Por Portuga Tavares
Estamos chegando àquela época do ano de desejar “um bom ano” e estabelecer metas para o Ano Novo. Então, antes de tudo começo desejando que 2018 seja um ano de autoentusiasmo e que os automóveis antigos não estejam nessas leis absurdas que insistem em tornar dirigir algo proibitivo. Então, penso que seja o momento de todos nos unirmos e esquecer as diferenças. Recordar é a melhor forma de nos convidar para uma nova reflexão, portanto vamos relembrar o capítulo dos automóveis nacionais saindo dos ostracismo e tornando-se itens de coleção.
No início dos anos 1990 o antigomobilismo estava praticamente estagnado em nosso país, os últimos grandes e memoráveis eventos haviam-se realizado no final da década anterior e a economia estava descontrolada, com juros galopantes. De manhã um café custava x, no almoço o mesmo café custava 2x e ao final do dia tomar o cafezinho já ficava em torno de 3x. Meu pai tinha um bar em São Paulo, no bairro de Santo Amaro, e uma das minhas funções era remarcar preços, cabia a mim apagar da lousa o preço velho e colocar o novo.
Naqueles tempos, andar de Galaxie, Maverick e Dodge era um luxo impensável, ninguém saberia quanto seria o preço da gasolina nos próximos dias e ninguém queria voltar tão cedo aos postos que nos finais de semana e feriados os ficavam fechados.
Nesse cenário os automóveis grandes e gastadores desvalorizaram em proporções maiores que a inflação. Todos queriam se desfazer desses veículos, mas vender era tarefa praticamente impossível, e esses carros acabavam abandonados nas ruas. O mesmo aconteceu com automóveis que exigiam conhecimento mecânico mais refinado, como, por exemplo, o Alfa Romeo 2300.
A importação de peças era impossível, as oficinas investiam em ferramentas comuns à maioria dos automóveis em circulação e esses carros começaram a ser taxados — sem qualquer parâmetro — como “ruins”. Era um momento de grande dificuldade, então os mecânicos que se dispunham a enfrentar, aprender e entender esses automóveis, ganharam status, e os clubes foram surgindo.
Os beberrões V-8 descansavam abandonados em frente às casas, com pneus murchos, cheios de folhas das árvores, com seus donos esperançosos de que os carros fossem rebocados. Meu passatempo era ir de bicicleta mapeando as casas que tivessem esse tipo de carro, gostava de admirar os detalhes de cada um. Aos pouco percebia a evolução e posicionamento dos frisos e emblemas, das texturas de vinil e tapeçaria, além das modificações durante a trajetória dos carros. Notei que alguns poucos abonados usavam esse tipo de carro no dia a dia, fosse por gostarem de andar em carros diferentes do comum ou porque enxergavam nesse tipo de carro vantagem ficarem longe do olhar comum.
Mas fato é que com a liberação das importações no final de 1991 até esse tipo de motorista passou a olhar para os novos, exclusivos, melhores e cheios do status de carro importado. Afinal de contas estava se iniciando uma fase de carros verdadeiramente novos e exclusivos, com a vantagem de oferecer melhorias tecnológicas com décadas de evolução. Nesse movimento os “fora de série”, que sempre foram a alternativa aos carros comuns, também caíram da noite para o dia do patamar de desejados.
Em julho de 1994 chega o Plano Real, com uma moeda forte e estável com o dólar, e com esse novo panorama econômico os grandes e luxuosos sedãs alemães ganharam as ruas e garagens, conquistando as últimas vagas dos V-8 brasileiros que ainda resistiam em funcionamento pleno. Começaram a aparecer nos anúncios de jornais e revistas verdadeiras joias preservadas com preços convidativos. Nessa época eu era um garoto que, de repente, viu os automóveis que sempre sonhou em ter a preços muito mais atraentes que os dos populares que o povo passou a comprar.
Os que sonhavam com um “antigo nacional” saíram quebrando o cofrinho e, juntado as moedas, vieram outros tantos que passaram a comprar esses carros e os colocar para andar. Todo garoto sem dinheiro e que gastou tudo na compra de um veículo velho, conheceu as manutenções que um carro dá e, assim, nasceu a cultura de aprender a mexer para os manter rodando. E também foram surgindo os grupos.
O incrível é que nessa mesma época os encontros de carros antigos foram ressurgindo, tendo como maior point na cidade de São Paulo o estádio do Pacaembu, cuja área de estacionamento ficava lotada nas noites de quinta-feira. Donos de carros e vendedores de peças formavam um ambiente bom para o bate-papo e o aprendizado sobre carros. Enquanto uns ficavam só conversando, outros ficavam só caçando peças. Os dois perfis sempre foram interessantes devido à mistura entre o ficar conhecido por falar de tudo com todos e o ficar conhecido por saber a serventia e aplicação de cada detalhe de um automóvel.
Os encontros de carros antigos foram aumentando pelo país e ganharam corpo, evoluíram de encontros para eventos, esses duravam mais do que algumas horas, passaram a ter dois ou três dias entre a abertura e o encerramento das atividades.Isso transformou o hábito de ter “carro velho” em “cultura do carro antigo”.
Nesse crescimento os interesses foram se unindo e os clubes, surgindo. Como todo grupo que cresce, vêm os assuntos onde todos concordam e aqueles onde há divergências de opinião. Com o aumento dos grupos são naturais as divisões e, por consequência, o surgimento de novos grupos. Isso é benéfico, saudável e democrático.
Atualmente temos um panorama que — mais uma vez — reflete a nossa sociedade, alguns trabalhando e fazendo e outros tantos reclamando e diminuindo os que fazem. Como dizem os que trabalham pelo carro antigo, “organizar evento é como fazer uma festa de casamento, você faz seu melhor, a maioria acha ótimo, mas sempre tem uma pessoa que sai reclamando”. Esses reclamadores de plantão ganham o nome de “Zé Gralha”, normalmente nunca organizaram um encontro, raramente têm razão, e são sedentos por atenção — para virar o foco das atenções vale tudo: reclamar, xingar, gritar…
Agora estamos nos aproximando do final da segunda década do século 21, quando o automóvel tem se tornado um vilão aos olhos dos ecochatos de plantão. Em vez de criarem condições de transporte público eficiente e de boa qualidade, os pseudoadministradores pretendem transformar a vida dos motoristas num inferno. Se a vida do motorista comum tem sido prejudicada pela intolerância dos governantes, os donos de carros antigos tendem a sofrer ainda mais.
Não faz muito tempo a cidade de São Paulo foi assolada por uma inspeção ambiental veicular anual que media a emissão de gases pelo escapamento usando como base parâmetros que até hoje ninguém que entende de automóveis conseguiu entender: os inspetores queriam que carros antigos emitissem igual aos carros mais novos.
Agora para 2019 um projeto de lei pretende restabelecer a inspeção, mais um motivo para os donos de carros antigos se unirem e lutarem por direitos em comum. Temos o ano inteiro de 2018 para nos unir, esquecer as diferenças e mostrar que carro antigo é cultura e essa história merece e tem que ser preservada.
Meu desejo é que cada vez mais o povo seja menos “Zé Gralha” e mais autoentusiasta.
PT