Eu vivia com a mala na mão, e quase sempre com bagagem só de mão, já que voei à Alemanha várias vezes para uma única reunião, e peguei o voo de volta no mesmo dia à noite para chegar direto para o trabalho em São Bernardo Campo no dia seguinte. Vida maluca mas intensa.
No Brasil eu estava batalhando por atualização e ampliação do nosso estúdio. Tínhamos um ótimo projeto, porém na hora de apresentar a conta a coisa ficava feia. Como sempre, os administradores da companhia, inseguros com o futuro, faziam de tudo para matar nossos planos.
No fundo, pensavam, para que fazer Design no Brasil quando a matriz tinha tantos designers? E a Alemanha também pensava assim. Só pulavam fora quando a Alemanha mandava a conta, que sempre era muito maior do que se o trabalho fosse feito pelo grupo brasileiro. E assim íamos empurrando o barco.
Numa companhia deste vulto, é impossível se tratar um assunto que envolve investimento somente dentro de seu departamento. Quando se trata de definir para quem vai o dinheiro, todos interessados vão para uma sala e o jogo é aberto e pesado. Se você diz que precisa de novas pontes de medição, vem a turma da ferramentaria alegando que eles também precisam de novas fresas , e aí o dinheiro não dá para todos. O budget do Design vinha todo da área de engenharia, que também necessitava de muito dinheiro para adquirir novos softwares e hardwares, atualizar e ampliar o campo de provas, adquirir novas instalações para a área de segurança industrial e muitas outras atualizações.
O Dr. Egon Feichter, meu chefe, tinha ótimas intenções em relação à nossa Engenharia, queria melhorá-la. Mas também tinha budget limitado e muita coisa para repartir o dinheiro previsto para a área.
Nosso projeto para um novo prédio de Design foi apresentado ao time liderado por Finanças que era o responsável pela pré-apresentação dos pontos para a presidência. A cara do diretor não foi nada boa quando viu os números.
Na apresentação final do novo estúdio para o presidente ele simplesmente cortou nosso projeto pela metade (em termos de dinheiro) e muitas coisa deixaram de ser feitas, ou foram adaptadas. Mesmo assim, conseguimos um bom melhoramento na área principal do estúdio, com uma nova área de modelação, designers, alisadores de superfície matemática e uma grande ala fechada, com luz controlada onde podíamos estacionar para apresentação mais de 20 carros ou modelos.
Porém minha sala, alguns administrativos e a área de Color&Trim ficou de fora do prédio novo. Nada muito cruel, mas ficamos bastante frustrados por não receber o que tínhamos planejado e por ter que dividir o estúdio em dois.
Por causa desta divisão acabei frequentando menos a modelação e estúdio no Brasil, já que estava sempre em reunião ou viajando. Acabei me afastando do trabalho de Design em si para lidar com assuntos mais administrativos e menos técnicos, deixando a execução dos modelos nas mãos dos nossos supervisores.
Quando voltei para o Brasil concordei que meu parceiro Gérson Barone, agora com um cargo de gerente, me substituísse em Wolfsburg para cuidar de perto do Design Corner.
Para ele, que tinha levado sozinho a barra aqui no Brasil, foi um alívio ficar com esta missão e se afastar um pouco da burocracia da fábrica Anchieta, e viver a “experiência da Alemanha.”
Para controlar melhor nosso fluxo de trabalho, que era muito dinâmico e com tantos pontos a serem discutidos, criei um Design Review, uma reunião mais fechada, onde o top manager era o Presidente da VWB, o Diretor de Planejamento de Produto, áreas afetadas da Engenharia (acabamento, carroceria e elétrica) e colegas de marketing e, se necessário, qualquer diretoria da fábrica.
O principal objetivo destas reuniões era mostrar os pontos de discussão mais quentes, sempre relacionados ao Design em si, digo, a aparência das coisas, mas principalmente criar e vender ideias para o nosso mercado, criando séries especiais, modelos exclusivos, e o conteúdo dos produtos de massa. A reunião sempre foi levada em um clima fechado e tenso.
O marketing tem olhar curto, querem tudo para amanhã e tem uma mania de seguir modinhas ou conceitos muito convencionais. Nós, Design, pela própria experiência diária com a Alemanha, tínhamos uma visão mais universal, conseguíamos ver a tendência a longo prazo, estávamos sempre provocando com ideias, materiais, novas soluções, mas outras áreas da engenharia, por sua própria falta de capacidade física para se concentrar em algum programa, eram bem menos animadas e punham pedras enormes para serem quebradas antes de você dar um passo à frente.
Cada ideia do Design, para ser viabilizada, acaba envolvendo todas áreas da engenharia a desenvolver estudos de viabilidade. Para isso são necessários profissionais com know-how, estes já soterrados em uma enorme agenda de compromissos e investigações.
Portanto, a vida se resumia a brigar pelas coisas, o que a princípio é bom, mas que com o passar do tempo vai desgastando.
Uma das minha maiores responsabilidades estava justamente em fazer o meio de campo entre o Brasil e a Alemanha. A Alemanha decidia algo e o Brasil não aceitava, o Brasil decidia algo diferente e nós tínhamos que defender pontos, às vezes muito polêmicos em frente à diretoria alemã.
A maior dificuldade para mim nesta época era conseguir ter tantas atividades sob controle. São muitos projetos rolando ao mesmo tempo e com pouca mão de obra especializada e sem uma turma de controle dos programas.
Na Alemanha o Design tinha um grupo de controle de programas, que coordenavam as ações de cada programa em andamento, maior que nossa turma de Designers!
