O Sr. Walter de Silva ingressou no grupo Volkswagen pela Seat. Há tempos que a VW procurava um Designer-chefe que pudesse trazer um espírito Mediterrâneo para a marca Seat.
Depois de algumas tentativas com alemães chefiando a marca, sem sucesso, o italiano Walter foi escolhido graças ao ótimo trabalho desenvolvido no grupo Fiat e especialmente na Alfa Romeo.
O Walter era um típico italiano, torcedor do Milan, e com uma bagagem enorme, tanto na área de Design quanto na política interna e na Arte.
Depois de mostrar um ótimo trabalho, construindo uma nova linguagem de Design para a marca Seat, ele foi convidado para chefiar o Design da Audi, e por lá ficou pouco tempo.
Porém, com a mudança de comando do Grupo VW, ele foi foi convidado pelo próprio
Dr. Martin Winterkorn para chefiar o Grupo de Design Volkswagen, o que não é pouca coisa.
O Grupo Volkswagen encampa 12 marcas: Volkswagen, de maior volume; Seat e Škoda, mais “populares” e com sabor Mediterrâneo; europeu oriental a Audi, a mais tecnológica; a Bentley, marca de luxo; Lamborghini, esportiva; exclusiva, a Porsche, esportiva, tecnológica e tradicional; a Bugatti, exclusiva de alta performance e luxo; e ainda a Ducati, motocicletas esportivas e exclusivas; e VW Caminhões, transporte popular, que depois acabou se unindo à MAN e Scania para transporte pesado.
Agora você pode imaginar o quão complexo seria organizar e comandar todas estas marcas. Eu diria que ele, no seu tempo no grupo VW, foi o Designer-chefe mais poderoso do mundo.
Porém, ele foi sempre um homem original, bem humorado, com grande poder de luta e um mediador excepcional, pois lidar com este complexo cenário não é para qualquer um.
Ele sofreu durante todo o tempo uma pressão insuportável para um ser humano normal. Para coordenar todo este volume de trabalho ele formou uma seleção de técnicos e administradores que tentaram e conseguiram uma rotina de apresentações impressionante.
Cada marca tinha seu próprio Designer-chefe, e este era responsável para direcionar e preparar os modelos de Design, que seriam, primeiros levados ao Walter e depois, através dele, levar os temas ao Dr. Winterkorn.
A coisa funciona como no exército, com uma disciplina rígida e respeito à hierarquia. O designer apresenta suas propostas para os chefes de estúdio (exterior ou interior) que depois de lapidadas, levam ao Chefe da marca, que por sua vez as leva ao n*1 da companhia.
Por isso, vocês já podem imaginar, que pouco da ideia original chega até o Chefão. Pelo caminho ela é completamente descartada, ou sofre modificações, seja pela aparência ou necessidades técnicas e financeiras.
Nunca se pode levar somente uma ideia ao Grande Chefe. Isso seria uma imposição. O normal é apresentar três variantes, que nas reuniões formais se transformam em dois e na final em um.
É muito comum que três modelos se fundam em um: frente de um, lateral de outro e traseira de mais outro. Portanto, quem ainda acha que o designer moderno é um super-herói que define a aparência total sem interferência, pode ir mudando de opinião.
O designer de uma grande indústria é um empregado especialista que apenas sugere ideias, quebradores de pedras que vão montar a pirâmide. Na realidade os engenheiros, especialistas neste sentido, têm mais sucesso, já que eles trabalham com números e cálculos que não podem ser contestados (2+2=4).
Já o designer trabalha num nível subjetivo, com a beleza da forma, que pode sim ser contestada por qualquer um.
Até o faxineiro do estúdio tem sua opinião própria sobre se um carro é bonito ou não. Mas é claro que no fim a palavra final é do cliente. Ele é quem decide se vai ou não comprar o carro.
O caso do Brasil era completamente único no mundo VW, pois nos éramos o único país do mundo que desenvolvia modelos exclusivos para nossa região. Hoje em dia a China, por sua importância em vendas, acabou conquistando relativa independência, porém também com muito custo e trabalho perdido.
Mas o Walter percebeu isso é aceitou nossa situação numa boa e de uma maneira muito clara concordava com nossa relativa independência, representando a voz de uma região (América do Sul). Porém como nós também éramos marca VW, tínhamos que, primeiramente, obter um consenso com o Chefe da Marca VW, no caso o Klaus Bischoff, que para nossa sorte sempre foi um profissional de primeira linha e nos permitiu uma abertura devido às nossas necessidades especiais. Tanto que eu e o Simon Loasby, Designer-chefe da China, éramos os únicos chefes exóticos, do Brasil e da China, que participavam do Grupo de Design Volkswagen na Alemanha e, claro, do Staff do Klaus.
