chega aos 66,7%. E não me digam que a França é um país que venere os carros especialmente. Ainda assim, Paris está atrás de porcentagens como as da Nouvelle-Aquitaine (86,6% dos lares tem carro), Córsega (86,3%) ou a Bretanha (87%). E alguém duvida que estamos falando de um país de Primeiro Mundo?
E tem mais. Quanto mais o cidadão se afasta de Paris, mais o morador da região metropolitana utiliza exclusivamente seu carro e substitui os outros modais. Mas de 50% dos moradores da Île-de-France se deslocam apenas de carro, ante 9% de Paris.
O que podemos concluir disto? Primeiro, fazer pesquisas com as perguntas corretas e para o público corretamente selecionado — só assim poderão ser tomadas as melhores decisões. Segundo, não é impondo restrições a um modal que se incentivam outros. Terceiro, não é apenas implementando outros modais que o ser humano deixa de lado seu carro. Quarto, se vamos copiar outros países, vejamos o todo e não apenas uma parte.
Mudando de assunto: Não resisti a esta notícia. Imaginem se a moda pega por estas paragens… Uma senhora de 53 anos foi presa na Flórida por cavalgar bêbada numa estrada. O exame de sangue revelou um nível de álcool 0,161, quando o limite é 0,08. Para o xerife Grady Judd, “a senhora Byrne não pôs apenas sua vida e a do cavalo em perigo mas também a de quem passasse pela estrada, que é muito movimentada”. Byrne foi indiciada por dirigir sob influência e negligência com animais.
NG