Muitos imaginam que a vida de um designer é de glamour, mas posso garantir, por experiência própria, que a maior parte do tempo ela não é nada glamourosa.
Na foto de abertura está meu “office” no estúdio da Ghia Design, um canto de uma mesa de layouts. Mas este era só a cadeira onde eu ia lamber meus cortes e hematomas da briga que se desenrolava ao redor do modelo.
É no modelo que o bicho pega!
LV
Turim sempre foi o centro automobilístico da Itália, principalmente pela presença maciça da Fiat, que dominava um lado todo da cidade, mas também pela presença de grandes estúdios que prestavam serviço completo de design de automóveis, desde os sketches até o protótipo construído, testado e documentado.
Giorgetto Giugiaro, o homem por trás da Italdesign, o maior de todos (na minha opinião) porque definiu o automóvel moderno, é o autor do primeiro Golf, a base do que é até hoje, uma carroceria moderna, feita para alta produção, e melhorada pelos alemães até o estado de arte.
Tive a honra de estar com ele algumas vezes, inclusive tivemos um belíssimo passeio de dia inteiro em São Paulo, num domingo de sol, cidade que ele adorou. Comemos no Mercado Municipal de São Paulo e visitamos o Masp, bem como o Pacaembu e o Museu do Futebol.
Alguns anos atrás, na última vez que estive trabalhando no seu estúdio, ele que já está beirando os 80 anos de idade, o vi chegando ao seu maravilhoso estúdio em Turim, as 07h30 da manhã, de bicicleta, levando na garupa um punhado de cogumelos que ele colheu no jardim de sua casa para o café da manhã no estúdio.
Na entrada principal para seu escritório ele tem um coleção de aproximadamente 20 modelos, show cars, algumas de suas melhores criações em um enorme showroom.
Seu escritório é uma ampla sala onde de um lado está a mesa de escritório onde ele pouco para, e do outro sua prancheta ajustável, com pés de ferro fundido e tecnígrafo. Mas, as peças mais impressionantes são duas mapotecas, não pelo design das peças, mas pelo seu conteúdo.
E’ ali onde ele guarda centenas de “blue prints”, feitos por ele com grafite sobre vegetal, em escala 1:4, desenhos em quatro vistas da maioria dos carros que ele projetou. Não sou capaz de imaginar o quanto vai valer cada um daqueles desenhos daqui a 20 anos.
Na entrada do estúdio, que é em um prédio separado, sempre tem algum de seu carros lendários.
Na minha última visita havia na recepção um Chevrolet Corvair Testudo 63, desenhado por ele quando trabalhava na Bertone. O estúdio atual foi desenhado por ele, e tem um prédio dedicado somente a criação, uma área de modelação imensa, com mais de 10 milling machines “fullsize”, somente para peças de exterior, e um outro tanto para o interior, com milling machines pequenas, e impressoras digitais.
A área de apresentação é como um grande teatro, com uma tela imensa onde se pode projetar três propostas de side views escala 1:1 simultaneamente.
Do outro lado do complexo está a Engenharia com mais de 1.000 funcionários que hoje presta serviço de suporte à Engenharia da VWAG, responsáveis por projetos completos de carros de produção, prestando também serviços para outras marcas do grupo VW. Este estúdio é capaz de construir show cars em apenas três meses, na realidade, protótipos em chapa 100% funcionais.
O processo é muito interessante, pois ele uniu a experiência de velhos projetistas de prancheta com os jovens do 3D.
Existe uma parte do estúdio de Design onde estão três pranchetas, e desenhistas seniores interpretam as quatro vistas da mesma maneira como faziam 30 anos atrás, com lapiseira de grafite H, ponta bem fina, sobre papel vegetal de alta gramatura em pranchetas móveis, tecnígrafo e curvas francesas.