No princípio, todos modelos de todas as marcas tinha que apresentar suas propostas na VWAG, o que transformou a área de Design num grande “estacionamento” de modelos, que entravam e saíam da fábrica, formando um caos sem fim.
Executivos de alto nível de todas áreas técnicas e administrativa acabavam metendo o nariz no trabalho alheio, causando danos e confundindo as decisões. Além disso, o Walter precisava saber, na ponta da língua, tudo que estava sendo tocado em cada estúdio. Ponha-se aí 12 marcas, designers criativos independentes, mais os seis ou sete estúdios avançados ao redor do mundo, fora os estúdios independentes e colaboradores no processo.
Essa rotina frenética acabou por estressar num limite insuportável a vida do Walter.
Outro problema frequente em Wolfsburg eram as apresentações externas dos modelos. Todo modelo deve ser visto à luz do sol, e a grande distância, para “perceber” o conjunto de maneira correta. É assim que se deve analisar um automóvel.
É claro que tínhamos áreas externas seguras para essa apresentações externas, mas sempre enfrentávamos o mesmo problema. Em Wolfsburg, dias de sol são raros, e a posição do sol, quando ele aparecia não era a das melhores.
Durante todo inverno, não podíamos retirar os modelos dos estúdios, devido ao frio externo que provoca rachaduras irreparáveis nos modelos. Então ele conseguiu instituir o Designerlebensfahzeug, ou seja, o modelo de Design vivo.
Ele convenceu o Dr. Winterkorn a construir uma pista de apresentação exclusiva para modelos de Design em andamento em…Barcelona, Espanha! Desta maneira ele podia não só observar os modelos com a “Luz do Mediterrâneo” que ele entendia ser a situação ideal de observação, como também selecionar quem podia estar presente às apresentações, evitando palpites de quem não tinha nada a ver com o assunto.
Por sua vez, Dr. Winterkorn adorou a ideia, pois estas reuniões se tornaram um oásis, onde ele poderia se afastar pelo menos um dia da sua massacrante agenda técnica e administrativa. Ali ele se tornava um outro homem, sem terno e gravata, sorridente e brincalhão.
A pista nos arredores de Barcelona foi construída numa colina dentro do terreno da Seat, completamente segura por terra e com observadores que policiavam os céus e ativavam alarmes quando um avião ou helicóptero estava na rota da pista.
A pista era em formato de “O” com um auditório no centro e três palcos rotativos onde se podia comparar o novo modelo com o modelo atual e seu concorrente mais forte.
Os modelos em Clay que eram aprovados nas reuniões de produto nas diversas matrizes das marcas tinham um mês para serem transformados em modelos de material rígido, onde eram instalados motores elétricos e lugar para um motorista, que rodavam a pista a 30 km/h, solos ou acompanhados por modelos de série da marca e da concorrência.
O Dr. Winterkorn, Walter e o Designer-chefe da marca ficavam na primeira fila e seus assistentes técnicos, ao redor do Grupo e de posse de todos documentos técnicos para defender eventuais questionamentos vindos dos chefes.
Todos os outros convidados ficavam preparando suas respectivas apresentações, ou apreciando as apresentações alheias, mas nunca interferindo sem serem chamados. Os modelos vinham de vários locais da Europa, Brasil, China, EUA, transportados em terra por caminhões especiais, com temperatura interna controlada e suspensão a ar,para causar o mínimo possível de danos.
As oficinas de trabalho dos modelos na pista se pareciam muito com as de Fórmula 1, onde todos os modeladores, designers e técnicos tinham à mão todas as ferramentas necessárias para eventuais modificações e retrabalhos.
Tínhamos uma sala de comunicações com intranet que permitia aos técnicos acesso a
informações de qualquer tipo vindas das origens através do mundo VW, e um bufê com cozinha espanhola de altíssima qualidade.
Em resumo, um sonho para qualquer designer estar presente naquele ambiente único. Essas reuniões eram mensais, o que nos tornou frequentadores de Barcelona, uma das cidades mais lindas da Europa.
Nossos modelos tinham sempre como primeira escala Wolfsburg, e depois eram encaminhados de caminhão para Barcelona.
O processo todo era bastante complexo, mas o resultado melhorou muito para todos os envolvidos.
Com a saída recente do Walter este processo foi abandonado temporariamente e hoje não sei se ela ainda existe, mas foi o paraíso para quem dele participou.
Outra reunião, esta anual, que o Walter instituiu, e que não existia antes dele foi o “Design Group Meeeting”, onde todos diretos do Walter se reuniam por dois dias completos.
