A cidade de Potsdam é um ponto muito importante porém pouco conhecido da Alemanha. Depois da Segunda Guerra Mundial, ficou anexada à Alemanha Oriental durante quatro décadas administrada pelos russos.
Quando chegamos (família) tivemos que lidar com um tipo de alemão rústico, nada simpático com estrangeiros, ou com eles mesmos, sem a menor noção de inglês, mesmo estando a somente 20 quilômetros de Berlim, uma cidade internacional. Isto é claro porque Potsdam ficou do lado oriental, e foi bastante danificada na tomada de Berlim.
Em compensação, a cidade e os vários parques e castelos (o mais famoso é o Sanssouci), palácio de verão do Frederico, o Grande, rei da Prússia, eram sensacionais.
Quando chegamos ainda havia muitas marcas da guerra, pois os russos nada fizeram enquanto lá estiveram.
Mesmo assim a arquitetura da cidade é atípica e deslumbrante, com influência francesa, graças aos amigos de Frederico, com todos aqueles lagos, canais, embrenhada numa floresta muito bem conservada.
Nossa casa era nos arredores do castelo, em frente ao Neuer Garten (Novo Jardim), onde foi assinada a divisão da Alemanha após a guerra.
Do outro lado do parque estava o fantástico estúdio avançado da Volkswagen, que seria responsável por uma bela porção dos carros-conceito da VW, o que ocorre até hoje.
O prédio, por dentro da ala de apresentação é um cubo gigantesco onde até o teto é de vidro. Claro que a insolação era muito forte no verão, mas bastava apertar um botão e o enorme teto de vidro era coberto por um teto flexível retrátil.
Das mesas de trabalho você tinha a visão do grande salão de apresentações circular onde ficavam os modelos em trabalho ou nas apresentações, e também o lago em frente ao estúdio, e o céu da Alemanha. Mais tarde foi criada uma barreira de proteção visual por motivos de segurança e perdemos o visual do lago, uma pena.
Tudo no estúdio foi pensado pelos próprios designers com interferência e comando direto do sr. Hartmurt Warkuss, e ali naquele prédio maravilhoso você tinha, além da ala de designers e a modelação em clay, fresas para modelos 1;1, área de preparação e pintura, um bom espaço para estacionamento de modelos, oficina completa, várias salas de apresentação, ala de modelação virtual, área de color&trim, para desenvolvimento de materiais e cores, e um ótimo espaço para engenheiros e especialistas em Package e Engenharia avançada.
A sala principal de reuniões no terceiro andar era impressionante pelo visual, tamanho e tecnologia.
Também tínhamos uma ótima cantina e estacionamento para nosso carros entre o lago e o estúdio! E o melhor de tudo, estava a 250 quilômetros de Wolfsburg.
Fomos o primeiro grupo a fazer o estúdio funcionar. O chefe era simplesmente o Peter Schreyer, o hoje superexecutivo-chefe-Designer da Hyundai-Kia. O Peter é realmente um cara fora de série e merece todo sucesso que ele atingiu, seja como designer, seja como ser humano e artista.
É um cara doce, muito educado, mas que pode se tornar muito perigoso quando ameaçado. Ele foi o responsável pela nova linguagem da Audi, na época do A6, A3 e Audi TT. Além disso também foi um dos criadores do New Beetle na Califórnia. Foi trazido pelo Warkuss para a VW, e protegido por ele quando o Dr. Winterkorn o ameaçou de demissão, já que ele queria outro no seu lugar. Porém, neste caso o bem venceu e ele acabou se fixando na Kia e Hyundai como um dos maiores designers da atualidade.
Outra lenda da formação original deste estúdio era o Daniel Simon, um alemão oriental que se tornou o novo Sid Mead, futurólogo do automóvel. Ele desenvolveu um show car que era um táxi futurista para Londres simplesmente fantástico, mas que foi sistematicamente recusado pelo Guenak e o novo Board simplesmente por problemas estratégicos e políticos.
Infelizmente para a VW foi a gota d’água para ele, que pediu às contas e se retirou para desenvolver um portfólio com destino certo: Hollywood!
Infelizmente, a VW não tem o alimento que uma fera desta necessita, e ele acabou deixando o estúdio para se tornar um designer solo de sucesso, criando veículos fantásticos para o cinema de Hollywood, entre eles os veículos e motos do filme “Tron”, a libélula futurista de “Oblivion” e também lançou vários livros da série Cosmic Motors.
No momento está liderando o projeto do primeiro carro de corrida elétrico e sem piloto a bordo! E no nível de complexidade de um Fórmula 1.