Com o package por baixo de tudo, eles interpretam o sketch escolhido, tentando respeitar o máximo possível os limites técnicos. Estas linhas são devidamente posicionadas no espaço virtual por modeladores 3D, normalmente usando o software “Alias”, conforme o desenho ortogonal por eles gerados, e a partir delas os modeladores virtuais criam as superfícies principais, construindo um modelo virtual completo. Este desenho é a base para todo processo de desenvolvimento tanto por parte da Engenharia quanto pela produção, em que antes de existir um modelo físico já podem fazer análises estruturais, processos de montagem, critérios de qualidade e normas de construção.
Pininfarina e Bertone, são outras duas “Design Machines” que estão pela redondezas, sem mencionar as companhias de engenharia e construtores que dão suporte à indústria de grande porte.
O estúdio da Ghia Design
Ghia tem um nome muito forte, com grandes feitos na história automobilística. A Ford adquiriu o estúdio e o transformou em um Estúdio Avançado, fincando o segundo pé na história automobilística da Europa.
O presidente da Ghia naquela época era Fillipo Sapino, mas o chefe do estúdio, o criativo, era o escocês Ian Callum, que junto com seu irmão Moray acabaram também se envolvendo com nosso projeto, pois eles também geraram propostas para o futuro Logus.
O Ian Callum seria no futuro e até hoje o poderoso Designer-chefe da Jaguar, e sem querer jogar confete, tem feito um trabalho impecável para a marca. Seu irmão, chegou a vice-presidente de Design da Ford Motor Company.
Acabei entrando meio que na função de Cavalo de Troia. Os americanos queriam que o projeto fosse levado pelos designers da Ghia, mas o Winkler, meu chefe, não aceitou de maneira nenhuma, e acabei indo parar em Turim, a princípio como um intrometido.
Mas depois da pressão dos chefes de Wolfsburg acabaram cedendo, e fui designado junto com uma equipe de modeladores americanos, perto da aposentadoria em Detroit, com quem aprendi e me diverti muito.
Nossa parte do estúdio era improvisada, e consistia em uma ponte manual, uma sala grande com quatro mesas de layout que mais tarde foi preenchida por um time da Engenharia avançada da VW do Brasil.
O teto era de zinco e no verão de 40 graus o clay derretia e tinha muito pó no estúdio. Ainda não havia sido inventado o telefone celular, não tinha internet, e para enviar um fax para o Brasil era necessário a assinatura do Sapino, o presidente.
Por outro lado, dentro da área nova da Ghia as pontes já eram mecanizadas e os computadores já haviam chegado, sem contar que a sala era climatizada e muito bem organizada.
Ocupei um canto de uma das mesas enquanto a equipe não chegava, trabalhei com um modelador em uma maquete em escala 1:4, que foi a proposta do nosso grupo. Aprendi muito com o Winkler, e em uma noite de trabalho retrabalhamos quase todo meu modelo, com ele me explicando como se deve desenhar um Volkswagen.
Com ele também fui ao meu primeiro dos muitos salões internacionais do automóvel, naquele caso o de Genebra. A apresentação para selecionar o carro que seria trabalhado em 1:1, somente um modelo (o que seria impensável nos dias de hoje) consistia em três temas, sedãs, desenhados sobre a nova plataforma do Escort sedã do início dos anos 1990.
No dia da apresentação, o chefe de Design da Volkswagen da Alemanha, o sr. Sheaffer, junto com altos representantes do Board alemão, apareceram em peso, e foram decisivos na escolha do nosso tema, o que deixou os irmãos Callum muito bravos.
No fim, a política sempre prevalece.
Mas como profissionais de altíssima categoria, a escolha não afetou a colaboração dos dois irmãos, que nos deram suporte decente durante o ano que passamos por lá.
A vida em Turim era boa. Eu morava em um apartamento sozinho, pois como não sabíamos quanto tempo eu ficaria por lá, não tive o direito de levar minha família. Mas a Nanci passou um mês de férias comigo, o que aliviou a solidão.
Quando o Winkler vinha de São Paulo para os “reviews” fazíamos o que chamávamos de “Via Crucis”, sempre, claro, depois de um dia extenuante, com reuniões começando as 07h00 e se estendendo até às oito da noite.
