As instalações do Design na Ala 21 eram temporárias. Toda a Engenharia tinha finalmente saído da fábrica do Ipiranga, onde era a Vemag, para a Via Anchieta. As obras da Ala 17, onde até hoje está o complexo da Engenharia da Volkswagen do Brasil, já estavam em andamento, mas ainda faltavam muitos meses para a mudança definitiva.
A entrada de pedestres se dava pela av. Maria Servidei Demarchi e tínhamos que andar um bom pedaço até a entrada da Engenharia, Estilo e sala de apresentações. A área técnica estava ali, toda apertadinha, inclusive o Protótipo, ocupando um lado a imensa ala.
Passando pela recepção e a sala do sr. Guenter Hix havia as salas dos supervisores de design na época, o Márcio Piancastelli, modelação, Ostilio Covella, e a Engenharia avançada, sr. Toyama. A entrada para o estúdio se dava através da área de apresentação, onde se podia estacionar aproximadamente 10 carros com bom espaço entre eles.
O estúdio era simplesmente uma grande sala, sem divisões, onde ficavam os designers que eram cinco ou seis, entre eles o Barone, Feriotti, Marco Bodra, Charlie.
Estranhei a falta de desenhos na parede, e minha primeira providência foi posicionar um board atrás da minha mesa, mesmo sob os olhares assombrados dos colegas.
No entanto, o Hix sempre me apoiou, e sabia que eu tinha muita coisa positiva para oferecer à área. Lembro-me que logo após minha chegada o Hix veio à minha mesa pedir um desenho rápido, uma ilustração de uma proposta que estava rolando dentro da sala do PSK, que é a reunião técnica mais importante da companhia. Ele me deu a lista de itens propostos, e eu a ilustrei com uma vista 3/4 dianteira e um detalhe anexo do interior. O que chocou a todos foi a rapidez e o tamanho. Era um sketch de 2 metros de largura que todos na mesa de reuniões certamente iam poder ver sentados em seus lugares.
Este desenho chamou a atenção do sr. Schmidt, que pediu ao sr. Hix que eu comparecesse à sua sala, onde tivemos o primeiro contato profissional, num papo rápido e até que simpático.
Este homem foi o responsável pela construção e continuidade da Engenharia de veículos no Brasil. Graças a ele recebemos maciços investimentos, equipamentos, pistas de prova e, o mais importante, a chance de muitos técnicos brasileiros realmente participarem ativamente de projetos internacionais de nível máximo em qualidade e sofisticação.
Este conhecimento (know-how) é de valor inestimável, não só para o indivíduo, mas a também para a nação brasileira, que talvez um dia retorne a competir no campo da tecnologia de ponta e não seja só um fornecedor de matérias-primas preciosas entregues a preço de banana, cujo lucro se perde nos meandros de um governo corrupto.
Do ponto de vista técnico, o estúdio funcionava bem, mas a Volkswagen tinha uma maneira de trabalhar muito diversa da Chrysler. As técnicas americanas eram mais aprimoradas, e o trabalho do estilista era mais valorizado.
Outra diferença básica e muito importante é a posição hierárquica do Designer-chefe.
No grupo VW o Design está subordinado à Engenharia e o chefe da Engenharia se reporta no board ao presidente. Portanto, o Designer-chefe na Volkswagen pode chegar até a função de diretor, e o chefe de engenharia, a vice-presidente.
Os americanos são diferentes. O Designer-chefe se reporta diretamente ao presidente, portanto é um vice-presidente.
A liderança pela área técnica é a própria essência do grupo Volkswagen, já que a semente deste hoje incrível grupo de fabricantes de automóveis foi um engenheiro, Ferdinand Porsche, que foi continuado pelo filho Ferry e, nas últimas décadas, por Ferdinand Piëch, neto de Ferdinand Porsche e sobrinho de Ferry.