Passou uma temporada com seu superlaptop em minha casa em Peruíbe finalizando seu portfólio.
A grande massa de designers e técnicos que começaram o estúdio de Potsdam vieram do estúdio avançado que a VW tinha na Espanha, em Sitges, que após a abertura de Potsdam foi vendido.
Também foram anexados novos membros para a área de 3D, interior, e color&trim.
Dentro da estrutura que o Peter montou, havia chefes de exterior, e interior, color&trim, modelação e 3D, além da parte administrativa do estúdio.
Eu fiquei responsável por gerar ideias para países emergentes, Brasil, China, México, África e até EUA, que sempre foi um grande problema para a VW.
Durante minha estadia em Potsdam houve grandes mudanças, pois lá na matriz as coisas também mudavam muito rápido. Novos presidentes e chefes de engenharia provocavam uma destruição em massa dos conceitos antigos e implementavam novas maneiras de conduzir o negócio automóvel e trariam novos personagens para o grupo.
O Grupo VW estava se tornando enorme, se agigantando, e havia muitas discussões sobre o seu futuro.
Uma das propostas que desenvolvi no estúdio foi justamente um crossover com uma carroceria única, um pequena SUV sobre a plataforma do Fox. Isto em 2007!
Fizemos até um modelo em escala 1:1, mas ninguém prestou a atenção no assunto. O buraco era mais embaixo.
O Brasil estava concentrado num novo chapéu para a família Gol, e na matriz, um avalanche de projetos europeus e mundiais.
Aliás, o Gol geração 5 foi definido em Potsdam, liderado pelo então chefe de exterior o Sr. Manske, que também veio da Mercedes chamado pelo Designer-chefe Guenak, e com designers e modeladores brasileiros.
A tendência da matriz foi sempre tentar enfiar goela abaixo seu produtos, sofisticados e caros ou simplesmente depená-los para os mercados emergentes.
Produtos exóticos como a família Gol e Fox sempre foram uma afronta para a matriz, já que em nenhum lugar do mundo se desenvolviam produtos específicos com o logo VW, porém sempre se mostraram com ótimo desempenho no nosso mercado.
Também, os países emergentes não eram uma preocupação maior para o Grupo, mas sim, implementar as novas tecnologias em produção, padronizar níveis de qualidade entre as novas marcas do grupo, criar ícones para cada nova marca anexada, ou incorporada ao grupo, como a Lamborghini, Bentley, Bugatti, e outras coisinhas mais.
Tive a chance de acompanhar parte do desenvolvimento de Design do Bugatti Veyron e participei como intruso em propostas para um Bugatti 4-portas, que não nasceu até hoje.
O responsável pela trabalho da Bugatti acabou tendo Potsdam como estúdio-base para desenvolver o projeto que nunca vingou.
Como o Budget ($) para sustentar o estúdio de Potsdam vinha de Wolsburg, tínhamos que participar das competições de modelos diversos, para tentar abocanhar um trabalho daqui, outro dali.
Trabalhei também por curto período em um estudo para um novo sedã para os Estados Unidos. Testamos, nas mais variadas situações, os dez melhores sedãs de lá, ouvimos clientes e revendedores.
Um momento marcante deste teste foi logo no primeiro movimento, ao sairmos do hotel para tomar o café da manhã. Os organizadores queriam mostrar que nossos carros não tinham itens absolutamente necessários para a vida nos EUA. Daí, paramos em uma padaria em algum shopping nos arredores de Los Angeles, pedimos nosso café e pão, mas na hora em que o grupo começou a procurar lugares para sentar e tomar o café, fomos impedidos pelos organizadores.
No Estados Unidos o café da manhã é tomado dentro do carro e a caminho do trabalho. Quem dirigia os Passats e Jettas, se viram em maus lençóis, pois os dois modelos não tinham porta-copos, talvez o acessório mais importante para os americanos. Ficaram sem café.
O trabalho todo foi praticamente ignorado pelos colegas de WOB, que em sua grande maioria achavam que o grupo estava somente passeando pela Califórnia.
Algumas de nossas recomendações, como o porta-copos, foram usadas no novo Passat americano que veio anos mais tarde. Porém, como mostrou a história, o novo carro, que inclusive ganhou uma fábrica novinha em folha para sua produção, não agradou, já que ele não passou de um Passat inflado, e a VW perdeu com o tempo ainda mais mercado nos EUA.
Depois de um ano no comando, por problemas políticos o Peter Schreyer se desligou da VW devido a conflitos com o Guenak e surgiria um ano mais tarde como vice-presidente de Design da Kia.
