A segunda geração do Gol (“bolinha”) foi um ENORME desafio. A união com a Ford estava abalada e os produtos nascidos deste casamento não eram suficientes para manter a VW na liderança, pois o seu mais importante produto, o Gol geração 1 estava dando sinais de cansaço.
Precisávamos urgentemente reagir nesta categoria (A0) que era, e ainda é, a categoria mais vendida no Brasil.
Ao mesmo tempo, estávamos passando por transformações importantes na VWB. O sr. Philipp Schmidt, chefe da Engenharia, estava se aposentando e voltando para a Alemanha, e recebemos um novo chefe, o dr. Bernd Wiedemann, homem muito dinâmico, que vinha com carta branca dada pelo Board da Alemanha para desenvolver novos produtos.
O Winkler ainda continuaria como o Designer-chefe, pois tinha um contrato de até cinco anos. Graças a ele eu finalmente fui promovido como reconhecimento ao meu trabalho e liderança na época da Autolatina.
Meu caso foi excepcional, pois passei de Designer Sênior diretamente a gerente de Design. Normalmente o caminho seria primeiro me tornar supervisor, para depois de alguns anos pular para a gerência. Mas o Winkler aproveitou a nova estrutura para, com muita briga, pular a etapa do supervisor, sempre reconhecendo e afirmando para a área de RH que eu deveria ter recebido a supervisão do estúdio há muito tempo e que ele queria corrigir, com uma só tacada, esta situação.
Ele também teve importância vital em todos acontecimentos que levaram ao sucesso do projeto, além de ter sido uma fonte de conhecimento muito grande para mim, como construtor de automóveis.
Então começamos a trabalhar no que seria um dos carros de maior sucesso na história da VWB.
O grande desafio era desenvolver um Gol, totalmente novo, com melhorias em todos os aspectos do veículo. Precisávamos de um carro maior, para trazer mais conforto, segurança, performance e espaço de bagagens.
Portanto, o primeiro passo foi desenvolver um package completamente novo. Em relação ao Gol 1, o novo carro tinha as seguintes modificações:
• Motorista em uma posição mais alta, com melhor posicionamento ergonômico, melhor visão externa, passageiros traseiro melhor posicionados e com maior espaço para as pernas e cabeça. O novo carro deveria ser mais largo, melhorando a situação de três passageiros na traseira
• Aumentamos também o espaço para bagagens, e o tanque de combustível com 10 litros a mais, o que significa maior autonomia
• Corrigimos a polêmica coluna de direção, que no Gol 1 era levemente enviesada em direção ao centro do carro
• Melhor visibilidade e acesso aos controles do painel, incluindo, alavancas, freio de
estacionamento e alavanca de mudança de marchas
• Melhor acesso e saída do veículo, e com um novo sistema de guarnições que corrigiriam a entrada de pó na cabine
• Nova família de motores, câmbio e suspensão melhorada
• No item segurança também tivemos grandes avanços, com uma nova carroceria já construída levando os últimos conceitos estruturais para torná-la mais rígida, com menos torções, e com um cockpit seguro, mas com toda estrutura frontal deformável, de maneira a reduzir as forças de inércia em caso de batidas frontais
• Faróis e lanternas com melhor desempenho funcional, cintos de 3 pontos, melhor acústica, e menor sensibilidade a vibrações acusadas pelo rolamento do veículo e movimentação do conjunto motriz
• O design deveria ter o DNA Volkswagen, portanto o carro teve como referência de linguagem de design o Novo Golf G3 que estava também sendo desenvolvido na Alemanha
• No interior, usaríamos novos processo de fabricação para revestimentos e painel de instrumentos
• Os bancos foram completamente redesenhados, com novas estruturas, novas espumas, com forma bem mais ergonômica e materiais de revestimentos completamente novos
Claro que sempre tínhamos como referência a experiência alemã, graças ao acesso de
informações conseguidas pelo Winkler e pelo Wiedemann. Graças ao Winkler, todo o trabalho foi desenvolvido no Brasil, e a aprovação final do carro foi feita na Alemanha.