Nesta época, o trabalho principal voltado ao mercado eram os derivados do primeiro Gol, lançado em março de 1980. Dele saíram o Voyage, a Parati e a Saveiro. Um derivado, mais compacto que o próprio Gol, o BY, também foi estudado, mas nunca decolou.
Eu não participei no desenho desta geração, que já estava definida quando cheguei à área de Estilo, mas trabalhei em várias séries especiais e na criação do GT, GTS e GTi, Voyage couro, e outras.
Um dos momentos críticos da minha carreira aconteceu nesta época. Talvez o fator mais determinante para a minha ascensão dentro da companhia. Tínhamos que finalizar uma Saveiro show-car com uma pintura sofisticada que ocuparia toda a lateral do carro.
Tínhamos que entregar o carro para transporte para o Salão do Automóvel às 18h00.
Era um sábado e chegamos no Protótipo as 7h00 para fitar e preparar a superfície do veículo. Eu e o Barone fitamos o desenho, protegemos as partes que não seriam atingidas e quebramos a superfície que receberia uma passagem de azul para laranja em quatro tons de tinta.
Ficamos esperando o pintor até o momento em que cheguei à conclusão que se ele não
aparecesse o carro não ficaria pronto a tempo para entrar no Salão. Foi então que tomei a arriscada decisão de pintar eu mesmo o carro. Eu me sentia capaz, e queria resolver o assunto. Os chefes não tinham aparecido…
Então preparei os reservatórios, o Gérson no apoio para passar os quatro canecos do revólver de pintura, posicionei a máscara e comecei a pintura. O ambiente logo foi tomado pela névoa de tinta e todos os mecânicos e técnicos pararam para olhar o desastre. Neste instante, entra o sr. Schmidt — sim, o grande chefe, fazendo uma visita-surpresa para ver se estava tudo bem com as atrações do Salão do Automóvel.
Pois ele me pegou naquela situação, todos saíram correndo para seus lugares, outros chefes também chegaram ao local, mas eu, focado no trabalho, nem dei conta do que se passou.
Quando terminei, o Gérson me contou do flagrante que o chefe supremo tinha me dado, mas eu só queria sair dali e almoçar na Demarchi, tomar uns aperitivos para comemorar o trabalho, que ficou perfeito e dentro do prazo.
Na segunda-feira seguinte o clima estava pesado quando cheguei ao estúdio, e o Hix veio me avisar que o chefe “queria falar comigo”!
Sentei-me sozinho com ele em sua sala e ele me perguntou se eu era pintor de automóveis. Eu disse que não.
— Então por que o sr. se arriscou fazendo um serviço que não era seu?
— Expliquei o atraso do pintor e minha decisão de assumir os riscos e entregar o carro na hora certa.
A resposta do sr. Schmidt foi:
— Parabéns. Precisamos de pessoas que tenham INICIATIVA como você.
A partir daí, a coisa mudou para mim. O chefão passava por cima de toda hierarquia e me pedia coisas diretamente, o que me deixava às vezes em situação embaraçosa com relação aos meus colegas.
Logo depois ele me convidou para minha primeira viagem internacional, participar da turma de apoio que iria fazer o Clinic Test do Voyage Fox, o primeiro carro produzido e vendido para os Estados Unidos e Canadá, aliás com grande sucesso, devido seu tamanho compacto e principalmente por ter salvo a vida de alguns jovens americanos que se envolveram em graves acidentes de trânsito.
Eu e o Covella, pau p’ra toda obra em termos de modelação, descemos em Phoenix, Arizona, num calor infernal e com um conhecimento bastante restrito da língua inglesa.
Foi a primeira vez que eu vi alguém usar o “dinoc”, um filme pintado na cor escolhida e que se molda perfeitamente ‘a superfície do carro, aplicado com água sobre a superfície do veículo. Isto porque o Clinic Test consiste em comparar vários carros da mesma categoria, com a mesma cor, e o carro-foco, no caso do Voyage, deveria estar sem nenhuma identificação de marca visível.
Fiquei impressionado com tudo que vi nos EUA. Organização, instalações, segurança.