Esta reunião tinha como objetivo “abrir a cabeça” dos Designers-chefes. Em todas que participei o Walter proibiu terminantemente se falar sobre trabalho cotidiano e os programas eram preparados principalmente para se contemplar ARTE e assuntos que nos relaxassem, melhorando nosso relacionamento e abrindo a mente, especialmente dos alemães envolvidos em outros pontos de vista.
Na primeira reunião, que foi em Roma, onde dividido em grupos tínhamos que seguir um mapa que nos levavam a pequenas igrejas escondidas pela cidade. Todas elas abrigam pinturas que de tão realistas pareciam com imagens 3D.
A tarde, guiados pelo curador de arte do Vaticano, fomos guiados por caminhos fechados ao público terminando na capela Sistina, onde o curador nos explicou detalhes sobre as pinturas de Michelangelo.
Nesta primeira reunião fui convidado pelo Walter a preparar um apresentação sobre o Brasil. Não sobre indústria automobilística ou mercado ou seja lá o que for relativo a automóveis, mas sim voltado para o lado cultural e artístico.
Foi um prato cheio para mim, pois abordei todas facetas culturais do Brasil e mostrei, primeiro asdimensões continentais do nosso país, e depois entrei em detalhes sobre nossa complexa cultura e suas origens, este caleidoscópio cultural que somos, falei sobre nossa arquitetura, arte, música e nossa maneira de viver.
A apresentação deixou todos boquiabertos, pois ninguém da plateia tinha a menor ideia de quão rico e diverso é o nosso país.
Com certeza, depois desta apresentação todos mudaram sua maneira de ver o Brasil e
ganhamos muita moral, e até um pouco de inveja das nossas benesses.
Em outra reunião visitamos as principais instalações e áreas criativas da Louis Vuitton em Paris. Tenho certeza que qualquer mulher ficaria enlouquecida com a quantidade de bolsas e artefatos criados pelos designers das quais, 9 em cada 10 propostas, são rejeitadas e vão para um depósito de propostas recusadas.
Em outra reunião, ficamos dois dias completos no centro esportivo do Milan, time de coração do Walter, onde depois de testes físicos, montamos dois times para uma partida inesquecível.
À noite, jantar no restaurante mais badalado de Milão, onde depois de cada jogo os jogadores do Milan se reuniam para jantar e sair para as baladas.
Na última reunião fomos para o Sul da Espanha, onde acompanhados por mestres da escola de Belas Artes local, passamos dois dias pintando temas diversos, não relativos a automóveis.
Sempre a última atividade no último dia pela manhã eram apresentações sobre as tendências de cada marca ou regiões.
Ele também investiu em estúdios avançados na China, Califórnia, Potsdam, Braunschweig, Giugiaro design e Munique, fomentando a criatividade e procurando novos caminhos para as marcas, porém testemunhei muita frustração de sua parte por não conseguir vender ao Board suas ideias, graças às “regras convencionais” e rígidas da filosofia técnica alemã.
Sua marca preferida, como não poderia deixar de ser, era a Lamborghini, onde ele sempre extravasava suas frustrações com seus compatriotas italianos, que contrastavam frontalmente com a disciplina germânica.
Com seu conterrâneo Giugiaro havia também algumas rusgas, já que dois Italianos competindo, um com uma bagagem admirável, um com grande prestígio com o Dr. Piëch (Giugiaro) e outro, na posição máxima do grupo de Design (Walter), e nem sempre com o mesmo ponto de vista, geravam discussões e competições duras.
O Walter me disse várias vezes que ele só ficaria no Grupo enquanto o Dr. Winterkorn
permanecesse como grande chefe, e foi exatamente o que aconteceu.
Quando explodiu o caso do “dieselgate” nos EUA, em setembro de 2015, e o grande chefe foi afastado de seu cargo, o Walter imediatamente pediu sua demissão.
Ele era um grande fã da nossa Saveiro, um carro verdadeiramente exótico na Europa e nós construímos um muito especial para ele, que se juntou à sua coleção. Ele me disse que nem os Lamborghinis chamavam tanto a atenção como nossa Saveiro desfilando pelas ruas chiques de Munique.
De qualquer maneira, ele foi um chefe que me respeitou desde o princípio pois percebeu que eu sempre fui um lutador, procurando novos caminhos e lutando para manter o Design do Brasil vivo e com voz ativa, pois eu não tinha medo de expor nossas ideias, mesmo sabendo que na maioria das vezes éramos voto vencido.
Só tenho a agradecer a este que foi um dos mais poderosos Designers de todos os tempos.
LV