Em seu lugar veio Thomas Ingenlath, o mesmo que havia “afinado” a frente do Gol G3 anos atrás e que e hoje vice-presidente, Designer-chefe da Volvo, e presidente da nova marca esportiva da Volvo. O Thomas era um cara muito “cool”.
Fala baixa e controlada, vinha, se não me engano da Škoda, mas era um profundo conhecedor da marca VW. Tinha também uma ótima penetração no universo técnico e administrativo da VW, o que sempre ajuda, além de um grande carisma pessoal.
Com ele o estúdio e o fluxo de trabalho se tornaram mais sólidos e estáveis. O Thomas é um detalhista, trabalha muitas horas no modelo esticando tapes, at[a que as linhas e superfícies estejam perfeitas.
Ele conseguiu trazer muitos trabalhos de show cars para a marca VW e também para outras marcas do grupo.
Um grupo muito forte em Potsdam era o pessoal do 3D, que conseguiam baseado no Sketch escolhido e de posse do Package, criar em tempo recorde carros virtuais completos em termos de aparência, que logo em seguida eram fresados em clay para as diversas apresentações.
Este novo processo acabou se tornando a maneira mais rápida e precisa de se desenvolver automóveis e até hoje é usado, e com a grande evolução dos softwares se tornou mais confiável e rápido.
O grupo de brasileiros que acabaram estacionando em Potsdam por causa da nova geração do Gol chegou a oito, com designers, modeladores e especialistas em 3D. Os alemães adoravam o grupo por sua alegria e visão positiva, sem tempo ruim para nada.
Vencíamos a falta de recursos financeiros com proatividade, improviso, dedicação e disciplina.
Agora, o que mais marcou o grupo eram nossas festas, com churrasco e música ao vivo onde todos estavam convidados. Minha casa era o quartel-general da galera e vivia cheia de gente, inclusive os alemães que nunca nos convidavam para nada!
A vida em Potsdam estava uma beleza. Os filhos estudando, a gente descobrindo Berlim e redondezas, até que um belo dia o Klaus Bischoff, Designer-chefe da marca VW, me chama com urgência para o estúdio central em Wolfsburg.
O Dr. Ferdinand Piëch não havia gostado da proposta que o Guenak (chefe Designer-chefe da marca VW) tinha feito do Voyage, que estava sendo apresentado em um dos testes de verão na África.
Pelo que me contaram, o Guenak foi despedido ali mesmo, durante o teste. Na realidade grandes mudanças estavam sendo efetivadas, entre elas um novo e poderoso chefe do grupo, o número 1, Dr. Martin Winterkorn — sim, ele mesmo, o inimigo feroz do Fox.
Quem diria que muitos anos mais tarde, quando o Fox recebeu um novo exterior e interior, um novo sistema elétrico que permitiu a aplicação de muitos features importantes, elogiaria o carro.
Num “teste de verão”, ele afirmou publicamente que o Fox foi o único carro “divertido” do dia, e olha que nestes encontros temos Porsches, Lamborghinis, Audis e e toda a tropa!
Para a posição de Designer-chefe do grupo o Dr. Winterkorn já tinha um plano. Ele trouxe com ele o Walter de Silva, como Design-chefe do Grupo VW. Portanto, um dos primeiros trabalhos do De Silva, foi “consertar” o Gol/Voyage, entre mais de um milhão de coisas para todas as marcas do grupo!
E para realizar esta mudança, que implicava toda família Gol, fui chamado, para coordenar o projeto na área de Design.
Então nos (família) mudamos para o centro de Berlim, já que estaria fora de casa muito tempo e nossos filhos estudavam lá.
A princípio eu morei em um hotel em Wolfsburg durante a semana e voltava para Berlim sempre que estava inspirado para pegar uma Autobahn. A estrada entre Wolfsburg e Berlim, a A2, tem um trecho de 140 quilômetros com velocidade livre, desde Magdeburg até 50 quilômertros antes de Berlim. Significa que você pode fazer este trecho com o pé direito colado no assoalho, a 250 km/h ou mais, se tivesse, como eu, um Golf R, v-6 turbo.
Numa das minhas idas quase me envolvi num engavetamento, justamente no trecho de velocidade livre, o que sempre significa acidente grave. Depois deste acontecimento, decidi alugar um apartamento funcional em Wolfsburg e só viajar para Berlim no fim de semana, de preferência pelas estradas secundárias, onde você pode admirar a verdadeira Alemanha.
Convoquei uma equipe para realizar as mudanças pedidas pelo De Silva, e lá vamos nós para uma nova aventura.
LV