Outra de nossas principais missões era discutir os projetos do futuro. A Alemanha decidiu que o Polo viria para o Brasil e imediatamente entramos com o pedido de um sedã baseado no carro. Para variar, a Alemanha não tinha derivados do Polo pois a paleta de produtos da Alemanha preenchia todas necessidades, sendo a base do Golf mais preparada para derivados como o sedã Jetta, SUVs, stations e outros modelos.
Quem substituiria o que na paleta de produtos do Brasil? Como substituir o Gol, o Fox, as picapes derivadas do Gol e quando finalmente teríamos um SUV do tamanho certo e com custo adequado?
As picapes derivadas de automóveis classe A0 brasileiras são um conceito completamente estranho para os europeus, por exemplo.
Já para nós, Brasil, o volume como derivado é considerável e as picapes pequenas vendem aos milhões. Em 2013 foi fabricada a milionésima Saveiro.
Qual a real prioridade de Design versus a prioridade concentrada de todas as áreas da
companhia, especialmente a prioridade da Alemanha? Afinal, nós fazemos parte do Grupo, e o grupo tem seus planos, com prioridade dos grandes mercados mais promissores como China e Europa, fora os EUA, onde a marca não conseguia emplacar, mesmo tendo investido numa grande fábrica em terreno americano.
Por outro lado, o Grupo, começou (tardiamente) a se dedicar à concepção de carros elétricos e autônomos, tendo que criar divisões inteiras dedicadas a este trabalho.
Porém, como sabemos, os elétricos são inviáveis no Brasil devido ao seu (Brasil) atraso generalizado, não só em tecnologia mas também sem nenhuma política séria sobre estes novos tipos de veículos.
O mercado brasileiro sempre foi definido como “voo de galinha”. Historicamente cíclico com grande altas e baixas. Um mercado não confiável! Portanto sofríamos grandes pressões e não conseguíamos limpar e organizar nossas energias e capacidade limitada de maneira a traçar um programa que fosse ideal para o futuro.
Uma das grandes realidades limitadoras nesta instabilidade é lidar com um mercado que um dia esta bombando e no outro está completamente inerte.
Como você pode programar produtos que demoram 4 anos para serem concebidos em um cenário como este? Iniciamos uma bateria de propostas usando a plataforma do Polo, e também as plataformas existentes no Brasil.
Ao mesmo tempo, temos um mercado volúvel, que não tem mais o sentimentalismo e a
experiência da marca como linha-guia para uma escolha de automóveis.
O Brasil foi invadido pelos carros importados, o que acirrava ainda mais o cerco de entusiastas por programas mundiais e não mais programas regionais, como sempre foi a VW do Brasil.
Então a grande crise chegou novamente com uma nova recessão de grande porte originada por instabilidade política, impostos e leis castradoras e uma matriz completamente alheia a nossos problemas.
Todo este drama só acontecia aos meus olhos, pela posição que eu ocupava. Como diretor de amplitude internacional eu tinha conhecimento de ações e decisões que a quase maioria de outros funcionários, incluindo designers não estavam expostos.
Nesta altura do campeonato, depois de 35 anos, eu comecei a sentir o que significa a trabalhar em algo que você não gosta. Durante meus 40 anos ligados ao desenvolvimento de automóveis na área de Design eu me senti como se não estivesse trabalhando, mas praticando, estudando, aprendendo e construindo.
Toda minha vida profissional foi um sonho que se tornou realidade através de uma sequência de acontecimentos ligados ap desenvolvimento de automóveis.
Outra preocupação muito grande era com meu pessoal. Em 2010 estávamos com um time muito afiado, profissionais de alto gabarito. O Design era dividido em:
• Package, que cuida da definição de ergonomia e comparação de medidas funcionais, assim como aerodinâmica, dimensões em geral e comparações com a concorrência; estúdio criativo de formas (shape) exterior e interior, responsáveis por definir a forma de todos elementos visíveis pelo cliente.
• Modelação de Design, responsável por construir o modelos de design de exterior e interior, sejam em clay (massa de modelação) ou em materiais rígidos como massa plástica, material sintético,preparar os modelos para apresentação (pintados ou revestidos com texturas). bem como preparar a logística de apresentações permanentes da área.
• Color & Trim, responsáveis pela definição de cores, texturas, padrões, ícone, emblemas, revestimentos em geral, como tecidos, tecidos não tecidos (TNT), carpetes, padronagens e visual dos instrumentos e telas.
• Superfície Matemática, que define a forma final de maneira virtual para que estes dados sejam utilizados para definição de peças, ferramentas e moldes, construção de robôs, e linhas de montagem dentro ou fora da companhia, por companhias especializadas em cada processo.
Cada especialista da área veio ou do concurso de Design Volkswagen, que eu implantei na companhia, ou de áreas internas como ferramentaria, engenharia e protótipo. Noventa por cento deles esteve em algum momento no exterior desde uma semana a três anos.
Alguns deles foram “roubados “ pela matriz graças ao talento demonstrado nos projetos. Nossos meninos se tornaram chefe de design exterior design VW, chefe de estúdio VWB, líder de projetos nos SUVs VWAG, diretor de Estúdio Avançado Audi, chefe de estúdio Color & Trim Porsche, entre outros, também na concorrência, Ford, GM, Citroën.
Nas minhas costas estavam até 70 profissionais que eu tinha que proteger e continuar injetando as ferramentas necessárias para que eles fossem parte importante na companhia e, portanto, sobrevivessem, empregados e eficientes.
Nós conseguimos nos entrosar com a “máquina de modelos” de Wolfsburg. O Klaus Bischoff, não só aceitou com sempre permitiu que os designers e especialistas do Brasil fossem se integrando ao estúdio central, que por sinal tem funcionários do mundo todo.
Porém, eu não poderia prever os graves problemas que teríamos que enfrentar com a recessão brasileira.
LV