Acontece que a avenida mais famosa em Turim é a Via Roma, oito quarteirões recheados de restaurantes, marcas famosas e bares onde tomávamos em cada um deles um conhaque, brandy ou vodka, acompanhado de petiscos deliciosos. Depois da “travessia” eu normalmente voltava para meu apartamento, mas o Winkler ia em frente, aproveitando a noite e se metendo em altas aventuras e confusões.
O posicionamento da cidade de Turim é muito interessante, pois se está a uma hora dos Alpes, a uma hora das praias, Gênova, Sanremo, Mônaco, Nice… Também tínhamos Milão, a cidade da moda, e o Lago Maggiore a uma hora e pouco de distância.
Na sexta eu já saía de “casa” com minha mochila, preparado para dois dias completos de expedições sempre por estradas secundárias num raio de até 500 quilômetros de Turim.
O time americano de modeladores parecia saído de um filme de Hollywood. Um modelador-chefe todo alinhado e com bigode de Salvador Dali, e mais dois modeladores, um deles o Jeff, um baixinho capaz de definir uma lateral completa em quatro horas de trabalho. Uma verdadeira máquina de esculpir clay, que no fim da jornada estava alguns centímetros mais alto de tanto clay sob os sapatos de segurança.
Com ele fomos também levar nosso modelo para o túnel de vento da Opel perto de Colônia, na Alemanha, com instalações modernas, ótimas.
Na primeira noite ele e o Winkler travaram uma verdadeira batalha para ver quem bebia mais Kölsch, um cerveja típica que é vendida em copos longos e finos, o que acelera a vontade de beber. Ninguém ganhou a batalha, pois perdemos a conta de quantas foram consumidas, mas os dois ganharam uma bela ressaca.
Quando o modelo estava já em fase de decisões finais, também trabalhamos diretamente com fornecedores, desenvolvendo painéis de instrumentos, laterais de portas, para-choques, que normalmente são peças grandes e fornecidas por companhias especializadas, aliviando o trabalho principal da Engenharia da fábrica e tornando o processo mais rápido. O trabalho principal está em desenvolver a carroceria junto com o powertrain, suspensões, e testes dos mais diversos.
Nestes projetos já iniciamos com a tecnologia digital, através de construção virtual de peças em computadores, mas tudo era experimental ainda e muitas vezes tivemos que pôr a mão na massa para compensar detalhes que não estavam perfeitos o suficiente.
Para controle de qualidade fizemos pela primeira vez um “Cubing”, um modelo-padrão de alta precisão, que deveria refletir a forma final da carroceria conforme a matemática. Depois deste ponto não se podia mais mudar 1 mm, porque assim que o modelo fosse aprovado por todas áreas da companhia (Engenharia completa, Qualidade, Produção e Marketing) começariam a ser “comidas” as dezenas de blocos de aço que se tornariam ferramentas de injeção, prensagem, estrudagem, fundição tecelagem, sistemas elétricos, linhas de robots seriam implementados, matéria-prima seria encomendada, milhares de toneladas…
Enfim, muito dinheiro estaria sendo investido. Por isso a procura de um processo robusto para garantir a qualidade do produto.
Estas situações de projeto elevam o nível do modelo, pois cada um quer ser mais precioso que o outro, e no final o modelo tem que impressionar positivamente os chefões e acionistas.
Foi um bela aventura, mas o trabalho pesado, vidas sem regras, e solidão, cobraram seu preço. Depois de nove meses tive um problema de estafa manifestado por dores abdominais. O médico receitou descanso, alimentação adequada e nenhum álcool.
Passei então a bola para o Barone, que vinha segurando todo pepino no Brasil, que tocou o Pointer até o fim. E assim Turim ficou para trás, para este projeto.
O lançamento do Pointer foi um dos últimos em grande estilo, feito em Puerto Rico com direito a hotel 5-estrelas, passeios de bugue pelas dunas e de barco pelo Caribe.
Os Logus e Pointer não duraram muito. Foram apenas quatro anos de produção, com problemas de qualidade nos veículos produzidos em São Bernardo do Campo na linha de montagem da Ford.
Mas não foi este o motivo para o fim da Autolatina, que contarei mais tarde.
LV