O estúdio do Brasil já tinha se atualizado, com pontes eletrônicas, e com um pequeno grupo que já começou a realizar trabalhos básicos de superfície matemática, usando o software ICEN Surf, um programa que havia sido idealizado pela VWAG mas que foi vendido e aprimorado pelos franceses.
Este ainda é o melhor programa para superfícies que chamamos de Classe A. Com várias ferramentas de verificação, o programa, que é bastante complexo, pode gerar superfícies geometricamente perfeitas.
Paralelamente, a Ford desenvolveu, por baixo do pano, uma proposta usando a mesma plataforma do Gol, que como eu disse acabou sendo um ponto de discórdia que levou à separação definitiva das marcas e o fim da Autolatina.
O modelo 1:1 em clay foi desenvolvido em uma pequena firma de design, a “Doall design”, liderada pelo Paulinho supervisor de Design da Ford e um designer da matriz europeia, que trouxe a nova direção de identidade da Ford mundial daquela época. O modelo, ficou bacana, mas o projeto nunca saiu disso.
De qualquer maneira, o mercado estava melhorando e cada marca queria morder o seu pedaço. Não fazia mais sentido dois grupos enormes como estes dividirem projetos, e com a abertura global as matrizes voltaram a investir e desenvolver novos projetos para a “região” da América do Sul.
Voltando ao Gol 2, estávamos com o modelo praticamente pronto para enviá-lo para a Alemanha para a aprovação final da matriz, quando o Dr. Wiedemann, que tinha chegado do Salão de Frankfurt, nos direcionou a usar um tema de frente baseado no Novo Golf que tinha acabado de ser lançado.
Estas mudanças de última hora sempre foram um tremendo transtorno, porque as datas das apresentações em Wolfsburg são programadas com meses de antecedência, e não se pode faltar a uma apresentação sem uma boa desculpa, como, por exemplo, “o avião que transportava o modelo caiu no oceano”.
Fora isso não tinha desculpa, significava que nós teríamos que redesenhar o modelo em situação de emergência, trabalhando dia e noite.
Mudar a frente do veículo parece fácil, e para o design até que não é tão difícil, pois estamos trabalhando com clay, que permite mudanças sem limite, mas todo trabalho de viabilidade técnica teria que ser refeito, e reprojetar grades, para-choque e especialmente faróis, dá muito trabalho, além de que eles são “long lead items”, significa, itens que têm um grande tempo de trabalho antes da manufatura.
As ferramentas que fabricam estes itens demoram aproximadamente 18 meses para ficarem a ponto de produzir as peças, e depois disso, vem a fase de testes finais, de longa duração, onde as peças são finalmente liberadas para a produção.
Um carro demora quatro anos — dois para ser criado e dois para ser produzido — e como se isso não bastasse, você tem que criar uma família de carros, com espaços de até quatro meses entre eles, com conteúdo pequeno, médio ou grande, e no caso do Gol 2 nós tínhamos um carro completamente novo, de onde foi derivado uma perua, a Parati; uma picape, a Saveiro; e um sedã, que foi desenvolvido pelo Design mas nunca chegou a nascer…(sobre essa passagem falarei mais tarde).
Voltando ao Gol, o modelo foi transportado para a Alemanha de avião e sem pintura, devido ao pouco tempo que restava até a apresentação ao Board alemão.
A pintura de um modelo de clay deve ser feita somente quando você está perto da sala de apresentação. O motivo é que com toda aquela massa, aplicada manualmente, e com todo aquele peso (2 t), se o modelo sofrer uma torção, ou uma batida brusca, ele pode rachar, e então você pode até fazer um remendo para a apresentação, mas o problema continuará para o resto da vida do modelo, pois não é possível resolver o problema na sua origem e nas partes mais profundas do modelo.