Os chefes chegaram na tarde que antecedia o início das atividades onde 500 pessoas participariam das análises. No fim da viagem, fomos convidados para jantar com o presidente da VW do Brasil, sr. Wolfgang Sauer, um dos mais importantes e o mais duradouro dos presidentes da VWB.
A primeira viagem foi magnífica, um grande feito para um moleque da Vila Paula.
Mal sabia eu, que nas durante as próximas décadas, eu seria um dos mais constantes viajantes aéreos do Brasil, com mais de um ano e meio de permanência na cabine de um avião e cartão HON Black 3 estrelas da Lufthansa.
Quando esta onda começou eu não sentava mais à minha mesa, estava sempre circulando pelo estúdio, ou Protótipo, ou em grupos de trabalhos, sempre gerando propostas e me metendo na parte técnica, enfim, num ritmo muito forte, que nunca mais parou.
A vida dentro de uma organização deste porte, principalmente se você está perto do centro das decisões, é alucinante. Trabalha-se uma média de 10 a 12 horas por dia, não tem nem sábado, nem feriado, nem fim de semana, e nem a família, que mantém a prioridade, mas com muitas ausências por longos períodos.
Não vi meus filhos crescerem, e isso é irreparável.
Na busca incessante para nos mantermos firmes no mercado precisávamos de novos produtos, mas o Brasil sempre foi um campo minado para “grandes investimentos”. Não é de hoje que o país cobra impostos proibitivos, não tem estrutura e consequentemente, um mercado “pequeno”.
Os investimentos necessários para se desenvolver um novo automóvel são astronômicos, e como tudo é business, tem que haver retorno financeiro competitivo com o investimento bancário. Se a companhia não tiver o lucro necessário ela não consegue sobreviver. E este é o grande drama da indústria automobilística.
Já tínhamos desenhadas algumas ideias para uma nova interpretação do Gol e chegamos até a fazer algumas maquetes, mas aí veio a primeira chance de trabalhar na casa-mãe, em Wolfsburg.
A Alemanha estava trabalhando no substituto do Polo, e nós, claro, queríamos o Polo, mas também precisávamos de um sedã, com porta-malas maior, já que no Brasil esta classe de veículo, que na Alemanha é basicamente para duas pessoas e segundo carro, no Brasil tinha que acomodar toda família e oferecer espaço suficiente para bagagem, pois se trata do carro principal e muitos vezes o único na casa.
Então, depois de muita discussão com os representantes das áreas na Alemanha, o sr. Philipp Schmidt, apoiado por todo o board da VW, decidiu que uma equipe seria montada para que o Brasil participasse do desenvolvimento de um derivado do modelo que estava nascendo na Alemanha, e aí veio o convite para minha primeira viagem para lá. As viagens eram na condição de”viajante”, o que implica em ficar por lá até três meses, e por este motivo não era permitido o acompanhamento da família, o que aconteceu comigo muitas vezes.
Mas para nós este nunca foi um impeditivo. Minha mulher sempre foi “parceira” e só me apoiava, pegando para ela toda a responsabilidade de criar os filhos na minha ausência.
À primeira vista, pode parecer bacana, ficar solteiro no exterior, com tudo pago pela companhia, mas a realidade é que estes períodos foram extremamente solitários, já que colegas de trabalho não são parentes nem amigos, não estão com você porque você os ama, mas para cumprir um trabalho. Não demorou muito para que eu me cansasse de andar em bandos, e comecei a me isolar, procurando criar uma espécie de rotina íntima. Mesmo assim conseguíamos viver em paz, e fomos sempre reconhecidos por um grupo capaz, alegre, e exótico.
No Brasil, mudança do estúdio para a ala 21 aconteceu neste período em que eu estava fora.
Mas antes de conhecer o novo estúdio da Anchieta, acabei conhecendo o estúdio-mãe, o Volkswagen Design Center, em Wolfsburg, que acabou sendo a segunda cidade onde
passei mais tempo de minha vida fora de São Paulo.
LV