O modelo chegou rachado, pois o desembarque dentro da fábrica foi um desastre. Não havia um procedimento padrão para a chegada do modelo do aeroporto para a área de descarga, dentro da VWAG. A empilhadeira e seu operador eram incapacitados para lidar com material tão sensível, e sutileza não é o forte dos alemães que trabalham nesta área da fábrica, sem falar na neve que caia na hora do desembarque, que eu, impotente, acompanhei pessoalmente.
O problema básico deste modelo foi que a estrutura de aço que suportava toda espuma e clay do modelo não era suficiente rígida para o peso, e acabou cedendo, provocando uma rachadura na superfície. Mais tarde adotamos o mesmo projeto de estrutura desenvolvido pelo colegas alemães, que era construída com vigas de aço maciço, tipo perfil de trilho de trem. Para mim parecia um exagero, mas na prática só um perfil e trama como esta é forte suficiente para viagens de 14.000 quilômetros com vários procedimentos de carga e descarga feitos fora do nosso controle.
A variação de temperatura sempre foi um grande problema, pois saíamos com o modelo de um país tropical para um país onde o inverno demora sete meses e as temperaturas podem chegar facilmente aos 20 ºC negativos.
Os caminhões de transporte também devem ser especiais, com suspensão a ar, e temperatura controlada. O que não dá para resolver é o compartimento de cargas do avião, que voando a 11.000 metros de altitude pode chegar a temperaturas muitos graus abaixo de zero.
O vai e vem do transporte de modelos sempre foi um estresse extra e muito forte, porque tudo que você trabalhou por seis meses ou mais pode ir para o lixo se um acidente acontecer, sem falar no desembaraço nas fronteiras.
Por fim, terminamos os modelos no padrão requerido para a época, mais uma vez na firma Volke, onde ganhamos uma ponte de trabalho, e o auxílio de uma cabine de pintura com um excelente pintor.
O modelo ficou muito bom, e montamos uma apresentação padrão, com o carro atual da época, os desenhos de package, sketches, desenhos de corte com seções mostrando as várias soluções para pontos críticos, variações do tema e já mostrando o potencial da família com seus derivados, situação financeira do projeto, análise de todos concorrentes e cenário do mercado brasileiro.
A reunião no “Wallhalla”, ou “salão de decisões”, ficou ótima. Num certo momento, todos envolvidos no projeto “Novo Gol para o Brasil” saem da sala do PSK, uma sala imensa, com mais de 50 lugares distribuídos na imensa mesa central e nas cadeiras de segundo plano, que rodeiam completamente a sala de reuniões, se dirigem a pé, ao salão de apresentações.
Nesse breves momentos de mudanças de sala, muitas decisões ou jogadas políticas são feitas, pois os homens mais importantes do grupo estão por lá, atentos a todas oportunidades de resolverem algumas pendências mais complicadas.
Depois da apresentação, feita pelo Dr. Wiedemann com nosso suporte manuseando o modelo e imagens da apresentação, aconteceu uma coisa que eu só vi uma vez na minha vida profissional na VW: o projeto foi longamente aplaudido por todo o Board alemão, e nós , os brasileiros, ficamos ali boquiabertos e nos entreolhando sem acreditar no que estávamos presenciando.
A importância de aprovar um projeto deste porte vai muito além de uma vitória individual ou de um um grupo específico. Esta aprovação significa um aporte de dinheiro que pode chegar a números com 10 dígitos, isto é, acima de um bilhão de… dólares!
Além de todo investimento feito em ferramentas e projetos conjuntos com fornecedores do mundo inteiro, mas principalmente os brasileiros, novas instalações na fábrica e escritórios, contratação de pessoal novo e habilitado, novos empregos em todas áreas da companhia, investimentos dos fornecedores para atualização da tecnologia, que está sempre se transformando, e, indiretamente, benefícios para o município, estado, e cidadãos brasileiros. Não dá para imaginar o que seria do Brasil, principalmente São Paulo, se a indústria automobilística não tivesse se instalado por aqui.
Com certeza não seria o que é hoje.
LV